João de Deus Pinheiro: ministro de capa e espada

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Entre as várias aproximações possíveis ao engenheiro João de Deus Pinheiro, ex-ministro de Portugal e ex-comissário europeu, têm sido propostas na doutrina, pelo menos, três vias de acesso ou chaves interpretativas: a das calças vermelhas, desde logo, a das relações entre hedonismo e política, depois, e, por fim, a da persistência indelével dos boatos assassinos.

As calças vermelho-vivo foram, de facto, um problema gritante e grave, muito grave, na paisagem visual de finais dos anos 80, início dos anos 90. E ele usou-as com gosto, não há como negá-lo. Disso existem abundantes provas documentais, muito garridas, sendo certo que nesse crime, o hediondo delito das calças rubras, o ministro teve bastos cúmplices, adultos maduros, cabeças pensantes, gente da elite que não teve pudor nem vergonha em apresentar-se ao mundo naqueles preparos de antologia e pavor: calças vermelho-vivo, casaco assertoado, camisa aberta, fio ao pescoço, sapatos de fivela, estes em alternativa a mocassins sem meias. Num momento ou noutro, além do titular dos Estrangeiros, também o da Indústria e Energia, Mira Amaral, Pedro Santana Lopes, Paulo Portas ou José Manuel Trigo, do T-Clube, Quinta do Lago, todos acabaram por sucumbir àquela vertigem fatal das pantalonas rojas.

Note-se, contudo, que no contexto da época, em plena euforia cavaquista, as calças vermelhas não eram um signature look ou uma opção estética, pois isso nunca poderiam sê-lo, mas antes, e isso, sim, um statement político-ideológico, o sinal histórico de que Portugal mudara, e muito, desde os turbulentos tempos do PREC, que as elites tinham saído do armário e perdido a vergonha dos anos quentes da revolução. Como todos os revanchismos, este foi abundante e excessivo e, pior do que isso, exuberante e festivo, transbordante em demasia, o que nos conduz à segunda pista interpretativa do engenheiro Deus Pinheiro, a das relações entre hedonismo e política.

"Mas ele até era doutorado, foi reitor do Minho...", é a narrativa compensatória que frequentemente se ouve numa roda de amigos quando alguém recorda esta divina figura, com isso querendo dizer-se que Deus Pinheiro era, e é, muito mais do que a imagem frívola que dele guardamos, uma imagem para a qual, note-se, o próprio contribuiu à larga, num exercício que era, em simultâneo, exibicionista e vaidoso, mas também transparente e honesto, enternecedor até - e, ambos os casos, de uma ingenuidade tremenda. Joãozito Pinheiro não se inibia nem coibia de surgir com gozo nos lugares da moda, de se deixar fotografar nas praias dos ricos, de mostrar que se divertia e que era um homem realizado e feliz, e até de abrir a sua intimidade ao olhar alheio, como sucedeu, por exemplo, numa deliciosa e extensa entrevista que concedeu a Maria João Avillez para um programa justamente intitulado Interiores, da RTP, em 18/9/1992.

A conversa, que decorreu no apartamento lisboeta do ministro, em Campo de Ourique ("o meu refúgio do guerreiro"), foi tão aprazível como ele, João folgazão e bonzão, que entrou logo a matar com um galanteio à entrevistadora no primeiro minuto, bisando no piropo no final da primeira parte, quando ela, alegando sede e calor, lhe pediu um "uisquezinho" e ele, condescendente, sem malícia alguma, largou a bomba: "Ohhh Maria João, sabe porque é que dizem que eu sou mulherengo? Com uma cara dessas, como é que eu lhe posso dizer que não?" Soberbo.

