"Instituições têm de olhar para as pessoas como um todo"
Professora catedrática e presidente do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, Maria do Carmo Fonseca, 58 anos, diz que nunca sentiu discriminação em nenhuma fase da sua vida por ser mulher. "Somos nós, como indivíduos, que construímos a nossa carreira e para o fazer é preciso lutar contra as adversidades. A carreira não está à nossa espera, o caminho não está aberto. Temos de ser nós a construí-lo, a agarrar as oportunidades e a lidar com muitos fracassos. Não temos só sucessos, é preciso aprender com os fracassos." Esta é uma das mensagens que deixa nesta entrevista, em que defende que as instituições têm de olhar para os seus colaboradores como um todo e apoiá-los, até para serem mais criativos e produtivos.
Como se explica que haja tantas mulheres a desistir de chegar ao topo na carreira. É discriminação, falta de ambição, de condições de apoio nos locais de trabalho, na legislação?
As mulheres não desistem de estar ligadas à área científica, desistem é da luta de virem a ser investigadoras principais e de terem outras responsabilidades. Preferem manter a carreira e um trabalho que seja mais controlado, em que conseguem ter um horário de entrada e um de saída e organizam a sua vida em função disso. O problema na liderança científica é que não podemos organizar a nossa vida em função do horário de trabalho, porque ele é imprevisível. E para se chegar ao topo de uma carreira, e não só na área científica, é preciso uma enorme dedicação. Portanto, quando se começa a pensar nas responsabilidades inerentes a um cargo de maior liderança, deixa de se ter horário fixo, de se poder contar com o seu próprio dia, pois, quando surge alguma coisa que é preciso resolver, não se pode dizer "agora não posso porque está na hora de ir buscar as crianças ao colégio ou de as ir levar ao desporto". O que é que isto faz? Num casal, alguém tem de abdicar dessa disponibilidade para alguém progredir na carreira. O que vejo aqui em muitas colegas é que tiveram a sorte de o marido, ou o companheiro, ter optado por uma carreira que lhe dá a possibilidade de dar mais apoio em casa e aos filhos. É óptimo, mas não se pode estar à espera que aconteça em todos os casais. E, muitas vezes, continua a ser a própria mulher a fazer essa escolha. O que me parece mais importante, mais do que pensar em quotas, é o que a sociedade pode oferecer para não se dispersar o potencial das mulheres que estão a ser formadas para carreiras altamente especializadas e que depois desistem e optam por não aceitar cargos, ou até por ficar em casa. É uma perda para a sociedade, acho que só teríamos a ganhar em criar condições que permitissem aos casais ter mais apoios, por exemplo, para os filhos.
Quando se coloca a situação de o homem e a mulher escolherem quem fica com determinadas tarefas, refere que a mulher mais facilmente desiste da carreira, é uma questão educacional?
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Eu penso que sim. Ou , pelo menos, socialmente a mulher sente-se mais culpada se não for buscar o filho à escola e for o marido. E estou a dizer isto com base nas experiências de múltiplas colegas que tenho. Há muitas mulheres que consideram ser responsabilidade da mãe acompanhar a educação dos filhos.
As mulheres ainda são educadas para favorecer o lado pessoal.
Ainda há uma formatação estereotipada de papéis que devem ser desempenhados pela mulher, se for o homem a desempenhá-los não fica bem. A questão que se coloca é: onde está a mãe ou a mulher? A mulher é que devia estar a fazer isto. E não estamos a falar só de Portugal, é a nível internacional.
A sociedade portuguesa é machista?
