Inês Azevedo: “Só uma verdadeira reforma informática pode dar uma resposta à entrada de imigrantes”
Como é que avalia a transição do SEF para a AIMA?
A transição foi anunciada durante três anos. O motivo foi político, o que motivou a reforma foi um motivo político, não foi um motivo administrativo. Esta reforma não foi feita olhando, efetivamente, para o número da população estrangeira, nem para os recursos humanos disponíveis. Também houve um problema muito grave, que foi a divisão do SEF em sete entidades distintas. Do ponto de vista da explicação desta reforma, foi muito mal cuidado, também do ponto de vista interno, durante estes três anos. Houve uma reforma anunciada nas notícias, mas nunca explicada internamente aos recursos humanos, o que provocou uma desmotivação interna de todo o lado. Muitos recursos humanos foram saindo paulatinamente, não foram substituídos. Isto com os relatórios, ano após ano, a anunciarem um volume cada vez maior de estrangeiros a entrar, os processos a ficarem arquivados, sem ter ninguém para responder e poder lidar com eles. E sem sabermos, efetivamente, de que modo seria esta reforma. Tivemos três resoluções com seis ministros, que depois se vieram a confirmar no pacote legislativo de 2024, com esta reforma final, que considero que ainda tem algumas falhas, sobretudo de praticidade. Na prática, ainda existe muita areia na engrenagem. Penso que os processos ainda não estão a fluir da mesma forma entre todas estas áreas, entidades.
Eu acompanhei muito o processo nas notícias e sempre fiquei com a impressão de que havia uma preocupação com a divisão dos funcionários, mas não em explicar a reforma aos imigrantes. Teve a mesma impressão?
Sim, noticiosamente, pareceu ser sempre tudo muito linear e que estaria muito afinada a nova carreira dos inspetores e dos funcionários. Contudo, na realidade, os sítios onde são atendidos os imigrantes continuam a ser exatamente os mesmos onde eram atendidos antigamente. E há aqui um problema cabal. Só uma verdadeira reforma informática pode dar uma resposta a esta entrada de estrangeiros em Portugal. Porque se outros Estados-membros conseguem receber este mesmo número de estrangeiros e terem processos a correr no prazo de três semanas, nós também podemos conseguir. E o anterior Governo perdeu concursos públicos que podia ter aproveitado para fazer uma reforma do sistema administrativo. Não é aceitável ter uma aplicação para a manifestação de interesse, outra aplicação para o reagrupamento familiar, outra aplicação para as renovações, outra aplicação para Autorização de Residência de Investimento (ARI), outra aplicação para a CPLP e nenhuma funciona. Neste momento cada artigo da Lei dos Estrangeiros tem uma aplicação diferente e um modo de entrar numa plataforma diferente. A única coisa que está a funcionar minimamente bem - e aí também temos de louvar, quando as coisas estão bem - é a Estrutura de Missão. E está a funcionar porque funciona de uma forma autónoma, não estando ligada aos serviços centrais. Portanto, está a conseguir processar este volume de pedidos de forma autónoma.
Como vê a falta de investimento, mesmo sendo a AIMA uma agência com muito lucro?
Para além de ter lucro, para além de ser o serviço da Administração Interna com mais capacidade financeira, também foi o que teve mais fundos europeus, com mais budget, com mais projetos de financiamento, para este tipo de modernização administrativa, a que, por incapacidade dos anteriores Executivos, não se candidataram. E, portanto, esta reforma tem sido adiada por, também, uma falta de visão. Como é que podemos explicar isto? Temos uma grande massa migratória a entrar no país com o desejo de ser regularizada. Temos, de facto, por um lado, uma vontade política, tanto o PS como o PSD têm feito reformas políticas que têm demonstrado a necessidade de abertura de fronteiras, mas depois isso não se tem refletido a nível da reforma administrativa na realidade. Portanto, há um embate, na realidade, que é a reforma administrativa não estar, de todo, preparada para receber esta população estrangeira.
Acredita que as filas enormes em frente à AIMA ajudam na perceção das pessoas de que as coisas estão descontroladas e que a imigração é um problema?