Depois, na segunda parte, ambos de copo de scotch na mão, aos ecrãs do canal público (Portugal, anos 90, tempos maravilhosos...), foram os dois por aí fora, cavaqueando sobre o desconcerto do mundo e a existência humana. Raramente se vira um ministro tão contente em sê-lo, não descartando sequer a hipótese de ser candidato presidencial ("porque não, Maria João?"), um político a falar tão à vontade da sua infância e juventude radiosas, numa "moradia grande com um quintal enorme", em Cascais, além da casa onde passavam férias no Alentejo, dos tempos de farra em que ele, muito doido, pegava toiros de caras, andava em ralis à maluca, cavalgava as ondas nas marés vivas e, enfim, pintava a manta. Na escola, os colegas chamavam-lhe "João do Diabo", não de Deus, um professor qualificara-o como "um estoira-vergas" e Maria João completou o quadro ou cartel tauromáquico dizendo que, em menino, o MNE era "mimado, caprichoso" e que "partia braços, pernas e vidros". Às tantas, e à falta de melhor expressão, a jornalista, tacteando o bicho, perguntou-lhe pela sua "fama de mulherengo" e ele, olhando-a de esguelha, muito matador, arqueou a sobrancelha e confessou que quando era miúdo sempre tivera "imensas namoradas, 50, 60 ou 100 ao mesmo tempo" ("ao mesmo tempo?", perguntou ela, "ao mesmo tempo", confirmou o galã), o que, não sendo mera figura de estilo ou simples gabarolice, terá constituído, convenhamos, uma enorme proeza logística.

A dado passo, porém, o ministro apercebeu-se de que talvez estivesse a esticar-se um bocadito nas fanfarronices e na piropagem após ter dito, entre outros mimos, que na casa que construíra em Braga o quarto mais pequeno tinha "uns 15 metros quadrados", que era "uma tragédia viver num andar" para quem crescera em grandes casas ou que possuía uma colecção de "quadros extraordinários", de "pintores muito bons", comprados com engenho e arte quando estes estavam ainda em início de carreira. Em travão a fundo, emendando a mão, João puxou então das insígnias, convocou os galões e o currículo, falou do curso (Técnico, 1970) e do doutoramento (Birmingham, 1976), das aulas em Moçambique (1970-1973), do esforço que tudo isso custara. Mas era mais forte do que ele: quando começou a embrenhar-se pelos meandros da Química, a sua área de expertise, e perante o rosto fechado da entrevistadora, decidiu explicar-lhe a matéria com base na flagrante analogia que, segundo ele, existia entre a electronegatividade e o sex-appeal, os dois fenómenos causais da atracção das moléculas.

Depois disto, de pouco lhe adiantava dizer que chegara a catedrático com 34 anos, que fora eleito reitor com 39, e por unanimidade, que Balsemão o convidara para o governo em 1981 ou que, como ministro da Educação, fizera funda reforma no sistema do ensino e em clima de paz social. Aos olhos do país, tudo se resumira numa frase dita no começo do programa, "uma coisa é o dever, outra coisa é a parte lúdica da vida", algo que ele, com desarmante candura, dizia não estar disposto a abdicar.

Em França, Espanha ou Itália, um ministro como este teria sido bem tolerado, quiçá mesmo idolatrado por alguns homens e muitas mulheres. No Portugal carrancudo, pardacento e invejoso, aquela joie de vivre toda causava desconfianças, fazia franzir sobrolhos, suscitava a suspeita de que o ministro, na expressão da época, "não lia os dossiês" (hoje fala-se em "ter uma agenda" ou "ter uma agenda própria", podendo a evolução da democracia portuguesa ser analisada à luz desta sucessão de metáforas com materiais de papelaria). No decurso da entrevista, Pinheiro saudaria o "são nacionalismo português", feito, segundo ele, de uma singularíssima mescla entre "o borrego com ervilhas e o galo de Barcelos", de um lado, e a cultura erudita, do outro. Nessa radiografia almoçarista da alma lusitana, de resto curiosíssima, não lhe ocorreu um outro traço marcante do nosso ser colectivo, o legado persistente do salazarismo, que deixou na nossa cultura cívico-política as marcas da frugalidade e do ascetismo, mas também um dos mais sagazes ditos sobre a arte de governar, aquele que assevera que, em política, o que parece é.

