Imóveis desafetados das Forças Armadas ainda não deram casa a ninguém
Com pompa e circunstância, o ex-ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, cedeu ao ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, oito imóveis militares para serem integrados no programa de arrendamento acessível, disponibilizando 1379 novas casas.
Eram eles a Quinta da Alfarrobeira (365 fogos), a Cerca do Convento da Estrela - Ala Sul (107), o edifício do antigo Hospital Militar da Estrela (84), todos em Lisboa; as antigas instalações utilizadas pela Manutenção Militar e a Oficina Geral de Fardamento e Equipamento (67) na avenida da Boavista, o edifício na Avenida de França (36), o Trem do Ouro e a Casa do Lordelo do Ouro (90), localizados na rua do Ouro, no Porto; e a antiga Estação Radionaval de Algés, em Oeiras (630).
Com o protocolo acordado a 30 de junho de 2021, que contou também com a assinatura do secretário de Estado do Tesouro, Miguel Cruz, o governo anunciou que as Forças Armadas iriam receber 110 milhões de euros, pela concessão por 75 anos dos direitos de superfície, para investimento nas suas infraestruturas.
Mais de dois anos depois, porém, ainda não há nenhuma casa com rendas acessíveis e os Ramos apenas receberam 15,4 milhões da verba prometida.
A agravar, Carlos Moedas, que tinha aceitado que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) fosse parceira deste plano no mais importante e valioso imóvel, a Quinta da Alfarrobeira (Benfica, Lisboa), desistiu da operação.
A ideia deste "negócio", que nasceu do ex-secretário de Estado da Defesa, Jorge Seguro Sanches, tinha como "parceiros preferenciais do aproveitamento e da rentabilização destes imóveis disponíveis, as entidades públicas, nomeadamente os municípios, a favor das quais preferencialmente" como escreveu o próprio num artigo de opinião no DN, "se entende como muito interessante a constituição de direitos de superfície - com uma duração limitada - devendo, após este período, os imóveis regressar ao património da Defesa Nacional."
Seguro Sanches defendia o "modelo em que não se perde património de uma forma vitalícia, mas antes se adquire uma verdadeira rentabilização programada, permitindo assim que, com a receita, se financie o necessário investimento com vista à conservação, manutenção, segurança, modernização e edificação de outras infraestruturas do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) e dos Ramos".
Acreditando que esta solução seria o melhor de dois mundos, mantendo o património na esfera da Defesa e, paralelamente permitindo "a construção naqueles três concelhos, prosseguindo o país o desígnio de potenciar a habitação em concelhos mais populosos e com preços mais adequados aos rendimentos das famílias", o ex-secretário de Estado e atual deputado pelo PS, sublinhava que pela primeira vez seria "possível às Forças Armadas planear e programar, a médio prazo, os investimentos nas suas infraestruturas, com a certeza e a garantia de uma receita de forma faseada e anual, para afetar a projetos de conservação, manutenção, segurança, modernização e edificação de infraestruturas".
Mas o que parecia ser um "presente" para Pedro Nuno Santos e para as Forças Armadas não teve ainda o desenvolvimento ambicionado. Aliás, parece ter travado a fundo, desde que Seguro Sanches deixou o Ministério da Defesa.
Questionados pelo DN, os ministérios da Habitação, da Defesa e das Finanças, não clarificaram totalmente os motivos dos atrasos. O gabinete de Fernando Medina não respondeu.
Sobre o número de fogos já disponíveis para arrendamento acessível, a porta-voz da Ministra Marina Gonçalves diz que "os imóveis estão em diferentes estados na operação de conversão em arrendamento acessível, faltando apenas a integração de um dos imóveis, cujo registo está em curso por parte da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional".
Esta fonte oficial sublinha que estão em causa "operações de elevada complexidade que pressupõem regularizações registrais, loteamentos, pareceres e avaliações de entidades externas e, na grande maioria das operações, construção de raiz, pelo que são operações a concluir até 2026, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)".
Acrescenta ainda que "no caso do imóvel "Lisboa - Quinta da Alfarrobeira", que seria cedido à CML, e tendo em conta que não quis a mesma continuar com a operação, encontra-se em curso a avaliação do imóvel para integração no Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e no programa do Governo de promoção de habitações a custos acessíveis".
Contactada pelo DN, a CML justifica a decisão desta forma: "Avaliada a opção e as várias implicações da mesma, entre elas a nível de encargos para a CML num valor de investimento financeiro muito considerável, reforçado ainda por alternativas e disponibilidade de outros locais que já fazem parte do património municipal, a decisão foi de que estrategicamente não fazia sentido manter essa possibilidade em concreto".
Recorde-se que o processo de desafetação e rentabilização da Quinta da Alfarrobeira já dura há vários anos e está a demorar a sua concretização.
De acordo com documentos oficiais do MDN a que o DN teve acesso, logo em 2019 estava em curso um plano para a sua venda, com uma estimativa de licitação inicial em hasta pública de 25 milhões de euros.