Mais uma vez, eu quero reiterar, e a comunicação social tem um papel muito importante nisto: a maneira como todos nós falamos, todos somos responsáveis por desmistificar as perceções e explicar que a imigração é parte da solução para o problema demográfico que Portugal tem. E, como tal, as filas da AIMA são um sintoma de que a Administração portuguesa não está calibrada para dar resposta às oportunidades que criou a nível legislativo. Ou seja, o Estado não se preparou. O Estado não se preparou para as oportunidades que criou a nível legislativo há mais de uma década. É preciso ver as coisas como elas são, é preciso vermos os factos. E os extremismos políticos não nos permitem... Há alguns sintomas de as coisas não estarem a ser geridas da melhor forma e, além disso, a integração dos estrangeiros foi abandonada há algum tempo. E o que passa na televisão mostra parte de alguns destes sintomas. É mais fácil dizer que as coisas estão descontroladas do que explicar a razão das coisas. Vamos sempre pelo caminho mais fácil, em vez de explicarmos por que é que as coisas começaram a ser desta forma.
E como vê o aspeto da integração?
É um bocadinho esta mensagem que quero transmitir. Portugal precisa, e vai continuar a precisar, de imigrantes, porque uma política demográfica demora mais de 20 anos a ter impacto na economia, e só uma política imigratória consegue ter um impacto real na economia nacional. As filas de imigrantes, lá está, com uma reforma administrativa bem pensada, conseguimos - como se conseguiu agora ver com a Estrutura de Missão - em seis meses resolver parte do problema. E é continuar nessa senda. Mas não chega, também é preciso voltar, tal como aconteceu no início da década de 2000, a apostar nas políticas de integração dos estrangeiros. E, a nível de comunicação social, a nível dos advogados, a nível dos políticos, termos muito cuidado com os termos que usamos e como é que falamos da imigração descontrolada e do que é imigração descontrolada ou não.
E por falar em problemas, há o das renovações que não estão a ser feitas.
Temos duas entidades a tratar da renovação dos títulos de residência, a AIMA e o IRN. Mas nenhuma trata realmente. E nem está completamente clarificado quem é que trata. Este atraso e esta demora é bastante estruturante, tanto para famílias como para empresas, que muitas vezes não conseguem gerir compromissos profissionais, viagens de negócios, conferências, nem gerir compromissos familiares e pessoais, pais que estão doentes, casamentos, etc. Portanto, as pessoas não conseguem gerir nem a sua vida pessoal, nem a sua vida familiar. Esta questão das renovações deste último ano, à medida que estamos aqui há mais de nove meses, neste impasse, obviamente, prolongando-se esta situação mais um ano, vai diminuir o nível de atividade nacional. Mais uma vez, houve uma alteração legislativa que depois não é possível concretizar do ponto de vista prático.
Acredita que Portugal pode vir a ter problemas em atrair imigrantes caso não resolva os problemas da parte administrativa, como as renovações?
Sem dúvida. Neste momento, sobretudo, com a dificuldade na renovação dos títulos de residência, que tem provocado, sobretudo nos cidadãos que estão cá a viver, altamente qualificados, muitos constrangimentos.
É comum que Portugal faça alterações legislativas sem pensar na prática ou é somente nesta área?
É muito comum. Eu penso que muitas vezes, em Portugal, falta auscultar um pouco mais quem está no terreno. Antes de fazer a alteração legislativa, devemos ser mais demorados a auscultar. Às vezes é importante, em vez de estarmos a reagir. Como referimos, a alteração e a reforma no SEF foi uma resposta a um problema político, à morte do Ihor Homenyuk no aeroporto. Não estou a dizer que a reforma não fosse necessária, era necessário uma reforma a nível do sistema migratório. Mas houve aqui uma reação a um problema político e, portanto, tinha de ter sido mais maturada e mais pensada. Se assim fosse, não tinha sido dividida em sete entidades, como está agora, e criámos aqui um novelo.
Vamos agora para outra ponta do problema: os pontos consulares não dão conta de todos os pedidos de visto. Há casos no Brasil em que a espera já passa dos nove meses para os pedidos de visto de procura de trabalho.
