Inteligência artificial e neurociência. O futuro vai "nascer" na Doca de Pedrouços
Pode a Inteligência Artificial ajudar a termos uma melhor saúde? A resposta é simples e pode resumir-se à palavra "sim". E se à IA juntarmos as artes e a investigação na área da ciência? Aí diríamos que estamos a caminhar para um tridente que poderá ajudar a revolucionar a forma como lidamos com os nossos comportamentos que promovem o nosso bem estar.
Apesar do que pode estar implícito nesta visão do futuro da medicina, a verdade é que a conjugação das três áreas na procura de respostas para melhorar a vida humana não está assim tão longe, havendo quem esteja a trabalhar nesse sentido unindo dois setores que muitos podem pensar estarem demasiado afastados: neurociência e terapêutica digital.
É o caso da Fundação Champalimaud, que está a avançar com um projeto que irá ocupar cerca de dez mil metros quadrados no edifício na Doca de Pedrouços - batizado como Ocean Campus -, espaço onde a pouco e pouco vão surgir quatro áreas: ciência e tecnologia; área clínica; área de educação (com salas de aula, espaço para congressos, etc) e a inovação.
"A nossa ideia é criar um ecossistema com todos estes elementos sempre em comunicação, sempre com um objetivo de desenvolver novas técnicas, novas intervenções que funcionem através do software que utiliza ao máximo e da melhor forma os dados que conseguimos relacionar hoje em dia com os algoritmos de inteligência artificial", explica ao DN Joe Paton.
O diretor do Programa de Neurociências da Fundação garante que este projeto é completamente inovador: "Não existe em mais lugar nenhum do mundo. É uma mistura de empresas, cientistas, médicos, criativos, aqui vai surgir cultura, arte. São os artistas que vão criar os mundos que desenvolverão as novas terapias."
Joe Paton começou por se formar em biologia, mas, conta, "rapidamente fiquei interessado no cérebro. Na capacidade de se comportar com flexibilidade. Durante o meu doutoramento na Universidade de Columbia [EUA] observei a atividade elétrica dentro do cérebro num organismo modelo que está a aprender sobre valores, recompensas. Coisas com valor para um animal. Depois interessei-me pelas técnicas computacionais porque por intermédio delas podemos construir modelos, testar ideias".
"Comecei a perceber que a neurociência tem margem para ajudar a inteligência artificial". Como? "Já existem várias terapias digitais. Por exemplo, podemos ter no smartphone um software que nos lembra quando temos de tomar um medicamento, este é um caso simples. Mas a área das terapias digitais inclui técnicas que ainda não foram desenvolvidas e que podem ter potencialidades enormes. Podemos estimular a capacidade de moldar atividades do cérebro para mudar comportamentos".
"Tivemos aqui [durante o evento Metamersion, na Fundação] uma terapia digital em exposição que foi desenvolvida para tratar pessoas que tenham sofrido um Acidente Vascular Cerebral (AVC). O médico constrói uma atividade que permite à pessoa recuperar os movimentos funcionais mais rapidamente usando a realidade virtual", salientou.
O objetivo da equipa liderada por este norte-americano nascido em Princeton (New Jersey) e que chegou a Portugal em 2008 com um compromisso válido por cinco anos -- já lá vão 14 anos -- é o de conseguir com as já referidas terapias digitais induzir o ser humano a ter mudanças no comportamento. Mudanças que podem depois resultar em melhor qualidade de vida e na melhoria da saúde numa sociedade em que a grande maioria das doenças são crónicas e potenciadas pelo estilo de vida das sociedades atuais.
"Quando tomamos uma decisão temos de pensar nas consequências. Umas são imediatas e outras mais demoradas. Por exemplo, eu quero comer um bolo. Nesse caso tenho uma recompensa imediata, o gosto, o sentir-me bem. Mas depois fico mal porque comi açúcar. Ou seja, há consequências em várias escalas de tempo, aí surge a ligação entre o laboratório que faz neurociência e as terapias digitais. Conseguimos criar protocolos para orientar as pessoas em consequências futuras. Se conseguirmos mudar alguma coisa tão fundamental como isso, vão existir benefícios na área da saúde, financeira, nas pessoas e nas relações ", frisa.
