Na Mouraria, os toxicodependentes movimentam-se por todo o lado.
Na Mouraria, os toxicodependentes movimentam-se por todo o lado.Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Insegurança na Mouraria: “Já fomos assaltados quatro vezes”

O tráfico e consumo de droga alavancam outros crimes, como assaltos e furtos. Na Mouraria, a população tem medo de represálias e vai contando o que sabe, por meias palavras. Queixam-se da falta de policiamento e assistem a cenas violentas e estranhas todos os dias.
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“Isto está uma desgraça! Ainda há uns meses houve uma cena de pancadaria à minha porta”, começa por revelar Helena Santos, 84 anos, alfacinha de gema, nascida no Alto do Pina mas a morar na Mouraria há 35 anos.

A idade já pesa e, perante o que se passava à sua porta ficou “com muito medo, porque se um deles desse um pontapé na minha porta, ainda me entravam pela casa dentro”. Nisto, decidiu ligar para o 112 e pedir ajuda. “Atenderam-me muito bem. O senhor, de lá, dizia-me para responder só ‘sim’ ou ‘não’ para os que estavam na rua não se aperceberem que eu estava a pedir socorro. Só que, no fim da conversa, disse-me para me manter trancada em casa, não sair, porque não tinham polícia para cá vir, que estavam todos ocupados noutras ocorrências”, conclui a idosa, que se orgulha do passado de “fadista e uma boa bailarina”. 

Helena Santos está sentada no largo da Severa, um dos mais pitorescos da Mouraria. Mas a beleza do local esconde a violência que, por ali, vai acontecendo. “É mais à noite é que eles andam aqui, de um lado para o outro. É pancadaria, é droga, é de tudo um bocadinho”, desabafa a idosa.

Numa das pequenas casas, mesmo em frente, mora Dina Matos, 64 anos, empregada de limpeza. “O ambiente aqui é péssimo”, desabafa a mulher que, nota-se, tem receio de falar. “Tráfico de droga não sei, porque não compro. Não posso afirmar que vendem. Mas que eles passam aí, drogados, isso passam. Há muitas discussões. E a polícia não vem. É muito raro”, afiança Dina.

Aos poucos, a mulher vai contando mais detalhes do que se passa na Mouraria, que tem sido notícia pela criminalidade, incluindo violenta, como violações e homicídio. “Ainda no domingo passado roubaram o telemóvel à filha da senhora aí do café, em pleno dia. Isso é o costume”.

Dina Matos tem o postigo aberto, apenas coberto com uma rede mosquiteira. Ainda assim, garante que tem “muito medo” de viver ali. “O que é que eu posso fazer para me proteger? Nada! À noite estou aqui sozinha, o café fecha, vizinhos não há. A minha porta é de alumínio, se meterem aqui o pé, abrem-me a porta”, conforma-se, a inquilina deste rés-do-chão. 

Durante o dia, Dina não tem receio de sair de casa. “Toda a gente me conhece”. À noite, é diferente. “À noite já não saio. Aliás, tenho duas netas que, às vezes, vêm cá a casa ter comigo. Quando elas vão embora vou lá abaixo [ao Martim Moniz] para apanharem um táxi, ou assim, porque não quero que elas passem sozinhas na rua, é perigoso”.

Num beco, mais acima, muito perto do ponto onde se observa uma banca de venda de droga - são notórios os vigilantes que acompanham todos os movimentos de quem passa, angariam clientes e avisam os traficantes se a polícia estiver próxima - mora o irmão de Dina. “O meu irmão é taxista e sai de casa às três da manhã. Isso já é mais difícil, estou sempre a temer por ele”.

O táxi fica, por vezes, ali estacionado. “Numa semana partilham-lhe o vidro duas vezes. Diz que se vê muita gente a drogar-se também. E é verdade, mas não puxe por mim, porque nós aqui não podemos falar muito”, desabafa Dina Matos.

“Nasci aqui, conheço alguns, mas não me meto na vida deles, para eles não se meterem na minha. Aqui temos de jogar assim”. Certo é que para a moradora devia haver mais policiamento e “câmaras de vigilância. Vir aqui a polícia é muito raro. Quando houve agora as notícias vi-os a passar, dois a pé, mas foi só num dia”.

Porém, esta moradora já avistou outro tipo de intervenções policiais. “Às vezes vem uma brigada, vão lá acima, ao cimo da rua [zona onde se pratica o tráfico de droga, observada pelo DN]. Eles sabem onde é que vão”, conclui.

Os estabelecimentos comerciais também não escapam aos roubos e vandalismo. O vidro de uma das montras do sapateiro Silpes, no Poço do Borratém, está partida. “Nem vou pôr outra vez o vidro, agora é esperar que ele caia. Já pus alarme na loja, porque em três anos fomos assaltados quatro vezes”, revela Carlos Encarnação, o dono da loja, sapateiro de profissão.

