Já são mais de 700 as geladarias artesanais no país
Chocolate, baunilha e morango. São estes os três sabores de gelados mais consumidos em todo o mundo. Por mais voltas que a Terra dê, e por mais que a tecnologia avance, um bom gelado, um gelado premium, será sempre o resultado de uma escolha criteriosa dos ingredientes, de uma receita apurada, em que a arte do mestre geladeiro é a "cereja no topo do bolo", que é como quem diz, no topo do gelado.
A origem deste produto não é clara: há fontes que referem ter surgido dos árabes (sberbeth, atualmente sorvete, é a expressão árabe para "neve doce"), outras afirmam ter origem na China, e há relatos históricos de que os antigos egípcios e posteriormente os romanos ingeriam bebidas de frutos misturadas com neve. Certo parece ser que foi o explorador Marco Polo que introduziu o seu fabrico na Europa, tornando Itália o centro mundial da geladaria de luxo. Adotado pelas cortes reais em vários países, terá entrado nos cardápios americanos via George Washington, o primeiro presidente dos Estados Unidos, que dizem ter comprado uma máquina para fazer gelado de baunilha.
Em Portugal, este hábito de consumo terá entrado na corte portuguesa durante a dinastia filipina e no início do século XVII já havia inúmeros fabricantes na capital. Foi crescendo a partir de 1900, em plena expansão na década de 30, mas só em 1958 foi publicada legislação para o setor, obrigando à venda de gelado embalado. Foi aqui que surgiu o fabrico do famoso gelado de "pauzinho", o segmento da geladaria que mais se desenvolveu em Portugal a partir dessa data, com o aparecimento dos gelados industriais em detrimento das pequenas produções artesanais.
Foi em 1959 que a fábrica da Olá iniciou a sua produção em Santa Iria da Azóia, nos arredores de Lisboa, inaugurando aqui o conceito de democratização do consumo dos gelados, tornando-o cada vez mais acessível. Epá, Perna de Pau, Cornetto são alguns dos produtos estrela da marca que pertence ao universo Unilever, em parceria com a Jerónimo Martins (dona da cadeia de supermercados Pingo Doce). O Cornetto de morango é o produto mais exportado da fábrica nacional - que vende para o exterior cerca de 50% da sua produção - uma vez que tem uma receita única no mundo. É também um dos best seller no mercado português, com cerca de 10 milhões de unidades vendidas ao ano, ao lado, por exemplo do Magnum de amêndoas.
O mercado mundial de gelados deverá atingir, em finais deste ano, qualquer coisa como 70 mil milhões de dólares (cerca de 68,5 mil milhões de euros), segundo projeções da multinacional de dados, Statista, que avança ainda que, em 2024, este valor deverá situar-se muito próximo dos 75 mil milhões de dólares (cerca de 73,4 mil milhões de euros). Este mercado é dominado pela Unilever (Olá, Ben&Jerry"s), pela Néstle, pela General Mills (Haggen Dazs), entre outros grupos. Segundo a Statista, o mercado nacional rondará os 176 milhões de dólares (cerca de 172 milhões de euros) com uma previsão de crescimento para os 275 milhões de dólares (cerca de 268 milhões de euros) em 2025. O consumo per capita português situa-se nos 6,1 litros, contra uma média europeia de 6,2 litros. Segundo o site WorldAtlas, os maiores consumidores do mundo são os neozelandeses, com um consumo per capita que atinge os 28 litros por ano, seguidos dos norte-americanos, com uma média de 20 litros anuais e na Europa, os finlandeses são os maiores apreciadores, com mais de 14 litros anuais por pessoa. Curiosamente, segundo dados da Eurostat relativos a 2020, o maior produtor de gelados europeu não é a Itália, como seria de esperar, mas a Alemanha, com 642 milhões de litros produzidos, seguido da França, com 516 milhões e só depois a Itália, com 509 milhões de litros. A França, a Holanda e a Alemanha foram os maiores exportadores deste produto, ficando aqui a Itália em quarta posição.
O mercado nacional dos gelados é muito parco em dados: a associação que representa o setor, a ANIGOM, não se mostrou disponível para responder às nossas questões, pelo que pouco se conhece sobre o comportamento deste segmento de atividade. O estudo TGI da Marketest, realizado em julho de 2021, mostra que mais de 5,2 milhões de indivíduos consumiram gelados individuais (gelados à unidade) nos últimos 12 meses, o que corresponde a 61,6% dos residentes em Portugal continental com mais de 15 anos.
