Lee Berger foi responsável neste século pela descoberta de duas novas espécies de antigos parentes dos humanos, na África do Sul. A primeira, australopithecus sediba, em 2008, foi na verdade descoberta pelo seu filho Matthew, então com nove anos, enquanto brincava com o cão..Cinco anos mais tarde, em 2013, uma expedição liderada pelo paleoantropólogo norte-americano no sistema de cavernas Rising Star, também na África do Sul, descobriu algo que faz reavaliar a definição do que significa ser humano: o maior conjunto de fósseis de parentes antigos dos humanos de toda a história. Uma espécie extinta de hominídeos, prévia ao homo sapiens, designada de homo naledi, que terá vivido há cerca de 300 mil anos. E, mais extraordinário, a disposição dos fósseis naquela gruta destapava o que Berger defende que terão sido as primeiras práticas fúnebres documentadas..Para Berger, que esteve em conversa com o DN na Ilha Terceira, durante a Glex Summit, esta descoberta vem questionar “o conceito do excepcionalismo humano”. “Afinal, aquilo que julgávamos ser um exclusivo dos humanos modernos, como os rituais fúnebres para enterrar os seus mortos, já era feito por outra espécie uns bons milhares de anos antes”. .O Lee Berger diz que vivemos na mais excitante era das explorações. E não apenas pelos avanços rumo ao futuro, mas também pelo que ainda podemos descobrir do nosso passado. Temos muito ainda por descobrir sobre a nossa espécie? É verdade e essa é uma mensagem importante. As pessoas geralmente pensam que as grandes épocas de exploração já ficaram no passado, nos dias em que as caravelas portuguesas atravessaram o mundo e descobriram novos lugares que provavelmente até já tinham sido descobertos por outros. Ou então pensam que a grande exploração é quando escalamos uma montanha pela primeira vez ou entrámos numa selva pela primeira vez, ou descobrimos ruínas antigas. Mas penso que isso proporciona um erro muito comum sobre o conceito de exploração, considerada como apenas mais uma mera visita a algures. E não é. A exploração deve ser sobre o entendimento. Ver algo e compreendê-lo. E a oportunidade que temos, enquanto indivíduos, humanos, para sermos todos exploradores nunca foi tão grande como é nesta altura. Todos os seres humanos, todos os nove mil milhões, podem ter acesso a isto [aponta para o telemóvel]. Pode ter acesso à soma total de todo o conhecimento humano que alguma vez foi escrito ou partilhado. Está mesmo na palma das nossas mãos. E isso dá-lhe a oportunidade de ser um verdadeiro explorador. Ir a sítios, ver algo e uma aplicação poder dizer-nos o que é, se algum outro ser humano já o viu. E se isso não ajudar, podes telefonar a um amigo. Esse é o verdadeiro poder. Com a inteligência artificial e a aprendizagem automática, isso vai tornar-se cada vez mais fácil. E vamos assistir a uma explosão de compreensão em todo o planeta, uma era de descobertas e de coisas novas. Viram aqui [na Glex Summit] os jovens exploradores que estão a encontrar espécies atrás de espécies. Ou que vão para um novo espaço e vêem coisas que não compreendemos ou não descobrimos antes. Isso vai continuar a aumentar e entusiasma-me imenso. E, no entanto, não elimina o ser humano da equação. Empodera-o..Enquanto metade do mundo pensa no espaço e em ir para a Lua ou Marte, você segue o caminho contrário. É isso mesmo. Eu vou para o subsolo. Olho para o passado. Olho para a história. Para os vestígios do nosso passado aqui..Será que ainda temos muitos ossos por desenterrar sobre a evolução da nossa espécie? Pensámos que já tínhamos descoberto as origens humanas. Há 20 anos, estava tudo descoberto, disseram-nos os cientistas. A partir dali só iríamos ter evoluções graduais. Pois enganámo-nos redondamente. Agora sabemos o quão pouco sabemos. Há um número quase infinito de possibilidades de descobertas por realizar. O que sabemos mesmo é que não acertámos. E isso entusiasma-me como explorador, porque significa que cada nova descoberta tem um grande impacto no aumento do nosso conhecimento. Uma vez tive um debate com um cientista que disse que não precisamos de mais fósseis, mas sim de melhores formas de tecnologia para compreender os que temos. Um disparate. Precisamos de ambos..E quão importante é ligar esse passado às explorações sobre o futuro global do planeta que tanta urgência tem suscitado? Sou um grande crente na sabedoria do ditado que diz: “se queres compreender o mundo, conhece-te primeiro a ti próprio”. Pessoas como eu, paleoantropólogos, que estudam o passado, precisam de compreender primeiro os humanos para compreender o mundo em que vivemos. E já percebemos que não somos o animal excecional que pensávamos ser. O excecionalismo humano levou-nos a fazer coisas terríveis a este planeta porque pensamos que somos únicos, especiais e melhores. O trabalho que fazemos mostra que não é assim. E essa consciência de que nós, humanos, não somos assim tão excecionais terá um impacto tremendo no futuro, porque nos fará preocupar mais com este planeta e com as coisas que nele vivem..E