Já andamos há um século a atrasar os relógios uma hora
Quando forem duas horas de domingo, os relógios atrasam para a 01.00. Há cem anos que dividimos o ano em dois horários. Se no início foi a poupança de energia a ditar a opção, hoje discute-se a saúde e o conforto das pessoas
Na madrugada de hoje para amanhã, quando os ponteiros marcarem as 02.00, os portugueses voltam a atrasar uma hora aos seus relógios, um ritual que começou precisamente há cem anos, motivado por poupanças energéticas. Mas ao longo deste século houve exceções à regra e tivemos anos em que o nosso horário ficou alinhado com o resto da Europa.
Em Portugal houve um período de quatro anos em que foi adotada a hora central europeia. Foi em 1992 (não houve mudança para a hora de inverno) e durou até 1996. "Não era uma boa solução. Teve impactos negativos. No inverno de manhã ainda havia estrelas no céu e no verão havia luz solar até depois das 22.00. Teve efeitos nas pessoas e no rendimento. Houve um aumento de acidentes rodoviários, porque as pessoas saíam de manhã ainda a dormir . O consumo de ansiolíticos disparou e teve um grande impacto nas escolas, sobretudo no inverno", recorda Rui Agostinho, diretor do Observatório Astronómico de Lisboa (OAL), entidade que tem a responsabilidade sobre a hora legal em Portugal.
As primeiras ideias para mudar a hora tiveram eco no século XVIII, com o americano Benjamin Franklin a sugerir aos franceses, durante uma estada em Paris, que acordassem mais cedo para aproveitar a luz solar. Anos mais tarde, em 1895, na Nova Zelândia, George Hudson foi o proponente do adiantamento de duas horas durante o verão. Houve experiências locais na Inglaterra e no Canadá, mas foi o Império Alemão o primeiro a avançar oficialmente com a mudança de hora.
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Portugal esteve quatro anos na hora central europeia, entre 1992 e 1996
Foi em 1916, em plena I Guerra Mundial, e a medida foi influenciada pelo esforço bélico e pela poupança de carvão. O império austro-húngaro seguiu e a Inglaterra também. Portugal acabou por também se incorporar nesta mudança, de imediato em 1916. "Foram sobretudo problemas relacionados com o esforço de guerra que levaram a Alemanha a avançar. Portugal seguiu isso porque toda a Europa o fez e assim conseguia agilizar melhor as relações com os países vizinhos", disse ao DN Rui Agostinho.
Passaram cem anos, com cíclicas discussões pelo meio sobre os benefícios da mudança de hora, oficialmente o Daylight Saving Time (DST). E faz sentido hoje? "A União Europeia tem a ideia de que sim. O somatório de interesses é manter a hora de verão - a de inverno é a que está mais próxima da hora solar. Hoje essa competência deixou de ser dos países membros mas da UE como um todo", explica o astrofísico.
Nem sempre foi assim. Até à década de 1990, Portugal saía da hora de verão em setembro. Agora as mudanças são sempre nos últimos domingos de março e de outubro. "Com a UE todos sabem que a hora muda para todos ao mesmo tempo." Esta decisão comunitária de manter as horas de verão e de inverno tem uma base de equilíbrio. Rui Agostinho concorda e justifica: "Não há solução que agrade a toda a gente. Se não houver mudança, às 08.00 ainda podem estar estrelas no céu quando se está a sair para o trabalho ou para a escola. O que se ganha ao fim do dia perde-se de manhã."
Implicações na saúde
A maior bandeira dos opositores da mudança de hora é atualmente a luminosidade do final do dia, salvaguardando as componentes de saúde e bem-estar das pessoas, mas com olho na vertente turística. Nas ilhas Baleares espanholas, o Parlamento Regional aprovou mesmo por unanimidade uma moção a rejeitar a mudança para a hora de inverno. Tal não será concretizado. Espanha, como todos os 28 Estados membros da União Europeia, tem de respeitar uma diretiva europeia que fixou a mudança da hora no mesmo instante em todos os Estados.
E há sempre implicações na saúde. Há interferência no sono. O presidente da Associação Portuguesa de Cronobiologia e Medicina do Sono, Miguel Meira Cruz, já criticou a mudança, garantindo que tem um impacto negativo na saúde e, apesar de menor do que o que acontece em março, qualquer direção do atraso é prejudicial. Avisa que os sintomas refletem-se em dores de cabeça e fala de possíveis alterações no ritmo cardíaco. Ao OAL têm chegado ao longo dos anos reclamações e propostas. "Todas as opiniões são válidas, mas é preciso saber qual o grau de aplicabilidade. A análise tem de ser sempre global a todos os fatores", diz, apontando que em relação ao sono "há pessoas mais sensíveis, nem todas reagem da mesma maneira. Em média cada pessoa precisa de um dia para se adaptar à mudança de uma hora. Se forem 12 horas precisamos de duas semanas. Não é matemático mas é ajustado."
Por isso, "sem ser uma razão médica muito forte", o domingo foi escolhido como o dia de acertar os ponteiros - "é um dia de descanso que permite, dentro do possível, uma adaptação à mudança". Atualmente está quase posto de lado o fator energético, importante no passado e decisivo para a adoção, por representar ganhos muito residuais.
Hoje, a referência é o UTC (tempo universal coordenado), a hora atómica que usa a referência do meridiano de Greenwich (linha imaginária que divide o mundo em Ocidente e Oriente) e tem cadência constante. A hora civil é designada por fatores políticos. Por isso, vamos acertar a hora, mas Portugal continuará com uma diferença de 36 a 37 minutos em relação à chamada hora solar.