E o que parecia era. Justa ou injustamente, aos olhos dos cidadãos, em parte por culpa da imprensa, na outra por culpa dele, João de Deus teimava em ser João Diabo, com várias declinações - enfant nas versões gâté ou terrible, playboy, marialva, bon vivant, estoira-vergas, femeeiro - e, para mais, tudo isto se processava com um ministro de um governo liderado por Aníbal Cavaco Silva, tido por homem frugal e austero, o que tornava ainda mais salientes aquelas originalidades do MNE, com foros de ousadia e de desafio ao chefe. No fundo, e talvez sem se aperceber disso, João de Deus Pinheiro procurou fazer a síntese dos dois primeiros-ministros que servira e que sempre admirara, buscando em Soares a caução para o seu hedonismo e em Cavaco a aura de competência e rigor. Esqueceu-se nesse transe que a junção de tais contrários, o yin e o yang da política portuguesa dos anos 90, era missão impossível ou no mínimo arriscada, e que, pese alguns exemplos pretéritos (um antecessor seu nas Necessidades dissera que o ordenado de ministro não lhe dava sequer para os charutos e fora fotografado num cruzeiro às Caraíbas), os portugueses não apreciavam, nem apreciam, que os governantes andem de braço dado com milionários em festas e jantaradas.

Foi pena e injusto, obnubilou muitos feitos - por exemplo, são dele e de Braga de Macedo as assinaturas lusitanas no Tratado de Maastricht, como a ele se deve, em boa parte, o êxito da presidência portuguesa das Comunidades, em 1992, reconhecido por Soares e Cavaco nas respectivas memórias -, mas assim é a política, mormente a portuguesa: raramente grata ou justa, toda feita de aparências, exigindo, pois, especiais prudências, que Deus Pinheiro não teve e, sobretudo, não quis ter.

O pior, contudo, estava para vir, e surgiria, como é sabido, sob a forma caricata de uma manta de lã. Mais precisamente de uma manta "das quentes e boas", de "lã de muito boa qualidade, de padrão escocês, em tons de castanho e encarnado escuro", tal era o rigor e a minúcia com que O Independente, em notícia de 26 de Julho de 1991, intitulada "Deus Pinheiro, El Mantador", descreveu o objecto furtado pelo ministro dos Estrangeiros, após ter voado de Lisboa para Nova Iorque, no dia 17 desse mês, a bordo de um avião da TAP, cujo modelo também se especificava, um Lockheed 1011 Tristar.

Quem mente, por via de regra, fá-lo com cópia de pormenores, de factos irrelevantes que procuram tornar uma história mais credível, mais sumarenta e picante: naquele caso, e para apimentar a coisa, além da alusão à qualidade da manta (e, logo, do seu valor, a justificar a cupidez do ministro e a inveja dos leitores), dizia-se que Deus Pinheiro viajava na companhia do primeiro-ministro, Cavaco Silva, com destino ao México, a caminho da conferência de Guadalajara; informava-se também que o incidente vinha "na linha das cenas aéreas do ministro em outras viagens oficiais", dizendo-se "umas vezes é a lagosta que falta, outra são as mantas que se pegam às mãos. São as obras de Deus", mas não se explicava o que acontecera com as lagostas (outro sinal de riqueza), isto é, se também houve furto de crustáceos ou se o ministro reclamara da sua ausência no menu de bordo da executiva. Referia-se ainda que João de Deus Pinheiro "não queria que se notasse" que gamara a manta, a prova provada que actuara com dolo, que a tripulação entendeu não incluir o episódio no relatório de voo mas logo o comunicara "às mais altas instâncias da transportadora aérea nacional" e que, em resultado disso, "a gerência da TAP ficou muito embaraçada com o caso da manta desaparecida", até porque - e note-se o detalhe classista - "desvios dessa natureza não são mesmo nada habituais da classe executiva", ao contrário do que era costume entre os pelintras da turística, que levavam para casa tudo quanto podiam, mantas, almofadas, talheres de plástico, recuerdos vários.

Um case study sobre como se constrói uma mentira, mas, pior ainda, sobre como, perante uma boa história, com laivos anedóticos e antipoder, acreditamos em tudo, mas tudo, quanto nos ponham à frente: por um lado, porque, no íntimo dos íntimos, nos sentíamos irmanados com o ministro-ladrão, porque sabíamos que, no lugar dele, também nós teríamos trazido para casa aquela manta da TAP; depois porque, sendo um incidente menor, menoríssimo, de tanto valia que fosse verdade ou mentira, mas dava para umas anedotas, proporcionava risotas - e isso, em toda e qualquer circunstância, é sempre o mais importante.

