"Instituições têm de olhar para as pessoas como um todo"
Como se explica que haja tantas mulheres a desistir de chegar ao topo na carreira. É discriminação, falta de ambição, de condições de apoio nos locais de trabalho, na legislação?
As mulheres não desistem de estar ligadas à área científica, desistem é da luta de virem a ser investigadoras principais e de terem outras responsabilidades. Preferem manter a carreira e um trabalho que seja mais controlado, em que conseguem ter um horário de entrada e um de saída e organizam a sua vida em função disso. O problema na liderança científica é que não podemos organizar a nossa vida em função do horário de trabalho, porque ele é imprevisível. E para se chegar ao topo de uma carreira, e não só na área científica, é preciso uma enorme dedicação. Portanto, quando se começa a pensar nas responsabilidades inerentes a um cargo de maior liderança, deixa de se ter horário fixo, de se poder contar com o seu próprio dia, pois, quando surge alguma coisa que é preciso resolver, não se pode dizer "agora não posso porque está na hora de ir buscar as crianças ao colégio ou de as ir levar ao desporto". O que é que isto faz? Num casal, alguém tem de abdicar dessa disponibilidade para alguém progredir na carreira. O que vejo aqui em muitas colegas é que tiveram a sorte de o marido, ou o companheiro, ter optado por uma carreira que lhe dá a possibilidade de dar mais apoio em casa e aos filhos. É óptimo, mas não se pode estar à espera que aconteça em todos os casais. E, muitas vezes, continua a ser a própria mulher a fazer essa escolha. O que me parece mais importante, mais do que pensar em quotas, é o que a sociedade pode oferecer para não se dispersar o potencial das mulheres que estão a ser formadas para carreiras altamente especializadas e que depois desistem e optam por não aceitar cargos, ou até por ficar em casa. É uma perda para a sociedade, acho que só teríamos a ganhar em criar condições que permitissem aos casais ter mais apoios, por exemplo, para os filhos.
Quando se coloca a situação de o homem e a mulher escolherem quem fica com determinadas tarefas, refere que a mulher mais facilmente desiste da carreira, é uma questão educacional?
Eu penso que sim. Ou , pelo menos, socialmente a mulher sente-se mais culpada se não for buscar o filho à escola e for o marido. E estou a dizer isto com base nas experiências de múltiplas colegas que tenho. Há muitas mulheres que consideram ser responsabilidade da mãe acompanhar a educação dos filhos.
As mulheres ainda são educadas para favorecer o lado pessoal.
Ainda há uma formatação estereotipada de papéis que devem ser desempenhados pela mulher, se for o homem a desempenhá-los não fica bem. A questão que se coloca é: onde está a mãe ou a mulher? A mulher é que devia estar a fazer isto. E não estamos a falar só de Portugal, é a nível internacional.
A sociedade portuguesa é machista?
Depende do que quisermos entender por machismo. Eu nunca ouvi uma mulher dizer-me que foi discriminada por ser mulher. Eu própria nunca o senti em nenhuma fase da minha vida. Portanto, nesse aspeto, não se pode dizer que a nossa sociedade seja machista. É mais frequente as mulheres serem profissionais e terem uma carreira em Portugal do que noutros países europeus. E digo mais uma vez que o condicionamento vem muito da sociedade. Na Alemanha, por exemplo, quando uma mulher tem filhos, é praticamente obrigada pela sociedade a deixar o trabalho ou a passar a regime de part-time. O sistema de colégios ou de jardins-de-infância só funciona meio dia, porque a sociedade considera importante que as crianças estejam com a mãe o resto do dia. Isto é uma condenação das mulheres a deixarem de ser líderes. Ou abdicam de ter filhos, ou abdicam de uma carreira para chegar ao topo. É o que se passa em todos os estados alemães, com exceção de Berlim. Eu conheço colegas que foram para Berlim só por causa disto, porque lá os jardins-de-infância estão abertos durante todo o dia e podem colocar lá os filhos.
Mas a falta de condições e de apoios que permitam às mulheres conjugar a vida familiar com a profissional não é só um problema da ciência...
Não, mas na ciência a pessoa deixa de ser dona do seu tempo. O plano da investigação altera-se e não há hora para terminar e, muitas vezes, é preciso vir ao fim de semana, a meio da noite, etc. Vimos e temos um problema: onde deixar as crianças? Muitas vezes as nossas colegas têm de trazer os filhos pequeninos ao fim de semana, mas não os podem trazer para o laboratório, porque é perigoso, e onde é que os deixam se não têm ninguém para as ajudar? Há aqui uma necessidade de criar condições.
Que tipo de apoios faltam?
Cada instituição deve ter o seu próprio infantário, como já vi em laboratórios europeus. O que era ótimo para os pais e para as mães, porque no intervalo de uma experiência poderiam ver o filho. Ia fazer a experiência e estava descansado, porque os filhos estavam ali ao pé, acompanhados. Isto tornava a vida, sobretudo, dos jovens casais muito mais confortável e deixava a comunidade científica muito mais forte e competitiva. Criar infantários nas instituições ia facilitar imenso, não é assim nada de transcendental.
Mas faltam medidas políticas?
As políticas estão definidas e são para qualquer mulher. Penso que não vale a pena estar a pôr o ónus uma vez mais nos governos, porque estas questões são muito específicas de cada local de trabalho e de cada área. Não há uma solução igual para todos. Mas acho muito importante que a sociedade fale e se consciencialize de algumas necessidades.
Tem que ver com a forma como as instituições devem evoluir?