Certo é que o mercado nacional é ainda liderado pela Unilever, que deverá ter mais de 60% de quota de mercado com as suas marcas de gelados de impulso, consumo fora de casa, e algumas das suas marcas de take away - consumo em casa -, como a Carte D"Or, a Viennetta, por exemplo, segmento no qual terá menos de 50%. "As geladarias artesanais têm estado a conquistar terreno à produção industrial. Podemos dizer que há atualmente mais de 700 geladarias artesanais e similares no nosso país", afirma Vitor Carvalho, fundador da Escola do Gelado. Este projeto surgiu em 2016, em Vila Nova de Gaia e tem atualmente um polo em Albufeira, e o empreendedor assegura que esta é a única escola de gelado artesanal na Península Ibérica. "A escola surgiu para dar formação na área do gelado artesanal, que ao contrário da ideia comum, é algo tradicional em Portugal. Na década de 30, do século passado, havia bastantes iniciativas empresariais no que diz respeito ao gelado artesanal", refere Vitor Carvalho.
Em seis anos de atuação, já formou mais de 200 alunos e apoiou a abertura de cerca de 50 projetos de geladaria. Este profissional, engenheiro de profissão, trabalha na área de eficiência energética e de refrigeração e apercebeu-se de que as pessoas que trabalhavam nestas áreas não tinham informação sobre os gelados artesanais, detetando aqui uma oportunidade de negócio. "Eu aprendi a fazer gelado artesanal há 15 anos e acabei por ir a Itália aprender com os grandes mestres, mas sempre como um hobbie. Nestas formações desenvolvi o meu próprio método de fazer as receitas", explica. Em 2016 surgiu então a oportunidade de partilhar com os outros o seu conhecimento, e, à semelhança do que é habitual em Itália - só Roma terá cerca de seis escolas de gelado artesanal -, abriu então uma escola de formação. Cerca de um terço dos seus alunos lançam projetos de empreendedorismo nesta área, muitos deles na faixa dos 40 anos e que vêm neste setor uma mudança de vida. Além de portugueses, na sua maioria, a Escola do Gelado também recebe formandos da França, do Reino Unido - porque também dá os cursos em inglês e francês - de Angola, de Moçambique, Cabo Verde, São Tomé, entre outras origens. Este especialista esclarece a diferença entre gelados artesanais e gelados semi-industriais: a verdadeira diferença está nos ingredientes - os artesanais usam fruta e não preparados semielaborados - e nos produtos químicos que são adicionados. Há ainda uma outra distinção, entre gelados e sorvetes: os primeiros são à base de leite ou natas e os segundos de água e fruta. "Nos gelados artesanais podemos personalizar todos os ingredientes. O grande problema aqui é chegar à receita certa", explica Vítor Carvalho.
O negócio do gelado artesanal é, por definição um negócio familiar, pequeno, sem grande ambição de expansão, mas lucrativo e com margens interessantes (mais interessantes até para quem faz tudo, desde a preparação da fruta, do que para quem compra preparados), já que sendo um produto premium é valorizado pelo mercado. Este dinamismo atual, que não existia há 10 anos, está muito em linha com as tendências internacionais de crescimento deste segmento. Com o advento dos chefs Michelin, estrelas de televisão, os gelados artesanais ganham contornos de sobremesa gourmet, criando apetência para o seu consumo nas mais variadas formas. Em Portugal, estas novas tendências acompanham o crescimento do turismo no país, a chegada de globetrotters e nómadas digitais, que trazem consigo o seu lifestyle. Vegan, sem lactose, sem aditivos, sem açúcar, sem glúten, com inúmeros sabores, cada vez mais diferenciados, com sabores da fruta da época e locais, são algumas das maiores tendências do mercado atualmente. "Houve uma clara mudança de consumo no mercado nacional, em muito pela entrada de inúmeros estrangeiros no país, e já se vendem gelados praticamente o ano todo", afirma Manuela Carabina, mestre geladeira e fundadora da Fragoleto.
