"Ir às urgências hospitalares? Nem pensar! Venho sempre às do centro de saúde"

Os atendimentos nas urgências hospitalares dispararam no último mês, com esperas superiores a 24 horas, em algumas situações. O Ministério da Saúde abriu centros de saúde fora de horas para responder à procura acrescida: cerca de 200 em todo o país, dois deles em Lisboa. Para os utentes do ACeS Lisboa Norte, a modalidade não é novidade: este centro funciona 365 dias. Resta saber se, de facto, a medida está a aliviar os hospitais.

Maria Lagarto e Maria Gaspar vivem na mesma zona de Lisboa, Benfica, "há muitos anos" e são utentes do ACeS de Lisboa Norte, que integra 14 Unidades de Saúde Familiar (USF), distribuídas por Benfica, Sete Rios, Alvalade e Lumiar. No dia 1, chegaram ao Centro de Saúde de Sete Rios pouco depois das 10.00, ambas como dores de garganta e para tentarem uma consulta de urgência. "Vimos para a mesma coisa", riem-se. "Não conseguimos consulta na nossa unidade porque estão em mudança de instalações, então viemos aqui à urgência", explica Maria Lagarto de 73 anos. Não é a primeira vez que o fazem, porque sabem que o ACeS funciona 365 dias por ano. E quando perguntamos se são do género de, antes de ir ali, ir logo a uma urgência hospitalar, até nos olham com estranheza. "O quê? Ir às urgências hospitalares? Nem pensar! Uma pessoa ainda sai de lá com outra doença. Só se estivesse a morrer. Venho sempre aqui às do centro de saúde", remata Maria Lagarto, continuando: "Ou vou à minha médica ou aqui às urgências." Maria Gaspar ri-se e concorda: "Eu é a mesma coisa. Não tenho razão nenhuma de queixa."

Na sala de espera do centro, meia centena de pessoas, adultos sozinhos ou acompanhados, adultos com crianças. Passavam sete minutos das 10.30 quando o sistema informático registava 44 inscrições, a maioria utentes da área, mas já um ou outro encaminhado pela Linha SNS 24. Quando as portas se abriram para mais um dia, pouco antes das 10.00, já havia quase 20 pessoas para inscrição, contam-nos, algumas não sabiam sequer que a partir deste dia, 1 de dezembro, o horário aos feriados e aos fins de semana seria alargado das 14.00 para as 16.00, e durante a semana das 20.00 para as 22.00. O importante, disseram-nos, "é que sabemos que quando temos algum problema, podemos vir aqui e não precisamos de ir ao hospital".

Maria Helena de Figueiredo, residente em Benfica, também é utente do Centro de Saúde de Sete Rios e tem uma opinião sobre o prolongamento dos horários nos cuidados primários. "Sou utente deste centro há mais de 20 anos e posso dizer que foi uma das melhores medidas que se tomaram: haver urgências ao fim de semana e aos feriados. Portanto acho que é uma medida muito certa para outros centros também. Hoje chegámos aqui pouco antes das 10.00, ficámos com a senha número 13 e o meu marido às 10.40 já está na consulta", refere, olhando para o relógio. "Tenho estado a observar e ainda não pararam de chamar pessoas. Estão a despachar muita gente."

O marido de Maria Helena acaba de sair do gabinete médico. "Já está, podemos ir embora", diz-lhe. "Está a ver", remata ela. "Temos uma ótima médica de família, mas está de baixa e, por isso, tivemos de vir hoje aqui, mas o centro recebe bem os utentes. Não tenho razão nenhuma de queixa e ultimamente, como mais velhos que estamos, até temos mais necessidade de vir cá, mas temos encontrado sempre resposta às nossas necessidades." Maria Helena explica que o "marido tem um problema grave e quando há alguma coisa que não está bem ou "falamos com a médica ou vimos aqui à urgência". "Da última vez que tivemos mesmo de ir para o hospital, porque nos enviaram para lá, estivemos vinte e seis horas e meia. Se este horário for alargado a outras unidades acho que será muito bom."

Urgências no centro de saúde aumentaram 25% entre outubro e novembro

A afluência às urgências hospitalares disparou no último mês, com algumas unidades a registarem 400 atendimentos e mais, só na urgência geral de adultos, ou a atingir 800 atendimentos entre urgência geral, pediátrica e ginecologia-obstetrícia, com tempos de espera de mais de 24 horas, sobretudo para quem recebe pulseiras azuis e verdes. Foi assim em hospitais da Grande Lisboa, onde a situação se tem vindo a agravar, levando mesmo à demissão de chefes de equipa.