Hoje, volvidos 32 anos, é demasiado óbvio, gritante, que havia ali moscambilha: era credível que os pilotos da TAP comunicassem à gerência da companhia que um ministro levara consigo uma manta de um avião, igual a centenas de outras? E era credível que a gerência da TAP tivesse ficado "muito embaraçada" com o desaparecimento de uma simples manta de lã, facto, aliás, corriqueiro entre os passageiros da turística?

O Independente contactou a assessora de imprensa do ministro, que respondeu com um lacónico, mas expressivo, "devem estar a gozar comigo", e Deus Pinheiro não exerceu o direito de resposta. Na semana seguinte o jornal voltaria à carga, em notícia com o título "El Mantador II", trazendo uma novidade de peso: o jornal tinha falado com os tripulantes do voo e, mais ainda, tinha falado com o presidente da TAP, Monteiro de Lemos, que "confirmou a história".

Logo quando saiu a notícia, João de Deus Pinheiro apresentou queixas à justiça e à Alta Autoridade para a Comunicação Social. Pouco depois, em 14 de Agosto, esta última emitiu uma deliberação bizarra, ademais por unanimidade: no ponto II.1 disse ser "competente para se pronunciar sobre o assunto" (sic), nos termos de várias disposições legais, que citou, mas contradisse-se linhas abaixo e acabou concluindo, vá-se lá saber porquê, "não ter competência legal para se pronunciar sobre a questão concreta suscitada pelo ministro João de Deus Pinheiro" (a deliberação da AACS está disponível online).

A decisão da justiça surgiria mais de dois anos depois, em Janeiro de 1994, já com Deus Pinheiro saído das Necessidades, onde entretanto fora substituído pelo seu secretário de Estado dos Assuntos Externos e da Cooperação, José Manuel Durão Barroso. Por indicação do ex-ministro, O Independente não só foi condenado a pagar uma avultada indemnização à Associação de Pais e Amigos com Deficiência Mental de Braga como sofreu a suprema humilhação de ter de publicar nas suas páginas um desmentido formal, redigido nos termos ditados pelo advogado de Deus Pinheiro. O jornal admitiu, preto no branco, que "os factos não eram verdadeiros" e que fora "induzido em erro por fontes que julgava credíveis", já que "a história da manta nasceu no próprio governo a que João de Deus Pinheiro pertencia". Apontava-se o dedo à "maldade" de "um dos membros do governo, que, aliás, não ia no avião, mas era, em princípio, bem informado sobre as questões das Necessidades". E mais disse que "um membro da entourage pessoal de Cavaco Silva acrescentou supostamente pormenores interessantes". Frisava-se, por último, que o presidente da TAP, contactado por um dos editores do jornal, "declarou que conhecia a história, mostrando-se incomodado por ela" - ou seja, e em suma, Monteiro de Lemos não confirmara o episódio, apenas dissera que o conhecia, nada mais do que isso.

Apesar de ambos sempre o terem negado insistentemente e de Paulo Portas nunca ter revelado as suas fontes, é hoje consensual que os autores da patranha terão sido Durão Barroso e António Martins da Cruz, à época assessor diplomático do gabinete do primeiro-ministro, tal como é afirmado no livro O Independente. A Máquina de Triturar Políticos, de Filipe Santos Costa e Liliana Valente (Matéria-Prima Edições, 2015). De resto, no desmentido que o jornal foi obrigado a publicar, e como atrás se viu, só faltava a fotografia de um e do outro.