Falar de gelados artesanais em Portugal é ter de, incontornavelmente, falar no percursor das geladarias tal como as conhecemos hoje, Attilio Santini, que abriu em 1949 na praia do Tamariz, no Estoril, a sua primeira loja Santini. Italiano, neto e filho de mestres geladeiros, instalou-se em Portugal com um negócio que ainda era à época um luxo. Apesar da sua ligação a membros das casas reais, ministros e personalidades influentes, aos poucos tornou o gelado um produto acessível ao público. A sua receita italiana artesanal, exclusiva, com bolacha que ainda hoje é produzida da mesma forma, depressa se tornou um fenómeno. Hoje, a Santini, aliada a um grande grupo acionista, já tem 12 lojas a funcionar - uma no Porto, outra em Faro, e as restantes na área de Lisboa -, mas orgulha-se de manter os mesmos padrões de qualidade da receita original. "Estamos muito focados nos sabores tradicionais, seguimos as receitas originais do meu avô. Vamos fazendo algumas coisas novas, mas sempre tendo em conta o tradicional, usando frutas nacionais, o mais frescas possível. Para nós, o crescimento só faz sentido se for mantida a qualidade que caracteriza a marca", explica Eduardo Santini, administrador do grupo.
O especialista explica ainda que este é um produto cada vez menos sazonal, e que apenas uma das suas lojas - a mais antiga, em Cascais - fecha durante dois meses no inverno. A pandemia não foi meiga para o negócio, que está agora a recuperar e prestes a alcançar as vendas de 2019. "Estamos a trabalhar bem, mas com alguns problemas, como a falta de recursos humanos. Relativamente a sabores, lançámos algumas novidades, fizemos alguns formatos diferentes, como o Picolini, que está a registar um crescimento muito interessante. O morango continua a ser o nosso best seller", explica Eduardo Santini. O Picolini, que assume o formato de gelado de pauzinho em oito aromas, tem as opções vegan, sem lactose e sem glúten. É uma aproximação cada vez maior às exigências do mercado.
Em 1936, o avô de Angelo Sala, Arcangelo Sala, abriu uma das primeiras geladarias em Lisboa, a Veneziana. Com fábrica na Avenida de Berna, a marca distribuía os seus gelados nas ruas da cidade em carrinhos ambulantes. Quem continuou este negócio, que ainda perdura - tem atualmente loja na Praça dos Restauradores - foi o seu tio e os seus primos. "Trabalhei sempre na Veneziana, até que em 2014 abri um projeto meu, a La Fabbrica, mantendo a referência à antiga fábrica da Avenida de Berna, que era muito conhecida em Lisboa", afirma Angelo Sala. Nascido entre as panelas, como diz, tem larga experiência no ramo dos gelados, e utiliza ainda a receita original do seu avô, fazendo o seu produto de forma artesanal. "Transformo toda a matéria prima natural, tal como aprendi, e é assim que continuo a fazer os meus gelados. Faço ainda a cassata, um produto de origem siciliana que era muito apreciado na Veneziana, e que há muito poucas geladarias a fazer. Dá muito trabalho, acaba por ficar um produto caro", diz.
Situada na Rua Dona Filipa de Vilhena, a geladaria mantém o mesmo hábito do antigamente, fechando dois meses no inverno, apesar de Angelo Sala, admitir que é um produto cada vez menos sazonal. "Apesar da evolução, o tipo de sistema e máquina que utilizo na produção dos gelados é ainda muito similar ao das geladarias dos anos 40 e 50. A evolução sentida foi sobretudo na refrigeração e armazenamento. Algumas máquinas que tenho no fabrico de gelados, como por exemplo, as batedeiras que fazem o chantilly para as cassatas, ainda são do tempo do meu avô", explica este profissional. Revela que, no caso dos gelados de amêndoa e avelã, torra o produto num tacho de cobre - ainda tem o tacho do tempo do tio - que mexe com colher de madeira, moí as amêndoas e avelãs e são essas que entram na composição dos gelados. Faz o mesmo com o caramelo, que é feito artesanalmente com o açúcar queimado, e com a baunilha, que é feita a partir da vagem. "Uma bola de gelado fica mais caro a mim do que outra bola de gelado fabricada de maneira mais industrial. Mas depois o cliente é que vai julgar o produtor", diz. Como a geladaria não está situada numa zona muito turística, não é este o seu tipo de clientela, e não produz para revenda, apesar de ter solicitações nesse sentido. Aposta muito nos sabores da época, que só tem quando há fruta fresca, como por exemplo, o gelado de tangerina e o de pera, dois dos mais apreciados no menu.