Exatamente, as nossas instituições têm de perceber que as pessoas não são máquinas. Não podem assumir o papel de que recrutam as pessoas para trabalhar e depois não têm nada que ver com a vida delas. As pessoas têm de ser vistas como se fossem um todo e as instituições têm de olhar para o aspeto humano e familiar, que é tão importante como o profissional. Uma pessoa que está confortável, relaxada e bem, tem as melhores ideias e será mais criativa e produtiva para a instituição e para o país.
E quem deveria pensar assim no caso da ciência, os institutos, as empresas, as universidades?
Sim.
A instituição onde está tem alguma proposta?
Tem-se discutido internamente e cada vez mais. O problema neste momento é que os fundos para a ciência estão a ser tão reduzidos que vai ser difícil às instituições colocar os infantários como uma prioridade, se não há dinheiro para pagar aos cientistas e para desenvolver os projetos de investigação. Os períodos de austeridade tendem a desfavorecer estas tentativas de se criar condições ou de se facilitar a vida dos homens e das mulheres cientistas ou das mulheres que pretendem ascender a cargos de chefia.
Mas em Portugal há alguma solução deste tipo?
A Universidade de Lisboa tem uma creche que está sempre completa, porque, obviamente, os funcionários pais querem estar sempre o mais perto possível dos filhos. A sensação que tenho é de que há algumas tentativas, mas o que se está a fazer não chega.
Esta realidade pode ter alguma consequência no futuro da instituições e da ciência em Portugal?
A consequência imediata é piorar a participação das mulheres na ciência, continuando a ter uma preponderância de homens a progredir nas carreiras. Por isso, há algo que tem de ser definido estrategicamente. O instituto está muito consciente da situação, mas até que ponto o vamos apresentar como uma bandeira ou uma novidade estratégica, não sei. É algo que vai ter de ser ponderado.
Não é favorável ao sistema de quotas para as mulheres em cargos de chefia porque não premeia o mérito. Isso significa que os lugares não sejam ocupados pelos melhores?
Acho que não. O que as quotas fazem é obrigar as pessoas a identificar as mulheres que poderiam ocupar o lugar. As quotas fazem com que se vá aos grupos e se olhe para as pessoas que podem vir a ocupar um lugar, homens e mulheres. E nesse sentido acho que a sua existência é benéfica.
São as condições que existem, a remuneração ou reconhecimento que têm trazido tantas pessoas para a ciência?
As remunerações na ciência são baixas, e são em todo o mundo. Quem envereda pela carreira científica não tem ambições de ser rico, porque as duas são, em geral, incompatíveis. E digo em geral porque hoje já há muitas oportunidades para, a partir de uma descoberta, se criar uma empresa, vendê-la e ficar rico. Há pessoas que enriqueceram porque tiveram uma ótima ideia e a venderam, não ganharam o Prémio Nobel mas ganharam muito mais. Dizer que não há, de todo, o estímulo de enriquecer na ciência não é verdade. Mas há esta nuance de que normalmente na maioria dos casos não é para enriquecer. Dito isto, logo à partida pode haver muitos homens a não quererem vir para a ciência, há uma maior tendência para eles quererem vir a ser ricos. E daí que muitos rapazes prefiram carreiras na gestão, na engenharia, em que as probabilidades podem ser maiores. Esta componente, logo à partida, cria uma separação entre os sexos pelas áreas que escolhem.
Na ciência os homens são mais bem remunerados do que as mulheres?
Depende dos países e dos sistemas, em países como Portugal, onde as remunerações são estipuladas e não negociadas, não há diferenças nenhumas, em países como os EUA, eu sei que há diferenças. Nos EUA, as remunerações são negociadas e dependem muito da capacidade de negociação entre o cientista e o empregador. E, mais uma vez, as estatísticas dizem que, em média, um homem é muito mais agressivo na negociação do que uma mulher, a mulher contenta-se com um salário inferior ao de um homem. E, como tudo é negociado em privado, ninguém sabe do salário um do outro, mas é um sistema de funcionamento completamente diferente. O nosso sistema é diferente, a ciência faz-se sobretudo a nível público e é igual para todos, de cima para baixo.
Como é que consegue fazer com que muitos cientistas não se vão embora do país?
É difícil, mas falo com eles, tanto os homens como as mulheres, quando se chega à fase de formação avançada, vão ter de definir a sua vida. Não é tanto decidir, é começar a luta para progredir. E é aí que as pessoas têm de decidir quanta energia estão dispostas a focar nessa luta. Isto, porque na situação atual há muito poucas oportunidades para um pós-doutorado vir a ser um investigador principal em Portugal. Não há lugares, mas no mundo há imensos, só que isso implica sair do país. É uma opção pessoal.
O número de vagas que existem em Portugal é reduzido. Porquê?
Houve uma fase em que se deu um grande aumento de lugares na ciência, mas agora estão todos ocupados. Para abrir mais lugares era preciso mais investimento, e estamos numa fase de austeridade, não há fundos públicos. Nem sequer estamos a conseguir manter os lugares de investigador principal, há uma tendência para reduzir lugares. Por exemplo, no nosso instituto os lugares que existem foram ocupados há pouco tempo, e os investigadores principais são jovens, o que quer dizer que há quem vá sair para o estrangeiro.
A fuga de cérebros continua...
É inevitável essa fuga de cérebros em pessoas que foram treinadas, e isso não está a acontecer na área da ciência ou da investigação. A nossa formação é reconhecida como sendo muito boa e, portanto, há institutos e empresas que vêm cá buscar os licenciados para certas áreas. É uma decisão que Portugal tem de tomar a nível geral. Será que vale a pena estarmos a investir na formação dos jovens para depois eles irem para outros países? Eu, sinceramente, acho que é sempre melhor investir na formação, quanto mais formação as pessoas têm, melhores cidadãos vão ser.