É aqui que falta tudo. As migrações são uma competência direta do primeiro-ministro. É muito importante. Porquê? O tema das migrações é mesmo importante e é mesmo central. Depois, este tema é delegado e está dividido: uma parte com a presidência do Conselho de Ministros, que está com a AIMA, depois a parte da Administração Interna, que é a parte securitária, e outra parte no Ministério dos Negócios Estrangeiros, que tem a parte dos vistos. Vamos aos vistos. O problema dos vistos é que a estrutura consular foi criada para dar resposta aos portugueses que vivem fora do país, aos emigrantes. A estrutura consular tem de ser revista, tendo em consideração que quem procura agora a estrutura consular não são só os portugueses que vivem fora do país, mas também todos os estrangeiros que agora procuram o nosso país para viver. E esta atualização não foi feita. E como se isto não bastasse, os vistos são analisados por duas entidades diferentes, que agora passaram a ser três. Os vistos são instruídos no consulado de jurisdição do requerente e depois tem outra parte administrativa que é analisada na AIMA e depois pelo Ministério da Administração Interna, que vem ajudar a pôr mais uma pedrinha na engrenagem.
E como analisa a via verde, que, no primeiro mês, não teve adesão?
A via verde peca por ter nascido. Portugal tem necessidade de criar vias verdes, porque os sistemas que existem não funcionam e existem princípios constitucionais contra a discriminação de cidadãos. Se tudo funcionasse, não seria necessário, e se o sistema migratório funcionasse, não seria necessária a criação de vias verdes. Portanto, logo aí é um sintoma de que o sistema migratório não está a funcionar. Isto do ponto de vista concetual. Do ponto de vista prático, é preciso calibrar e repensar todos os nossos serviços consulares, porque atualmente não têm capacidade para processar os pedidos de visto que existem. Nesse sentido, o facto de estarmos a enviar um pedido para a Direção-Geral dos Assuntos Consulares para depois veicular e distribuir o jogo para os serviços consulares não vai minimizar o problema pré-existente. Um terceiro ponto tem a ver com os requisitos. Os requisitos, dois deles são fáceis de dirimir, que são o contrato de trabalho, saúde, projeto de formação em língua portuguesa, o outro da habitação, que é com o qual todas as entidades empregadoras se debatem, e os cidadãos portugueses também. Portanto, temos aqui três linhas, três pontos críticos que são necessários observar. Neste momento parece que a Via Verde foi uma bandeira nice to have em período de eleições, mas cuja concretização prática será difícil de se ter resultados.
Nas últimas semanas um dos grandes assuntos é o número de cidadãos imigrantes convidados a deixar o país. Como vê este anúncio?
A minha questão é, este número significa o quê? Se este número é o resultado da estrutura de missão depois deste esforço de seis meses, das pessoas que tinham manifestação de interesse e que não cumpriam os requisitos, e como tal, têm que ser convidadas a sair do país, depois há outra questão que também acho muito pertinente. Desde 2009 Portugal deixou de ter esse trabalho, que é sabermos qual é que é o número de estrangeiros que nós precisamos em alguns setores do país. Porque antigamente tínhamos a Secretaria de Estado do Trabalho com a Segurança Social, com a Economia, que sentavam-se à mesa e faziam o levantamento dos setores que mais precisavam de mão de obra. Agora há uma parte que eu percebo, e sei que Portugal é um Estado direito, e se a lei existe, tem que ser aplicada. E acho que a mensagem que o Governo quer transmitir, porque de facto foi a manifestação de interesse, o regime de manifestação de interesse foi criado para corrigir uma determinada situação, depois foi abusado durante muito tempo. E que realmente tinha que ser corrigido. Agora estamos aqui numa situação em que o Governo deveria comunicar que tem direito a um recurso. Ou o Governo, enquanto anuncia isto, poderia também explicar quem é que são estas 18 mil pessoas, de onde é que vem este número. E se quer ter dois tipos de mensagens, mensagem para quem se encontra neste grupo, porque também as pessoas, não sei se percebem, ou a AIMA deveria ter uma mensagem, a explicar também os direitos e os deveres de quem se encontra neste grupo de pessoas, a quem se dirige esta notificação.