Entretanto, o Ministério da Saúde aprovou um Plano de Resposta Sazonal, que inclui, entre outras medidas, o prolongamento dos horários dos centros de saúde e até a ida de médicos do SNS a lares, para se evitar o congestionamento das urgências hospitalares. A concretização do plano implica maior articulação entre Administrações Regionais de Saúde e unidades, de forma a responder às necessidades da população. São estes que, de acordo com a procura e recursos, têm de definir quem abre e quantas horas.

Até esta semana, e de acordo com o Portal do SNS, mantêm-se abertas nesta modalidade cerca de 200 unidades em todo o país, duas delas em Lisboa. Os ACeS Lisboa Norte e Lisboa Central já estão habituados a funcionar aos feriados e aos fins de semana, simplesmente agora, e no caso do ACeS Lisboa Norte, "o horário normal vai ser alargado durante a semana das 20.00 até às 22.00; aos feriados e domingos, em que já funcionávamos das 10.00 às 14.00, vamos funcionar até às 18.00, e aos sábados e tolerâncias, das 10:00 até às 18:00", relata ao DN Eunice Carrapiço, médica de família, e diretora executiva deste ACeS, há mais de três anos.

Explica ainda: "A escolha destes horários tem que ver com a monitorização à afluência que fazemos diariamente nas nossas unidades e que considerámos que seria suficiente para dar resposta à procura deste ano", embora "todos os anos, nesta altura, final de outono e pico do inverno, haja sempre necessidade de haver um prolongamento dos horários. Mas sempre de acordo com o que faz sentido para a procura". Os últimos dois anos foram atípicos, devido à pandemia, mas "mantivemos este tipo de resposta com uma área específica para as doenças respiratórias e covid".

Neste ano, começou logo a notar-se em outubro um aumento de pedidos de consultas urgentes no centro. "Entre o final de outubro e novembro tivemos um aumento de 25% de pedidos diários para consultas e de consultas efetivadas. Tínhamos uma média de 860 a 900 consultas diárias de urgência, para doença aguda, e passámos para 1150 a 1200, havendo muitas pessoas que se acumulavam ao final do dia e houve necessidade de alargar o horário das 20.00 para as 22.00 de forma a dar uma resposta a estes utentes."

Ou seja, e como sublinha a médica, a modalidade de funcionamento aos feriados e fins de semana não é nova para os profissionais deste ACeS, que integra 534 profissionais, entre médicos (157), enfermeiros (152), nutricionistas, assistentes sociais, psicólogos, assistentes administrativos (que são a terceira maior classe), assistentes técnicos e outros.

Antes deste plano de contingência, a escala para assegurar os cuidados, nestes horários de feriados e fins de semana, era voluntária, e segundo Eunice Carrapiço "nunca houve problemas para as organizar. Assim que notámos que a afluência estava a aumentar muito em dois dias, organizámo-nos e avançámos para o prolongamento durante a semana. Os profissionais fazem este esforço, sabem que é um atendimento complementar que tem de ser feito. E apesar de haver alguns que, até pela sua vida pessoal, têm mais problemas de responder, há outros que não se importam de fazer mais e, em vez de uma vez, fazem esta escala duas vezes por mês."

ACeS já funcionava com urgências aos fins de semana e feriados

A escala do atendimento complementar é organizada entre todos os profissionais do ACeS, porque quando as portas da unidade abrem não são precisos só médicos ou enfermeiros, mas também assistentes administrativos e outros profissionais. Em média, na área de cuidados isso equivale a que cada profissional tenha de ir a Sete Rios fazer urgência uma vez por mês, explica a diretora executiva. "É um trabalho complementar que, logicamente, é pago como hora extraordinária, mas mesmo antes dos planos de contingência, fomos o primeiro agrupamento de Lisboa a fazer um protocolo com o Hospital Santa Maria, em 2020, para que as pessoas que acorressem àquela unidade por doença ligeira ou moderada, da nossa área, fossem reencaminhadas diretamente para aqui com marcação de consulta. E isto tem sido muito importante, porque nos permitiu modelar a procura inadequada dos utentes daquela urgência hospitalar. Se for ver, na grande afluência que tem havido às urgências de Santa Maria quase não existem utentes nossos."

Por isso defende que "não é possível resolver o problema das urgências nos hospitais só com estratégias de aumento de cuidados nos centros de saúde; são precisas também estratégias para mudar a cultura e o comportamento da população em relação ao que é uma urgência".