Para chegar a essas soluções, a equipa de Joe Paton tenta no laboratório - um piso no edifício da Fundação Champalimaud onde os computadores e livros substituem o material "normal" de laboratório - estudar "a inteligência natural. Estamos a tentar entender quais os algoritmos que a evolução criou no cérebro para guiar o comportamento, e que estão a ser usados na inteligência artificial. Depois podemos usá-los como ferramentas para analisar os vários tipos de dados das experiências".
"As nossas experiências e ações como o sono, a dieta, atividade física, interações sociais e stress representam alguns dos mais poderosos determinantes da nossa saúde, bem estar e longevidade. Estes fatores estão enraizados no comportamento, pelo que qualquer tipo de intervenções na saúde seriam mais eficazes se combinadas com uma valorização do poder do comportamento e do ambiente para moldar a nossa biologia", refere.
É na projeção deste futuro em que a tecnologia estará interligada com a promoção da saúde, e onde a compreensão do cérebro humano e das suas valências ajudará a interagir com a inteligência artificial, que a Fundação Champalimaud está a trabalhar. Um novo programa de investigação liderado por Joe Paton centrado na Neuroecologia Humana e Terapêutica Digital e que marca o início da atividade do Ocean Campus, um Centro que tem como objetivo tornar-se numa referência mundial na área da Inteligência Artificial.
O primeiro passo público para dar a conhecer o projeto já foi dado com a exposição Metamersion, onde foram mostradas as várias formas como a inteligência artificial pode ser aproveitada para estimular ações e decisões utilizando, por exemplo, a realidade virtual ou criando ambientes imersivos que mostraram a perceção que se tem do mundo e de como esta nossa ideia sobre o que nos rodeia influencia as nossas decisões diárias.
Foi uma forma de mostrar que todos os ambientes que nos rodeiam afetam tudo, desde a forma como recuperamos de lesões cerebrais, como envelhecemos até ao risco que temos de desenvolver doenças. "Quando estamos a desenvolver ambientes virtuais, de realidade aumentada, pretendemos reproduzir ao máximo as regras do ambiente físico pois queremos convencer o cérebro que na realidade foi transportado para um outro lugar. E a nossa hipótese [de trabalho] é que isso vai estimular os circuitos do cérebro".
O diretor do Programa de Neurociências da Fundação é a cara deste programa de investigação centrado na Neuroecologia Humana e Terapêutica Digital. Joe Paton diz não gostar de falar sobre si ("podemos estar aqui o dia todo"), mas sempre diz que estudou biologia na Universidade de Tufts [Massachusetts, EUA] em 2000. Conta que foi nessa altura que começou a interessar-se pelo cérebro e a sua capacidade de se comportar com flexibilidade e inteligência. Fez então estudos com "lagartas e moscas, mas foi mais biologia celular". De 2000 a 2002 foi investigador nas universidades de Stanford e de Columbia. Nesta concluiu o doutoramento, após ter observado "a atividade elétrica dentro do cérebro de um organismo modelo que estava a aprender sobre valores recompensas, coisas com valor para um animal". Foi então que começou a interessar-se pelas técnicas computacionais "pois através delas podemos construir modelos, testar ideias". "Ao longo do tempo comecei a ficar mais interessado na relação entre a inteligência artificial e a neurociência e na margem que esta tem para ajudar a IA". Veio para Portugal em 2008, na altura por cinco anos, mas acabou por ficar e, em 2019, foi nomeado diretor do Programa de Neurociências. Do qual diz com orgulho: "Acho que não existe mais nenhum departamento de neurociência, do tipo que fazemos, como este."