Depende do que quisermos entender por machismo. Eu nunca ouvi uma mulher dizer-me que foi discriminada por ser mulher. Eu própria nunca o senti em nenhuma fase da minha vida. Portanto, nesse aspeto, não se pode dizer que a nossa sociedade seja machista. É mais frequente as mulheres serem profissionais e terem uma carreira em Portugal do que noutros países europeus. E digo mais uma vez que o condicionamento vem muito da sociedade. Na Alemanha, por exemplo, quando uma mulher tem filhos, é praticamente obrigada pela sociedade a deixar o trabalho ou a passar a regime de part-time. O sistema de colégios ou de jardins-de-infância só funciona meio dia, porque a sociedade considera importante que as crianças estejam com a mãe o resto do dia. Isto é uma condenação das mulheres a deixarem de ser líderes. Ou abdicam de ter filhos, ou abdicam de uma carreira para chegar ao topo. É o que se passa em todos os estados alemães, com exceção de Berlim. Eu conheço colegas que foram para Berlim só por causa disto, porque lá os jardins-de-infância estão abertos durante todo o dia e podem colocar lá os filhos.
Mas a falta de condições e de apoios que permitam às mulheres conjugar a vida familiar com a profissional não é só um problema da ciência...
Não, mas na ciência a pessoa deixa de ser dona do seu tempo. O plano da investigação altera-se e não há hora para terminar e, muitas vezes, é preciso vir ao fim de semana, a meio da noite, etc. Vimos e temos um problema: onde deixar as crianças? Muitas vezes as nossas colegas têm de trazer os filhos pequeninos ao fim de semana, mas não os podem trazer para o laboratório, porque é perigoso, e onde é que os deixam se não têm ninguém para as ajudar? Há aqui uma necessidade de criar condições.
Que tipo de apoios faltam?
Cada instituição deve ter o seu próprio infantário, como já vi em laboratórios europeus. O que era ótimo para os pais e para as mães, porque no intervalo de uma experiência poderiam ver o filho. Ia fazer a experiência e estava descansado, porque os filhos estavam ali ao pé, acompanhados. Isto tornava a vida, sobretudo, dos jovens casais muito mais confortável e deixava a comunidade científica muito mais forte e competitiva. Criar infantários nas instituições ia facilitar imenso, não é assim nada de transcendental.
Mas faltam medidas políticas?
As políticas estão definidas e são para qualquer mulher. Penso que não vale a pena estar a pôr o ónus uma vez mais nos governos, porque estas questões são muito específicas de cada local de trabalho e de cada área. Não há uma solução igual para todos. Mas acho muito importante que a sociedade fale e se consciencialize de algumas necessidades.
Tem que ver com a forma como as instituições devem evoluir?
Exatamente, as nossas instituições têm de perceber que as pessoas não são máquinas. Não podem assumir o papel de que recrutam as pessoas para trabalhar e depois não têm nada que ver com a vida delas. As pessoas têm de ser vistas como se fossem um todo e as instituições têm de olhar para o aspeto humano e familiar, que é tão importante como o profissional. Uma pessoa que está confortável, relaxada e bem, tem as melhores ideias e será mais criativa e produtiva para a instituição e para o país.
E quem deveria pensar assim no caso da ciência, os institutos, as empresas, as universidades?
Sim.
A instituição onde está tem alguma proposta?
Tem-se discutido internamente e cada vez mais. O problema neste momento é que os fundos para a ciência estão a ser tão reduzidos que vai ser difícil às instituições colocar os infantários como uma prioridade, se não há dinheiro para pagar aos cientistas e para desenvolver os projetos de investigação. Os períodos de austeridade tendem a desfavorecer estas tentativas de se criar condições ou de se facilitar a vida dos homens e das mulheres cientistas ou das mulheres que pretendem ascender a cargos de chefia.
Mas em Portugal há alguma solução deste tipo?
A Universidade de Lisboa tem uma creche que está sempre completa, porque, obviamente, os funcionários pais querem estar sempre o mais perto possível dos filhos. A sensação que tenho é de que há algumas tentativas, mas o que se está a fazer não chega.
Esta realidade pode ter alguma consequência no futuro da instituições e da ciência em Portugal?
A consequência imediata é piorar a participação das mulheres na ciência, continuando a ter uma preponderância de homens a progredir nas carreiras. Por isso, há algo que tem de ser definido estrategicamente. O instituto está muito consciente da situação, mas até que ponto o vamos apresentar como uma bandeira ou uma novidade estratégica, não sei. É algo que vai ter de ser ponderado.
