Respondeu pela positiva ao repto de trazer para o almoço vinhos da sua lavra, recaindo a escolha em dois brancos e dois tintos, todos excelentes motivos para conversa solta. João Portugal Ramos é um homem do mundo e é amigo da partilha à mesa. A primeira vindima aconteceu após os seus estudos no Instituto Superior de Agronomia (ISA) em 1981 na Cooperativa da Vidigueira. Fundamental no desenvolvimento da Adega Cooperativa de Reguengos de Monsaraz, onde permaneceu 15 anos e onde provavelmente nasceu a marca Alentejo, que até aos dias de hoje significa vinho macio, frutado e perfumado. O nosso herói representa a primeira geração de enólogos a trabalhar juntamente com a empresa, em entrosamento total e participando nas opções de gestão. O seu filho João Maria, seguiu-lhe as pisadas, estagiou e trabalhou pela Europa e pelo mundo, experiência bem diferente da sua..“Fiz licenciatura em Agronomia no ISA, fiz estágio de dois anos em Dois Portos e depois fui lançado às feras.” A figura do adegueiro era muito importante quando começou, e faz questão de dizer que conheceu adegueiros muito virtuosos, “com quem aprend[eu] sempre muito”..A figura do adegueiro passou a ser a do enólogo residente, mas o importante continua a ser existir uma boa relação com o enólogo consultor. “Sem essa boa relação não é possível fazer um bom trabalho.”.Nem tudo vai bem hoje em dia e, na opinião do especialista com quem partilho hoje a mesa, há desigualdades que urge corrigir. “Temos dimensão, mas comparativamente com os nossos concorrentes de Espanha, França e outros, as ajudas não chegam a tempo da vindima, e os montantes atribuídos são ridículos, face ao que seria necessário.”.A chamada destilação de crise, neste momento ao rubro, é outro alvo de crítica. “Não tem qualquer sentido a variação de preço de destilação de região para região.” E prossegue: “Era muito importante haver um preço igual para todas as regiões. Qual a razão para o Douro receber mais fundos para a destilação do que qualquer outra região do país?”..Na visão de Portugal Ramos, “não só a União Europeia, mas também o Estado, a exemplo dos países atrás mencionados, neste caso pontual, deviam contribuir de forma significativa para o alívio das dificuldades por que os produtores estão a passar. Reconheço, no entanto, que esta medida é apenas um paliativo, e que o setor tem de se autorregular e investir em promoção e fiscalização”..João Ramos chama salienta ainda que “o benefício no vinho do Porto segue um sistema arcaico, que deve ser revisto. Este sistema não incentiva o lavrador a produzir uvas de qualidade, como o potencial da região o justifica”. Nesta região, afirma o enólogo, há excesso de protecionismo, e isso está a asfixiar a região, onde o preço das uvas que não são para vinhos de qualidade ou uvas com benefício, é dos mais baixos do país, sendo este excedente pago ao lavrador quase como um subproduto..Surge o clamor maior, em relação aos engarrafamentos fora da região, “em que algumas empresas podem, por sistema de antiguidade, engarrafar fora da região demarcada, e empresas novas, modernas e com provas dadas como por exemplo a Duorum, Esporão, Santos Lima e Ermelinda Freitas, não podem engarrafar fora da região do Douro, segundo um critério que não podia ser mais discricionário”..Sente-se revolta na forma como expõe o assunto. “Os que chegaram antes de 2003 - 16 empresas apenas -, esses podem engarrafar, quem chegou depois já não pode”. E conclui: “O Douro está fechado, e só prejudica a região, provavelmente a região portuguesa com maior potencial. A situação atual é totalmente anticoncorrencial, beneficiando quem está instalado há mais tempo, prejudicando os pequenos lavradores e novos investidores que acreditam na região.”.Uma refeição feliz.Iniciamos o almoço com Duorum Vinha dos Muros 2023, um branco exuberante de um micro-terroir da Duorum, três mil garrafas apenas produzidas, excelente pronunciação de amargos, frescura a toda a prova. Gabriel Duarte, o sommelier da casa conhece e vibra com o seu ofício e nota-se bem o garbo com que nos assiste. Não é todos os dias que se recebe o grande João Portugal Ramos, afinal..O pão torrado com tomate que a Nunes põe na mesa é uma grande companhia para o excecional presunto que é servido. O branco tem um perfil mineral que é desconcertante, às cegas eu até lhe atribuiria outra proveniência..Cabe aqui um pequeno à parte. A família do lado da mãe de João Ramos foi outrora proprietária da Quinta de Chocapalha, hoje pertença da família Tavares da Silva. 40 hectares de vinha, e conta que quando a sua já desaparecida mãe foi ao Alentejo fez o comentário de ser “maior que Chocapalha”. “Sim, bastante maior, tem 150 hectares”, recorda João Ramos a resposta que deu, em tom de brincadeira..Para os excelentes e carnudos percebes das Berlengas abrimos outro branco, Marquês de Borba Vinhas Velhas 2023, do Alentejo, que me põe a pensar na vida e como pode ser boa. Vem também gamba listada do Algarve e belíssimos carabineiros. Altura oportuna para a confissão franca do grande enólogo: “Quando fui para Estremoz não tinha um metro quadrado sequer de terra”, recorda, explicando: “A aposta no meu projeto foi total e por isso abandonei a atividade como consultor.”.Instala-se a toada marisqueira como só na Nunes é possível e sucedem-se os apaziguamentos..Em modo carnívoro, haviam sido abertos e decantados os tintos pelo oficiante Gabriel Duarte. O.Leucura Douro tinto 2015 e Marquês de Borba Reserva Alentejo tinto 2015 vieram para a mesa e juntou-se a nós Miguel Nunes, proprietário da catedral em que nos encontramos. Clássico e fresco o alentejano, macio, fino e poderoso o duriense. À boa e franca mesa tudo se ameniza.