Os utentes do ACeS, sobretudo de Sete Rios e Benfica, conhecem bem o serviço de atendimento complementar ou, se quisermos, de urgência, mas a verdade é que, muitas vezes, este também é usado para resolver problemas que não são propriamente de doença aguda, mas situações que não foi possível resolver no dia-a-dia, sobretudo de utentes sem médico de família. "Temos uma resposta diária para estes utentes, embora não seja aquela que desejaríamos. Mas quando há necessidade estes utentes vêm a estas consultas", confirma a médica. O ACeS tem 280 mil utentes, 16% sem médico de família.

Vamos a meio da manhã e a sala de espera do centro de Sete Rios continua a encher, agora já com mais crianças e adolescentes, alguns encaminhados pela Linha SNS 24. Mas Mónica, que vive perto do centro de saúde, foi por iniciativa própria. A filha, Matilde, de quatro anos, "está com uma infeção no dedo - costuma tirar as peles, e o dedo está inchado e inflamado há uma série de dias, já não consegue tocar em lado nenhum. Não tive ontem consulta na minha médica e vim cá hoje", explica. É o que costuma fazer, porque "ir à urgência do hospital é sempre pior, arriscamo-nos a vir de lá com outra coisa; aqui o risco é não conseguir consulta, mas nunca aconteceu."

Kaima, utente do centro do Lumiar, também aguarda que chamem a filha de dois anos, mas foi para ali encaminhada pela Linha SNS 24. "Está com febre e dores de garganta, agravou durante a madrugada; de manhã liguei para a Saúde 24 e mandaram-me logo para aqui". É a primeira vez que o faz, porque no Lumiar é mais difícil conseguir consultas e muitas vezes vai direita ao hospital. Até agora, diz, "não tenho razão de queixa, cheguei há 20 minutos, já fiz a inscrição e dizem-me que está quase".

No feriado estavam a trabalhar quatro médicos, três enfermeiros, dois assistentes administrativos, dois assistentes operacionais e dois seguranças. Ao todo, uma equipa de 15 pessoas, tal como em qualquer fim de semana ou feriado. "Estamos cá para fazer o nosso melhor e apoiar toda a equipa", diz Anabela Santos, assistente administrativa, que neste feriado estava a apoiar o atendimento. "Já trabalho nesta casa há 20 anos. Neste momento, estou fora deste serviço, a assegurar a coordenação administrativa das juntas médicas, mas venho apoiar ao fim de semana. É fazer um pouco de bombeira, mas não custa nada." E hoje, diz, "nem está mau. No fim de semana passado tivemos muita afluência, a espera chegou às duas horas, recebemos muitas pessoas de fora da nossa área que vieram encaminhadas pelos hospitais, hoje isso ainda não aconteceu". Mesmo assim, ressalva, "é um serviço que ajuda a desbloquear muitas situações".

Às 11.00, havia 66 pessoas inscritas. Ao final dia tinham sido atendidas 129

Eunice Carrapiço confirma que a afluência ao fim de semana é sempre mais elevada ao sábado do que ao domingo. "No dia 26, sábado, atendemos 206 pessoas e no domingo 96." Neste último feriado, foram atendidas 129 pessoas. "Todas as pessoas inscritas foram atendidas e com reduzido tempo de espera, à exceção da primeira hora, quando se registou o maior fluxo de pessoas. Foram mais cerca de 30 utentes do que se verificou nos domingos e feriados dos últimos dois meses", o que significa que "o alagamento de mais duas horas no horário se justificou".

​​​As infeções respiratórias e urinárias estavam no topo da lista dos atendimentos, mas houve outras situações. E, algumas, obrigaram mesmo a que o doente saísse do gabinete médico e fosse direitinho para a sala de tratamentos para receber a medicação adequada. "Muitas pessoas a fazerem anti-inflamatório ou antibiótico injetável", explica o enfermeiro Bruno Silva, que pertence a uma das unidades do ACeS, mas a Sete Rios só vai fazer as urgências. "Venho cá duas vezes por mês fazer urgências ao fim de semana ou feriados, trabalho de segunda a sexta, portanto esta escala não incomoda nada", acreditando mesmo que "o funcionarmos desta maneira ajuda a resolver muitas situações".

Na manhã de quinta-feira estava ele e outra colega a trabalhar, na sala de tratamentos despachavam também pensos cirúrgicos que têm de ser feitos diariamente, davam apoio aos gabinetes e médicos, quando era necessário administrar logo medicação ao utente e tratavam de outras urgências.