quão impactante foi para essa ideia a descoberta do homo naledi, em 2013? Penso que o homo naledi está a ser visto como um dos grandes momentos da história, mas talvez não o seja propriamente pelo que as pessoas pensam. Muitos dizem que é uma descoberta importante só porque há tanto material e nunca pensámos que houvesse tanto. Mas eu penso que a importância fundamental da descoberta do homo naledi é o facto de termos encontrado na cultura de uma espécie não humana coisas que pensávamos serem exclusivas nossas e que, afinal, já aconteciam antes de as fazermos. Porque eles [homo naledi] não são nossos. E isso deve sensibilizar-nos para procurar essas coisas no passado. Se aconteceu uma vez, pode ter acontecido muitas e muitas vezes..Temos de repensar tudo o que sabemos sobre a história evolucionária da espécie? O que temos de repensar é a constante arrogância que muitas vezes se constrói a partir de pequenas descobertas, a pretensão de dizermos que compreendemos tudo sobre onde estamos e como aqui chegámos. Temos de nunca parar de explorar..Há talvez duas afirmações ou premissas, neste campo, que estão a ser postas em causa pela nova geração de investigadores. A primeira sugeria que havia um ponto identificável no tempo e no espaço a que poderíamos chamar a origem da espécie. E a segunda identifica uma entidade definível chamada humanos modernos. Afinal, provavelmente não será assim? Sabia que não existe uma definição do que é ser um humano contemporâneo ou moderno? Não há definição. Procurem no vosso dicionário, seja ele de português ou de inglês. Vai dizer qualquer coisa como ter o carácter ou as características de um povo ou de uma pessoa. É uma definição circular. E uma das razões para isso é essa espécie de arrogância. Descobertas como a do homo naledi vão tirar-nos isso, vão mostrar-nos que não podemos ser tão arrogantes. E talvez precisemos de nos redefinir..A investigação genética confirmou que a mistura entre humanos arcaicos e modernos foi mais significativa do que se pensava há alguns anos. Os Neandertais e os Denisovanos terão contribuído para o sistema imunitário dos humanos modernos e todos eles se terão cruzado uns com os outros. Podemos dizer hoje que temos uma história muito mais diversificada do que pensávamos? Absolutamente verdade. Não somos uma espécie de raça pura. Somos uma raça rafeira..Regressando à descoberta do homo naledi na Gruta dos Ossos, na África do Sul, quão arriscada foi realmente essa missão? Vimos imagens de descida a locais de muito difícil acesso, por passagens onde dificilmente se diria que caberia um ser humano. O Lee teve de perder 25 quilos para descer ao sítio onde foram encontradas as ossadas. Como foi esse processo? Estávamos prestes a publicar algo tão impactante quanto a descoberta de uma espécie não-humana que já apresentava rituais de enterrar os seus mortos. Esta seria uma das coisas mais controversas já publicadas e havia perguntas que continuavam sem resposta. Por isso pensei: ‘Preciso de ser eu mesmo a ir lá, preciso de perder 25 quilos para caber naquele buraco e descer até lá’. Tão poucas pessoas, tão poucos cientistas, tinham lá estado. E eu precisava de ir lá obter essas respostas antes de publicarmos algo tão impactante. Quanto tempo demorou a preparar-se para essa missão e perder os 25 kg necessários? Seis meses..De que é que abdicou para conseguir emagrecer assim tão rapidamente? Formulei a minha própria dieta, que desenvolvi conhecendo o meu próprio corpo, e comi menos do que habitualmente..Antes disso, em 2008, o seu filho ajudou-o a descobrir outra espécie nova, australopithecus sediba. É verdade..Suponho que tenha ficado marcado por esse feito tão importante numa idade tão jovem. Já tem sucessor garantido? Ele acabou de terminar o mestrado em cinema na Universidade do Sul da Califórnia. Vai fazer documentários e outros filmes sobre este tipo de atividades, sim. Ele é um explorador. Tal como a minha filha, de resto. Ela vai ser veterinária, mas também esteve envolvida nestas expedições. E também a minha mulher. Ela é médica, radiologista, mas tirou um doutoramento em paleoantropologia para poder fazer imagens das descobertas nestas expedições. Algumas das imagens que passei aqui são dela. Portanto, pode-se dizer que temos assunto para conversa ao jantar..Para terminar, este ano assinala-se o 50º aniversário da descoberta de Lucy - o fóssil mais famoso do mundo e classificado como o mais antigo humano primitivo conhecido, que terá vivido há 3,1 mil milhões de anos. Qual é a importância que ela tem ainda hoje para este campo? Lucy foi o primeiro esqueleto real que vimos de um hominídeo verdadeiramente antigo. E penso que ela foi também responsável por trazer a todo o mundo a alegria da descoberta das origens humanas. É uma descoberta notável. Lucy continua a ser um fóssil extremamente importante. A sua descoberta dez parte da fundação da era moderna da exploração. E, por isso, continua a ser tão importante como sempre. O jornalista viajou para a Ilha Terceira a convite da Glex Summit