Curiosamente, os três principais envolvidos na história - Durão Barroso, Martins da Cruz, Paulo Portas - encontrar-se-iam no XV Governo Constitucional e, de uma forma ou de outra, todos iriam morder o pó ou experimentar na pele a acção corrosiva dos boatos e dos trials by newspaper que precipitariam a queda de Martins da Cruz (no Dianagate) e o fim da Alternativa Democrática de Portas e de Marcelo (por causa do Caso Moderna), entre muitos outros rumores, inclusive sobre a vida privada do dirigente centrista, ciclicamente usada para o achincalhar com barbárie, como sucedeu com o Manifesto Anti-Portas em Português Suave, de Carlos Candal, em 1995, com a frase "o senhor não sabe o que é gerar uma vida", de Francisco Louçã, num debate sobre o aborto, em 2005 (da qual Louçã, logo depois, se arrependeu), com uma alusão de Ana Gomes no blogue Causa Nossa, em Outubro de 2010, e, a pior de todas, quando o inenarrável arquitecto Saraiva, sempre ele, teve o desplante de afirmar que Miguel Portas, já falecido, lhe confidenciara em tempos as tendências homossexuais do irmão [cf. José António Saraiva, Eu e os Políticos - O que não pude (ou não quis) escrever até hoje, 2016, p. 235]. Recentemente, no Facebook, correu a notícia de que Durão Barroso falecera, em página intitulada "José Manuel Durão Barroso, R.I.P."; como sempre, os pormenores milimétricos, dizendo-se que o ex-PM falecera às 11 horas da manhã do dia 6 de Julho de 2023 e aceitando-se o envio de condolências, esparrela ignóbil em que caíram centenas de admiradores incautos e que obrigou a um desmentido por parte dos próximos do antigo primeiro-ministro.

Perante tudo isto, é caso para concluir que João de Deus Pinheiro foi vingado, e bem vingado, por causa da falsidade da manta, a qual, de resto, não terá afectado sobremaneira a sua carreira política (comissário europeu, 1993-2000; deputado e vice-presidente do Parlamento Europeu, 2004-2009; cabeça de lista por Braga às legislativas de 2009 e, ao que parece, deputado por meia hora) nem empresarial ou institucional, onde foi administrador de diversas empresas (Galp Energia, Lusotur, Grupo Pantatlântica) e de agremiações como a Fundação Ilídio Pinho, a Fundação Robert Schumann, o World Monuments Fund e, last but not the least, o Conselho Nacional da Indústria do Golfe, desporto em que se celebrizou, nem sempre pelas melhores razões, já que, quando passou pela Comissão e pelo Parlamento Europeus, foi alvo de frequentes alfinetadas dos media, sobretudo dos tablóides antieuropeístas ingleses, por alegadamente passar mais tempo nos relvados esburacados do que nos insípidos corredores de Bruxelas.

Em 2004, quando se começou a falar na sua candidatura ao Parlamento Europeu, disse-se em surdina, nas hostes sociais-democratas, que ele seria o "candidato do golfe" contra o "candidato da crise" (Sousa Franco, pelo PS) e lembrou-se, claro, o incidente da manta, indelével e eterno (cf. Correio da Manhã, de 1/4/2004). Tal não o impediu de ser cabeça de lista de uma coligação do PSD com o CDS-PP de Paulo Portas, a prova de que a vida dá muita volta e a política mais ainda. "O professor João de Deus Pinheiro foi ministro dos Negócios Estrangeiros vários anos, foi comissário europeu em nome de Portugal, sempre nos representou bem, conhece a Europa de cor e salteado, não é responsável nem por dívidas públicas descontroladas nem por défices excessivos, vai de cabeça erguida, é uma pessoa serena e de bom senso", proclamou, em 2004, o antigo director d"O Independente.

Hoje com 77 anos (nasceu em Lisboa a 11 de Julho de 1945), João de Deus Rogado Salvador Pinheiro é o que sempre foi, um homem feliz, exuberantemente feliz, que continua a ser fotografado à beira-mar na companhia da mulher, Manuela, dos filhos e dos muitos netos, para gáudio das revistas cor-de-rosa, sobretudo no período estival, a época de encher chouriços (é vasta e frondosa a bibliografia atinente: v. g., "Manuela e João de Deus Pinheiro estão à espera de mais dois netos", Caras - Famosos, de 13/8/2008, ou "João de Deus Pinheiro em tarde romântica na praia", Flash! - Celebridades, de 26/5/2017). Nisso, sobretudo nisso, no indestrutível optimismo com que encara o mundo (e a sua pessoa), reside o trunfo maior desta personagem, que mais parece tirada de um romance de capa e espada ou de um filme de piratas, com um papagaio ao ombro e pala no olho esquerdo. De quando em vez, opina sobre política internacional: por exemplo, em 8 de Fevereiro de 2014, escassos dias antes da invasão da Crimeia, afirmou, algo escusadamente, que "a Ucrânia não é viável sem a Rússia" e que a aproximação da Rússia à UE era "uma inevitabilidade" (cf. Notícias ao Minuto, 8/2/2014).

