Nepaleses vítimas de escravidão já trabalham e estudam Engenharia
Prometeram-lhes a legalização e um bom salário e o que estes 23 nepaleses receberam foi nada. Assinaram contratos em português, que não falavam, para a apanha de morango em Almeirim. Viviam em três divisões de uma construção sem luz e só com uma casa de banho sem água canalizada. Descontavam-lhes o pouco que comiam. Assim os encontraram as autoridades há quatro meses e o normal seria que regressassem ao Nepal, mas eles quiseram ficar. Obtiveram autorização de residência por colaborarem com a investigação e muitos já estão a trabalhar.
O Ministério Público deduziu acusação pelos crimes de tráfico de seres humanos e imigração ilegal. Um português e dois nepaleses foram detidos (dois estão em prisão preventiva) e são os arguidos.
Resgatados da situação em que sobreviviam em julho, os 23 nepaleses - homens entre os 20 e 40 anos - foram distribuídos pelo país, do Minho ao Algarve, beneficiando do sistema de proteção às vítimas de tráfico de seres humanos. "Algumas já se encontram inseridas no mercado de trabalho, outras procuram a integração com o acompanhamento das instituições responsáveis pelo seu acolhimento", diz o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). E há quem tenha ingressado no ensino superior na área da Engenharia, formação iniciada no seu país.
No momento de desmantelamento da rede, em que foram detidos três indivíduos, percebeu-se que este era um grupo diferente. "Até aqui, situações de tráfico de seres humanos eram pessoas individuais ou pequenos grupos", explicou ao DN Sónia Duarte Lopes, coordenadora da delegação de Lisboa da Associação para o Planeamento da família (APF) e da Equipa Multidisciplinar Especializada, que acompanha as vítimas e as reencaminha para outras instituições com o apoio, por exemplo, das câmaras.
"Vítimas de outras nacionalidades, nomeadamente romena, preferem regressar ao país de origem", explicam os responsáveis do SEF. Este grupo ficou porque "no seu país as condições de vida e de subsistência eram ainda piores, além de terem que liquidar os empréstimos que contraíram para poderem emigrar para a Europa".
Outra característica que os diferencia é a formação académica, alguns de nível superior, sendo esta uma das razões por que mais facilmente denunciaram a situação às autoridades. Terão vindo do Nepal com falsas promessas, mas a maioria estava em Portugal em situação irregular. Chegaram depois de uma longa viagem, de mais de um ano.
Todos com "histórias muito tristes e difíceis, com períodos de grandes caminhadas e sem comer, atravessando países à procura de melhores condições. São histórias muito violentas, com muitos abusos pelo meio", conta Sónia Lopes. Quiseram ficar, e ir ao Nepal só de visita, apesar das saudades.
A APF tem uma casa para mulheres vítimas de tráfico, no Porto, e passou a coordenar as equipas multidisciplinares. Trabalham com as vítimas, dão formação sobre sensibilização para esta problemática e gerem a rede nacional para intervir em situações de tráfico.
Dois exploradores em prisão
Na operação que levou à libertação dos 23 nepaleses, apelidada de Pokhara (cidade nepalesa), foram detidos um português, de 40 anos, e dois nepaleses, de 32 e 29. Dois dos exploradores estão em prisão preventiva. São o patrão e o ajudante que, através de uma empresa unipessoal sediada em Lisboa, contratavam e forneciam trabalhadores estrangeiros a explorações agrícolas. O terceiro arguido está obrigado a apresentar-se periodicamente à polícia. Os três estão proibidos de contactar entre si e com as vítimas.
Estas foram ouvidas em "memória futura" pelo juiz de instrução do processo, prevendo-se novas audições. Além do SEF, a operação envolveu a GNR e a Autoridade para as Condições do Trabalho. Apurou-se "que os trabalhadores assinaram contratos de trabalho redigidos em português, língua que desconhecem, cujas cláusulas não eram cumpridas, nomeadamente no que respeita a remunerações".
A alimentação que recebiam era-lhes descontada no vencimento e o alojamento era subtraído ao salário: viviam numa construção sem janelas e sem pavimento, com três áreas, cada uma composta por uma sala e cozinha comum e um quarto exíguo, onde dormiam sete pessoas em camas tipo beliches. Além "das más condições de alojamento, do parco salário e dos descontos que lhes eram aplicados (para pagar alojamento e alimentação), os estrangeiros eram iludidos com a informação de que estariam a regularizar-lhes a situação. Esta terá sido a razão por que não denunciaram mais cedo o patrão.
Neste ano já foram atribuídas 27 autorizações de residência a vítimas de tráfico, número em que se incluem estes nepaleses. E outras encontram-se pendentes, à espera de que sejam feitas "todas as diligências processuais ou por falta de confirmação cabal e oficial dos países de origem da verdadeira identidade das vítimas sinalizadas". Em 2015 foram identificadas 33 vítimas de tráfico, 21 para exploração laboral e seis para exploração sexual.
Dos processos investigados pelo SEF, foram condenadas 36 pessoas por tráfico de seres humanos - 13 cumpriram pena de prisão efetiva.