Lara Seixo Rodrigues. A filha da Covilhã que nunca cardou nem pintou, mas criou a arte urbana

Em pouco mais de uma década a Covilhã tornou-se um palco da arte urbana em Portugal. Das ruas sombrias e paredes desbotadas nasceram 46 murais, milhares de vezes partilhados. Por detrás dessa metamorfose está Lara Seixo Rodrigues, uma arquiteta acidental.
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"Se os filhos de Adão pecaram, os da Covilhã sempre cardaram", diz-se por ali desde tempos imemoriais. Mas desde 2011 pode dizer-se que aprenderam a apreciar cada recanto, cada rua empedrada e às vezes esquecida. À cabeça dessa mudança, uma rapariga ali nascida e criada: Lara Seixo Rodrigues, 44 anos, arquiteta, apaixonada pelo espaço público.

As ruas onde Lara foi menina ganharam nova vida na última década. Pensando bem, não são as mesmas. São hoje muito mais vivas e coloridas do que eram naqueles idos de 70 e 80. A mudança aconteceu na segunda década de 2000, quando ela se lembrou de fazer o que ainda não fora feito: olhar de perto para as pessoas e os lugares, imortalizando-os em pinturas.

Aos 18 anos, foi estudar arquitetura para Lisboa. Mas não se pense que foi uma vocação inata. "Quando estava no secundário queria fazer uma de duas coisas: ou ir para a tropa ou ser cabeleireireira", recorda ao DN a (eterna) miúda que passava horas na loja de eletrodomésticos dos pais, a magicar mil e uma coisas em frente a uma televisão. E foram eles que, afinal, a dissuadiram. Queriam vê-la na universidade. Quando entrou para a Faculdade de Arquitetura, em Lisboa, não podia adivinhar que haveria de se apaixonar perdidamente pela área, logo no primeiro ano. Deve-o talvez àquele a quem ainda hoje chama mestre, o arquiteto Aires Mateus, professor do primeiro ano do curso.

Fez o curso de uma penada e começou a trabalhar numa época "de grande crise", ao cabo de um estágio com o irmão, que já era arquiteto. De resto, foi com ele, Pedro Rodrigues, e com a cunhada, Elisabet Carceller, que acabou por encetar o que seria uma revolução na Covilhã.

"Eu cresci sempre com uma preocupação pelo Outro", admite Lara, que desde o princípio quis sempre fazer toda a intervenção "com e para a comunidade". Mesmo na arquitetura, foi sempre esse o propósito: "valorizar o espaço público para as pessoas; criar boas condições de vida". Foi assim que esta espécie de mantra sempre a acompanhou, em todo o percurso. Desde aquele primeiro espaço que dividiu com um colega, na LX Factory, em que percebeu como tudo demorava tanto tempo para acontecer (projetar, construir), e ia aproveitando para pensar e fazer outras coisas. E ela, que nascera com esse bicho-de-carpinteiro que a fazia sempre "organizar tudo e mais alguma coisa", acabou por abrir um espaço, em parceria com um artista plástico e outros colegas, que serviu de incubadora para coisas novas. "Era o "balneário", um espaço multidisciplinar, onde acabou por nascer o Wool, em consequência da minha paixão pelo grafitti e pela arte urbana".

"Mesmo quando não havia nada em Portugal e nós íamos para Espanha, sempre me lembro de irmos percorrer as linhas de comboio para ver grafitti", conta ao DN.

Em miúda, pela televisão da loja dos pais chegavam-lhe as imagens da MTV que mostravam esse mundo lá fora. Mas também comprava revistas e alimentava o gosto. Quando começaram a acontecer os primeiros eventos em Lisboa, em meados da primeira década de 2000, os manos Rodrigues já seguiam muita coisa que ocorria lá fora. Rendiam-se ao envolvimento das comunidades. E foi assim que foi nascendo, aos poucos, a ideia "de que a Covilhã podia ser um sítio espetacular para fazer um evento destes". O objetivo nunca foi levar para a terra qualquer coisa idêntica ao que acontecia em Lisboa, até pela consciência de que não era possível confundir a beira da estrada com a estrada da beira. "Nunca nos passou pela cabeça recriar o que era próprio de um meio hiper-urbano numa cidade meio rural".

Quando em 2011 os dois irmãos desenharam o projeto para apresentar à Direção Geral das Artes não podiam imaginar que aquele ficaria em 8.º lugar, entre os dez contemplados. Muito menos que viria a transformar a Covilhã de forma tão intensa e permanente. E chegar a outras cidades e vilas do país.

"O Wool tem hoje muitas ramificações, por muitas geografias", sublinha Lara, sabendo que no princípio era (apenas) o verbo: fazer. "Nós somos da Covilhã, nascemos aqui. E crescemos num tempo em que a cidade até tinha alguma pujança cultural, com o Orfeão e o Conservatório, que eram muito ativos, e o coro". Lara e Pedro fizeram parte de cada um deles, também. A arte já lá estava, entranhada, embora sob outras formas. Quando puseram de pé o primeiro festival de arte urbana, foi como se despontasse uma metamorfose. "Nós sempre apostámos muito na comunicação do projeto, desde a primeira edição. E penso que isso fez muita diferença. A arte urbana tem esta capacidade de chegar ao maior número de pessoas, de todas as idades, de todas as classes sociais, de uma forma muito natural. Mas para que funcione, ela tem de ser comunicada diariamente. Para não ser só um trabalho natural em que depois as pessoas não percebem o esforço que ali existe, o envolvimento".