Não é favorável ao sistema de quotas para as mulheres em cargos de chefia porque não premeia o mérito. Isso significa que os lugares não sejam ocupados pelos melhores?
Acho que não. O que as quotas fazem é obrigar as pessoas a identificar as mulheres que poderiam ocupar o lugar. As quotas fazem com que se vá aos grupos e se olhe para as pessoas que podem vir a ocupar um lugar, homens e mulheres. E nesse sentido acho que a sua existência é benéfica.
São as condições que existem, a remuneração ou reconhecimento que têm trazido tantas pessoas para a ciência?
As remunerações na ciência são baixas, e são em todo o mundo. Quem envereda pela carreira científica não tem ambições de ser rico, porque as duas são, em geral, incompatíveis. E digo em geral porque hoje já há muitas oportunidades para, a partir de uma descoberta, se criar uma empresa, vendê-la e ficar rico. Há pessoas que enriqueceram porque tiveram uma ótima ideia e a venderam, não ganharam o Prémio Nobel mas ganharam muito mais. Dizer que não há, de todo, o estímulo de enriquecer na ciência não é verdade. Mas há esta nuance de que normalmente na maioria dos casos não é para enriquecer. Dito isto, logo à partida pode haver muitos homens a não quererem vir para a ciência, há uma maior tendência para eles quererem vir a ser ricos. E daí que muitos rapazes prefiram carreiras na gestão, na engenharia, em que as probabilidades podem ser maiores. Esta componente, logo à partida, cria uma separação entre os sexos pelas áreas que escolhem.
Na ciência os homens são mais bem remunerados do que as mulheres?
Depende dos países e dos sistemas, em países como Portugal, onde as remunerações são estipuladas e não negociadas, não há diferenças nenhumas, em países como os EUA, eu sei que há diferenças. Nos EUA, as remunerações são negociadas e dependem muito da capacidade de negociação entre o cientista e o empregador. E, mais uma vez, as estatísticas dizem que, em média, um homem é muito mais agressivo na negociação do que uma mulher, a mulher contenta-se com um salário inferior ao de um homem. E, como tudo é negociado em privado, ninguém sabe do salário um do outro, mas é um sistema de funcionamento completamente diferente. O nosso sistema é diferente, a ciência faz-se sobretudo a nível público e é igual para todos, de cima para baixo.
Como é que consegue fazer com que muitos cientistas não se vão embora do país?
É difícil, mas falo com eles, tanto os homens como as mulheres, quando se chega à fase de formação avançada, vão ter de definir a sua vida. Não é tanto decidir, é começar a luta para progredir. E é aí que as pessoas têm de decidir quanta energia estão dispostas a focar nessa luta. Isto, porque na situação atual há muito poucas oportunidades para um pós-doutorado vir a ser um investigador principal em Portugal. Não há lugares, mas no mundo há imensos, só que isso implica sair do país. É uma opção pessoal.
O número de vagas que existem em Portugal é reduzido. Porquê?
Houve uma fase em que se deu um grande aumento de lugares na ciência, mas agora estão todos ocupados. Para abrir mais lugares era preciso mais investimento, e estamos numa fase de austeridade, não há fundos públicos. Nem sequer estamos a conseguir manter os lugares de investigador principal, há uma tendência para reduzir lugares. Por exemplo, no nosso instituto os lugares que existem foram ocupados há pouco tempo, e os investigadores principais são jovens, o que quer dizer que há quem vá sair para o estrangeiro.
A fuga de cérebros continua...
É inevitável essa fuga de cérebros em pessoas que foram treinadas, e isso não está a acontecer na área da ciência ou da investigação. A nossa formação é reconhecida como sendo muito boa e, portanto, há institutos e empresas que vêm cá buscar os licenciados para certas áreas. É uma decisão que Portugal tem de tomar a nível geral. Será que vale a pena estarmos a investir na formação dos jovens para depois eles irem para outros países? Eu, sinceramente, acho que é sempre melhor investir na formação, quanto mais formação as pessoas têm, melhores cidadãos vão ser.