Por tudo quanto fez na vida, e sobretudo pela alegria que tem em vivê-la, não havia necessidade - e razão nenhuma, absolutamente nenhuma! - de ter perpetrado aqueles dois crimes sob a forma de romance, esses, sim, bem mais graves do que a manta aérea e até do que a calça rubra. Dos dois livros, um é pior do que o outro, e vice-versa: o primeiro, Eu, abaixo-assinado..., de 2001, constitui uma incursão ficcional pelos tenebrosos meandros da política e dos negócios à escala local de Leiria, metendo personagens com nomes de antologia (Marília, Horácio, Balbina, Deolinda, Silvina, Silvino, Felício, Amândio), uma lua-de-mel quilométrica, que começa nas Seychelles, passa pelo Quénia, vai a Nova Iorque, salta para São Francisco, São Diego, Las Vegas e desagua em Leiria, com os pombinhos extenuados, seja pelas diferenças do fuso seja pelo que fizeram entrementes: aconteceu uma "introdução de dedos e da mão [de Alfredo] no interior do fato de banho [de Maria do Carmo]"; e, por um prodígio da engenharia, ou da cirurgia plástica, houve "uns mamilos que pareciam artificialmente sobrepostos para lhe conferir um ar voluptuoso", à vista dos quais houve também, e obviamente, uma "erecção que aparecia agora como uma arma brandida". Alfredo "já não era capaz de parar", "Maria do Carmo compreendeu-o e abriu as pernas" e, apesar do atrito da areia (estavam numa praia), sucedeu "êxtase ao fim de poucos segundos". Alfredo, claro, apanhou um escaldão e, de regresso ao hotel, ela aplicou-lhe um creme retemperador (da marca Caladryl), ele animou-se, quis festa, ela recusou a oferta de cunilíngua, mas aquiesceu, algo infantilmente, na "posição papá-mamã", propiciadora de um "orgasmo repetido".

Dois anos depois, o antigo MNE reincidiria com Por Linhas Tortas, este passado num ambiente empresarial e com um enredo povoado por clichés de opereta: Maria Lúcia, casada com Pedro Soromenho, aluga um T0 na Ajuda para se avistar com o amante, Orlando Sertório, "um trintão bem-parecido, monitor de ténis" (a cama que aí instalam, para efeitos inconfessáveis, era uma king size e ocupava mais de metade do apartamento). Entretanto, Pedro é despedido da empresa McNully e, para passar o tempo, vai fazer bricolage para o seu monte do Alentejo, mas às tantas embrulha-se com Francisca, uma rapariga fogosa, de 24 anos, a idade dos seus filhos, que o surpreende em Crane, quando Pedro decide ir passar uma temporada sozinho a Barbados. O que se passa em Barbados costuma ficar em Barbados, mas, neste caso, saltou para as páginas 175 e seguintes de Por Linhas Tortas, sob a forma de "mamilos róseos empinados", "montinhos leves sobre o umbigo", um "rabo firme e proporcionado" e, enfim, "um rosto a quem o sexo trazia brilho e beleza acrescidos", adereços que proporcionaram que os dois gritassem: primeiro ela, a seguir ele, segundos volvidos, e "como nunca o fizera. Com alma, com felicidade". Provavelmente, os berros deveram-se ao facto de terem sido metidos a martelo no elenco de um romance do engenheiro Pinheiro, coisa que, em direitas contas, nunca e jamais saberemos, com pena.

Há mais de 10 anos que o ex-ministro não publica uma nova obra literária. Diremos só que faz bem. Deus nem sempre é perfeito, mas sabe aprender com os seus erros.

* Prova de vida (18) faz parte de uma série de perfis.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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