Na primeira edição do Wool, decidiram então fazer o projeto com "um artista de cada vez. E os quatro vieram separadamente; dois portugueses e dois estrangeiros que é mais ou menos o formato que nós hoje ainda mantemos", conta ao DN a diretora artística do festival. "Nessa altura trouxemos os dois únicos artistas profissionais que existiam em Portugal. Por isso costumo dizer que também é através do Wool que se conta a história da arte urbana em Portugal". Seguiu-se o Wool on tour, na LxFactory, e duas vezes por ano ela convidada ilustradores, writers, escultores "para virem criar em grande escala, mas aquelas eram as primeiras experiências que eles tinham". Ali nasceram, afinal, muitos artistas. O primeiro mural de Bordalo II, por exemplo. Ao mesmo tempo, a Covilhã modificava-se por dentro.

"Nos primeiros dias, quando se começa num território virgem, a população estranha. Muitas vezes implica cortar uma estrada, e isso vai chatear um bocadinho... mas a verdade é que, quando as pessoas vão acompanhando, ao terceiro dia já trazem o lanche ao artista, uma bebida. É por isso que costumo dizer que uma intervenção mural é uma performance de longa duração, da qual as pessoas também fazem parte", afirma Lara Seixo Rodrigues. Acredita que esse envolvimento é o mais interessante - "ver que aquela obra, feita por um artista, tem esse poder de transformação". Aconteceu logo ao início do Wool, na primeira ação de todas, que daria origem ao primeiro mural, em frente à Igreja de Santa Maria. "Naquele espaço não se passava rigorosamente nada. E só pelo facto de estarmos ali uns dias a trabalhar, as pessoas habituaram-se a ir até lá. Literalmente montámos uma barraca e cadeiras para as pessoas se sentarem e acompanharem os trabalhos. Chegámos a fazer churrascos em frente à parede. Para mim foi importante perceber que aquilo que eu por vezes procurava a nível da arquitetura - que se pode perder entre o idealizar algo e o construir - conseguia ali, através da arte urbana, transformando a dinâmica do local. Aquela praça passou a ter vida. Até as tunas e os caloiros iam para lá tocar e cantar".

Quem vai hoje à Covilhã para percorrer o roteiro de arte urbana encontra 46 murais, da autoria de artistas nacionais e internacionais, além de 15 peças de pequena dimensão. Lara reconhece que hoje "é mais exigente" organizar o Wool. "Hoje isto é a minha profissão. E por isso é muito mais exigente manter a qualidade. Há um compromisso muito grande, até pelo facto de estarmos a trabalhar em espaço público". Hoje não são apenas os habitantes que ficam ali a presenciar o que está a ser feito - há também muita gente que vem de fora propositadamente para acompanhar.

Depois do Wool, Lara, Pedro e Elisabet passaram a receber convites de muitas entidades, de diversas zonas do país e do estrangeiro. Abrantes, Figueira da Foz, Paris, entre outros. Em 2014 voltaram à Covilhã, mas só a partir de 2017 conseguiram um apoio anual, para não mais parar de a pintar com outras cores. "Sinto que o Wool fez um trabalho muito grande fora de portas para poder voltar a casa". Lara sabia, desde sempre, que santos da casa não fazem milagres. E até isso era preciso contrariar.

Quando ela, o irmão ou a cunhada servem de cicerones no roteiro, contam sempre algumas histórias que fazem parte desta (já longa) história do Wool. "Quando nós fizemos o pastor, em 2011 (que já não existe), e o terminámos, a D. Rosa - que vive em frente, nesse largo - veio agradecer, porque agora tinha companhia à janela. Aquilo tocou-nos imenso. Não imaginávamos aquela aceitação por parte dos idosos. Quanto muito pensávamos que o nosso público seriam jovens, numa cidade universitária. Depois, quando voltámos em 2014, percebemos que a D. Rosa tinha sido costureira. Ela identificou-se muito com a menina do "Portugal pelas costuras". E fez questão de ir agradecer ao artista, porque agora tinha ainda mais companhia à janela". Histórias como essa vão-se sucedendo, fazendo-a acreditar que "o que fazemos pode ser encarado como património comunitário".

Entretanto, ambas as pinturas foram já substituídas por outras, "o que também não é um processo fácil". A ordem natural das coisas, afinal.

De permeio, criou a Mistaker Maker, uma plataforma de intervenção artística através da qual tem levado a arte urbana a vários territórios, desde o público ao privado. É através dela que prepara, por estes dias, mais uma edição do Fazunchar - o festival de artes de Figueiró dos Vinhos, que decorre entre 12 e 20 de agosto. Ali e em qualquer lugar, há sempre uma mudança que está para acontecer.

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