O filho, Luís Encarnação, herdou a profissão do pai, apesar de ser licenciado em Antropologia. Na loja está também Natália, a mãe. A família, que há muitos anos trabalha naquela zona da cidade, parece já estar habituada ao crime. “Sempre houve criminalidade nestas zonas, não é nenhuma novidade”, avança Luís Encarnação. “Não há aqui um fenómeno novo; há uma intensificação porque existe uma degradação das condições de vida das pessoas. Os salários são baixos, as pessoas recorrem a comportamentos marginais, como o tráfico de droga e a prostituição”, advoga o jovem. “Claro que isto nos preocupa. Aqui na loja, por exemplo, não vamos mentir: tivemos de pôr um alarme para evitar os assaltos. Como o meu pai disse já fomos assaltados quatro vezes”.

Luís Conceição cresceu perto, na Graça, onde frequentou o liceu Gil Vicente. Tem vida associativa na Mouraria e garante que anda “à vontade” na rua. Ainda assim, admite: “Às vezes poderá haver um furto... Por acaso, há uns dias, aconteceu a um amigo meu, roubaram-lhe o telemóvel. Ele apareceu e disse: ‘Roubaram-me o telemóvel’. Tudo bem, há vários anos que roubam telemóveis. Ou seja, estamos a falar da criminalidade que não é violenta, é o normal”.

O pai, Carlos Encarnação, concorda: “Toda a vida houve aqui assaltos. Estou nesta loja há 16 anos mas já trabalho na Mouraria há 36. O que é que acontece? Às vezes o multibanco aqui da loja não funciona. Digo aos clientes para irem levantar dinheiro. E as pessoas mostram medo. Aqui na zona há muito mau ambiente e isso assusta as pessoas. E porquê? Porque o tráfico de droga e esse tipo de situações não acabam”. 

No restaurante Zé dos Cornos, o proprietário, José João Ferreira, conta uma situação insólita a que assistiu. “Há umas noites, andava aí uma miúda na rua, não devia ter mais do que uns 14 anos, toda nua e drogada. A olhar para as pedras da calçada, à procura não sei do quê, como se as pedras escondessem ouro”. Todas as noites são pautadas por acontecimentos que já se tornaram rotineiros. “Os drogados metem-se aí atrás, à porta do armazém. Às vezes quero fazer a minha vida, tirar e pôr mercadoria, e ainda tenho de lhes pedir licença para passar. E quando vem aí um fulano vender [droga ] é bichas e bichas de gente, para comprar. Parece que está a haver uma manifestação”.

No terreno, a Associação Renovar a Mouraria, tenta apoiar os residentes e visitantes do bairro. Filipa Bolotinha, diretora da associação, também já viu muito no Beco do Rosendo, onde fica a sede da Renovar a Mouraria. “Aqui é um dos sítios onde ocorrem consumos de droga e estamos ao lado da escola. Já vimos aqui, durante o dia, pessoas a baixarem as calças e a injetarem-se nas pernas e nos pés”. 

Na associação vive-se em sobressalto. “Já reforçámos a porta e, apesar de nunca termos tido problemas, estamos sempre a pensar qual é o dia em que chegamos aqui e isto foi assaltado. Aliás, levamos os computadores para casa, por uma questão de precaução”. Numa destas manhãs, Bolotinha observou “um rapaz que estava a assaltar o armazém, aqui no beco. Nós vimo-lo com um caixote do lixo, a tirar coisas lá de dentro. Abordámo-lo e ele disse que era com autorização do dono. Quando lhe dissemos para chamar o dono, fugiu”.


O DN teve acesso a um relatório estratégico da PSP, sobre a criminalidade registada na freguesia de Santa Maria Maior. Foi analisadas as ocorrências entre 1 de janeiro de 2023 e 15 de julho de 2024. Neste período foram registadas 3 356 ocorrências, o que equivale a uma média de 186 por mês. 

O relatório verifica que houve uma diminuição da criminalidade, especialmente a violenta, em menos 10,69% e um aumento de 2,84% nos furtos. 

Porém, numa análise mais fina dos dados, verifcamos que neste ano e meio houve 293 roubos, 150 em 2023 e 143 apenas no primeiro semestre deste ano. Na criminalidade violenta e grave, registaram-se 11 ocorrências em 2023 e nove nos primeiros seis meses de 2024. Foram ainda registados 1357 furtos: 669 em 2023 e 688 no primeiro semestre deste ano. Faltam seis meses para fechar estas contas.

Com Valentina Marcelino

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