Era Alberto Coelho, detido na Operação Tempestade Perfeita, em que se investiga corrupção, o responsável por estes processos, enquanto diretor-geral da DGRDN.
Seguro Sanches pediu às Finanças uma reavaliação e o valor do imóvel subiu para os 47 milhões de euros.
Já no âmbito do novo plano de cedência do Direito de Superfície por 75 anos, esse valor baixou para cerca de 33 milhões. Resta saber qual a nova avaliação de um imóvel que as Finanças consideraram poder ser vendido por 47 milhões de euros.
Esta avaliação da constituição de direito de superfície da Alfarrobeira não é, no entanto, referida na lista enviada ao DN pelo ministério da Defesa Nacional (MDN).
Apenas foram facultados dados de seis dos oito imóveis: o Hospital Militar da Estrela (13,3 milhões); da Cerca do Convento da Estrela - Ala Sul (19,2 milhões); da Estação Radionaval (37, 1 milhões); do Trem de Ouro e Casa do Lordelo (5,6 milhões); e do edifício da avenida de França (4,3 milhões).
Ao total de 79,6 milhões, uma avaliação que o MDN assegura ter sido feira de forma "independente, por perito avaliador registado na Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, homologada pela Direção-Geral do Tesouro e Finanças", faltam, além da Quinta da Alfarrobeira, as antigas instalações da Manutenção Militar e a Oficina Geral de Fardamento e Equipamento.
De acordo com o protocolo assinado, este último deveria ter o direito de superfície "constituído a favor, em conjunto, do IHRU e do Município do Porto, cuja oferta pública de habitação a custos acessíveis deverá ser promovido nos termos da parceria a estabelecer entre ambos".
Como já referido, a porta-voz de Marina Gonçalves, informou que, quanto à Albarrobeira, está "em curso a avaliação do imóvel para integração no IHRU".
Declaração que coincide com a da fonte oficial do gabinete da Ministra Helena Carreiras quando declara que, em relação a este imóvel, em Lisboa, e o da "Manutenção Militar e Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento" está em curso "a tramitação processual a favor do IHRU".
Desconhece-se, portanto, qual será o valor destes dois imóveis agora e de que forma isso afetará o "bolo" de 110 milhões que deveriam reverter para as Forças Armadas.
O ministério da Defesa garante que "no âmbito da rentabilização de imóveis da Defesa Nacional para o Programa de Arrendamento Acessível foram direcionados 15,4 milhões de euros para a melhoria das infraestruturas das Forças Armadas, provenientes das primeiras prestações já recebidas relativamente a quatro dos imóveis em causa". Recorde-se que o programa começou com oito imóveis e apenas houve prestações de quatro.
Diz a mesma fonte oficial que, está também, "em fase final uma proposta de reafetação de mais 7,6 milhões de euros".
Tendo em conta que, quando este plano foi feito, ficou definido ao pormenor onde o Exército, a Força Aérea e a Marinha utilizariam estas verbas, o DN perguntou ao MDN para onde foram exatamente direcionados os 15,4 milhões já pagos.
A resposta foi remetida para o EMGFA e Ramos. "A afetação de verbas oriundas da rentabilização de imóveis da Lei de Infraestruturas Militares (LIM) é aprovada por despacho do Secretário de Estado da Defesa Nacional, de acordo com as necessidades de investimento identificadas pelo EMGFA e pelos ramos das Forças Armadas. Cabe a cada uma das entidades executantes - EMGFA e ramos - o correspondente investimento nas infraestruturas militares no âmbito da componente fixa do sistema de forças aprovado", afirma fonte oficial.
Questionados, os Ramos não responderam. "Em relação à reafetação das verbas proveniente de receita do PAA, a indicação que tenho é que não é possível desagregar do valor total de receitas da LIM", justifica depois a mesma porta-voz de Helena Carreiras.
Seguro Sanches, que fez deste PAA uma das bandeiras do ser mandato como secretário de Estado, compreende a demora nos resultados. "São sempre processos morosos. Senti que em 2019 este não era o modelo preferido ou proposto pelos serviços (era a venda a particulares). Entendemos que era melhor envolver os Municípios e dar um contributo para a política de habitação sem alienar os imóveis (cedendo apenas por 75 anos o direito de superfície e voltando os mesmos a defesa nacional passado esse tempo", sublinha ao DN o agora deputado.
Salienta que "a Defesa nacional e os Ramos trabalharam de forma célere junto das Finanças e no final de 2021 esta solução estava encontrada em entendimento nas três áreas governativas".
Acrescenta ainda que este modelo "garante que no final o interesse público nunca perde o imóvel, o que, para além de diminuir as hipóteses de especulação, aumenta a transparência".
Jorge Seguro Sanches entende que "o aproveitamento de património não utilizado ou até abandonado pelo Estado para habitação a custos controlados pode consistir numa oportunidade de o Estado fazer regulação na habitação. E, ao mesmo tempo, de arrecadar receita pública".
Acresce, conclui, "a oportunidade desenhada em 2021 de utilizar as verbas do PRR de forma faseada que significa planeamento também na execução a vários anos".