Foi em maio de 2013, que Pedro Ramos, engenheiro de formação, depois de ter trabalhado vários anos em Itália, viu na geladaria uma boa oportunidade para abrir o seu próprio negócio. Surgiu assim a Geladaria Portuguesa, com ponto de venda no Castelo de S. Jorge, onde 95% dos clientes são turistas estrangeiros. Para este empreendedor, além da qualidade, este é um negócio em que a localização é tudo. "Tivemos outro espaço aberto em Alfama, mas acabámos por fechar por causa da pandemia", afirma o empreendedor. Além de venda direta ao público, a Gelataria Portuguesa tem ainda clientes de revenda e trabalha com hotéis e restaurantes conceituados, área de negócio que já representa 20% das receitas totais.
Antes de decidir avançar com este projeto, Pedro Ramos fez formações em Itália, na Índia e em Portugal, para conhecer as várias tendências de mercado. "Escolhi a Índia por causa das infusões e da forma como este povo vê o mundo alimentar. Surgiu a oportunidade de estar uma semana em Nova Deli com um chef indiano que trabalhava nesta área" afirma. Afirma que apena utiliza ingredientes naturais, leite e natas frescas, e pastas de frutas (algumas, nem todas) feitas na sua área de produção, em Marvila, um espaço de 100 metros quadrados de onde parte diretamente a sua carrinha da distribuição. "Temos uma componente artesanal muito elevada na nossa produção", explica Pedro Ramos. Os sorvetes de fruta são todos vegan, e, quer nos sorvetes quer nos gelados, utilizam adensantes naturais, como fibra de milho ou farinha de alfarroba. Antes da pandemia, ponderou se franquiar esta marca seria um caminho para o seu negócio, mas nestes dois anos deixou arrefecer esta solução, que, no entanto, não está fora de questão. "A covid-19 trouxe desafios imenso, e estamos agora, aos poucos, a recuperar. O turismo tem ajudado, estamos ao nível de 2019, mas as feridas ainda cá estão", desabafa.
Biológico, vegan, sem glúten, sem açúcar. A Fragoleto, instalada na Rua do Comércio, em Lisboa, foi a primeira geladaria portuguesa a ter certificação biológica em Portugal. Desde 2016, data da certificação, que a marca produz icepops (gelados de pauzinho) em modo biológico e caixas isotérmicas, de 400 mililitros, compostáveis (decompõem-se na natureza), que podem ser compradas em lojas e supermercados de produtos biológicos. Fundada em 2004 pela mestre geladeira Manuela Carabina, o projeto surgiu numa altura em que havia muito pouca oferta no mercado nacional, que era dominado por algumas marcas mais antigas. "Na altura eu trabalhava na área da comunicação e estava a pensar em criar o meu próprio negócio. Esta ideia surgiu porque fiz um gelado para uns amigos, que gostaram tanto que sugeriram que abrisse uma loja de gelados, e a ideia começou a germinar" afirma a empreendedora. Decidiu então ir para Itália, onde fez formação para aprender toda a técnica, e abriu um pequeno espaço, na Rua da Prata. "Neste negócio gosto sobretudo da parte criativa, da produção em si, da criação das receitas, dos gelados, e conseguir ter produtos inovadores", afirma Manuela Carabina. A empresa cresceu e atualmente está num espaço maior, quer de venda direta, quer de produção, e iniciou a revenda, fornecendo restaurantes, outras geladarias, e lojas, como por exemplo as Go Natural, do grupo Sonae. A aposta nos produtos biológicos tem a ver com o seu próprio estilo de vida enquanto consumidora, e de ter o negócio ajustado àquilo que acredita enquanto cidadã. Desde sempre procurou produtos de qualidade, fornecedores locais de fruta, fazendo sempre uma seleção cuidada, pois é nisso que assenta o seu conceito. É já uma marca premiada internacionalmente: em 2018 venceu a edição portuguesa do Gelato Festival e foi representar o nosso país à final, em Itália, com o gelado mediterrânico, que é feito com alfarroba, amêndoa e figo, tendo arrecadado o terceiro lugar. Já em 2022 ganhou o Prémio 5 estrelas na categoria de gelados biológicos.
Conhecedora deste mercado, Manuela Carabina, afirma que o nicho do gelado artesanal mudou muito nos últimos anos e que proliferam agora inúmeros espaços o que, em parte, se deve ao investimento de muitos italianos que se instalaram no país. "Mas não são só os italianos que sabem fazer bons gelados, os portugueses também fazem", graceja.
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