Bruno Silva diz que, em média, recebem aos fins de semana e feriados entre 40 a 50 pessoas - mais ao sábado do que aos domingos e feriados. O dia estava a correr bem, mas Bruno Silva diz ainda ser preciso trabalhar mais o lado da consciencialização do utente. "É preciso que o utente esteja mais consciente sobre o que é uma urgência ou não e que se habitue a pedir mais ajuda nos cuidados primários", embora reconheça que, nesta altura, "os nossos utentes já recorrem menos aos serviços de urgência dos hospitais e mais aos cuidados primários."

Maria Amélia, utente da Charneca, na Alta de Lisboa, aguarda a sua vez na sala de espera, mas foi ali porque a filha ligou antes para a Linha SNS 24 e a encaminharam para Sete Rios. "Acho que estou com uma infeção respiratória, mas no ano passado tive uma broncopneumonia e tenho que me resguardar. Se tivesse que ir amanhã (sexta-feira, dia 2) para o Centro do Lumiar tinha de chegar às 6:30 para conseguir uma consulta", conta. Assim, "vim aqui porque me mandaram".

Cecília Vaz é utente do ACeS Lisboa Norte, pertenceu ao centro de saúde de Sete Rios, mas passou para outa USF, nasceu em Benfica e ficou com médico de família ali, hoje, conta, que já vive noutro concelho fora de Lisboa, mas mantém o médico de família. "Aos dias de semana vou à minha unidade, mas aos fins de semana e feriados quando tenho um problema venho aqui à urgência", confessa. Naquele dia, até foi encaminhada pela Linha SNS 24.

"Estou com uma gripe, não é covid, e estou assim há uma semana. Não estou melhor, e a Saúde 24 encaminhou-me para aqui". Chegou às 10.12, às 10:50 ainda não tinha sido chamada o que considerou "ser aceitável". Uma hora depois da abertura havia 66 pessoas inscritas, mais de um por minuto. Maria Lucília Rocha também pertence àquele centro, mas não foi à urgência por ela. "Vim com a minha neta. Está comigo, tem febre e tosse e não quero ir com ela para o hospital. Trouxe-a aqui, nunca recusaram vê-la", diz.

Centros estão a ajudar urgências hospitalares?

Em Lisboa há dois ACeS com horário prolongado, mas será que tal está a aliviar a urgência hospitalar? O diretor do Serviço de Urgência Geral do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que funciona no Hospital Santa Maria, diz não haver ainda "tempo suficiente para sabermos se a menor afluência que tivemos nesta semana ou no feriado", em relação a momentos de pico nas semanas anteriores, tem que ver com o alargamento dos horários nos centros de saúde.

"Mas considero que é uma medida importante, embora tenhamos de trabalhar também outras situações, como haver mais centros de saúde com esta resposta, porque há centros como o de Sete Rios que funcionam bem, mas outros não", diz João Gouveia. "Cada centro deveria ter mais capacidade de tratar os doentes crónicos para não os enviarem logo para o hospital, e era importantíssimo que os lares só pudessem enviar doentes para o hospital depois de serem vistos pelo seu médico. Além do que cada utente deveria ter o seu médico de família, mas isto seria no mundo ideal".

O médico diz ainda que para obterem melhor resultados no encaminhamento dos utentes que chegam aqui com sintomas ligeiros deveria ser possível o hospital reencaminhar o doente já com a consulta marcada, porque agora "dizemos ao doente que vai ter uma consulta, enviamos um email ao centro de saúde e depois são eles que entram em contacto com o utente. E seria bem mais fácil se o doente saísse já com a consulta marcada", refere João Gouveia. Até porque, a maioria dos utentes a quem é proposto ir ao centro de saúde porque tem lá uma consulta, até tem aceitado, mas poderia isso poderia não acontecer. Era importante o doente ir já com a consulta marcada".

No entanto, nesta altura, o diretor do Serviço de Urgência de Santa Maria também destaca que "mais de 40% dos utentes que estão agora na nossa urgência são amarelos e laranjas, portanto são urgentes. Já não há tantos verdes ou azuis, o problema é que são doentes com muitas comorbilidades", por isso, reforça, "os centros de saúde deveriam ter mais meios para tratar os seus doentes crónicos em vez de os terem de enviar logo para as urgências dos hospitais".

O Plano de Resposta Sazonal vai estar em vigor, à partida, até março. Cada ARS terá centros de saúde com horários alargados, uma informação que o ministério já disse que será atualizada diariamente no site oficial de cada uma ou no Portal do SNS. Para os utentes, o importante é poderem obter respostas às situações que surgem. Recorde-se que em janeiro a Direção Executiva do SNS entrará, oficialmente, em funções, aguardando-se mais algumas mudanças.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG