Uma nova aplicação que usa inteligência artificial para analisar uma simples fotografia à retina é o bastante para detetar glaucoma, uma doença que atinge mais de 200 mil portugueses e constitui a principal causa de cegueira irreversível. Foi a partir desta ferramenta tecnológica de uma startup belga que uma equipa de oftalmologistas do Hospital Santa Maria, liderada pelo médico Luís Abegão Pinto, desenvolveu e montou o SEER, um projeto inovador de rastreio que recebe esta quarta-feira a menção honrosa da Fundação Bial.O Screening & Eye Examination Center (SEER) é, tal como o nome indica, um centro de exames oftalmológicos baseado em inteligência artificial, mas que vai mais longe ao utilizar um modelo pioneiro de centros comunitários de rastreio que operam sem a presença física de um oftalmologista, disse, em entrevista ao DN, Luís Abegão Pinto, um dos responsáveis pelo projeto pioneiro a nível internacional, em conjunto com Joana Ferreira e Quirina Tavares Ferreira. O foco é não só no glaucoma, mas também na retinopatia diabética.Até que ponto o rastreio ao glaucoma, atualmente inexistente no Serviço Nacional de Saúde, é importante? O oftalmologista não tem dúvidas: “É muito importante, porque esta é uma doença silenciosa assintomática e quando as pessoas vêm ao médico normalmente já está num estadio muito avançado e grave”. Por outro lado, “os dados dizem-nos que o glaucoma está fortemente subdiagnosticado, com cerca de metade dos casos a não terem sido ainda identificados”. Isso quer dizer que, se temos 200 mil diagnosticados em Portugal, o número real de pessoas afetadas deve rondar os 400 mil, admite o oftalmologista. Os 200 mil casos estão calculados com base no número de pessoas que usam gotas para baixar a tensão ocular.“Em 2023 fizemos no Hospital Santa Maria o 1º rastreio de glaucoma com IA a nível mundial”, disse o médico. Na sequência dessa experiência bem sucedida, a equipa já recebeu vários prémios, merecendo agora a distinção nacional da Fundação Bial.O conceito é inovador, mas simples, explicou. “Um pequeno centro num espaço de cerca de 80/90 metros quadrados permite que o paciente faça um circuito sequencial, tipo gincana, de sala em sala, em que, a partir da primeira fotografia à retina se decida logo se tem de continuar a fazer mais exames, quais, e se pode ir-se embora porque não tem sinais de preocupação ou se deve ser visto por um especialista no hospital”, explicou o líder do projeto. É este modelo que está já em funcionamento na ULS de Santa Maria, em Lisboa, e que permitiu já chegar a algumas conclusões. “Havia um ceticismo relativamente à IA e por isso têm de ser dados passos graduais, mas verificámos uma eficácia de 90% na identificação destas doenças através do software MONA. No rastreio realizado junto de 1060 pessoas detetou-se que um terço dos doentes já tinha doença grave”. Foram detetados cerca de 80 doentes com necessidade de observação hospitalar. Apenas um destes doentes sabia que tinha uma doença ocular, e ainda assim, cerca de 20% dos doentes apresentava já uma diminuição moderada a grave do campo visual.Esta facilidade e rapidez inédita de procedimento é, na opinião de Luís Abegão Pinto, uma verdadeira oportunidade para o Sistema Nacional de Saúde prevenir uma doença com custos gravosos, tanto para as pessoas como para os cofres públicos, e poupar muito dinheiro a longo prazo em consultas com especialistas e exames, mas também com os encargos da cegueira.De acordo com os cálculos da equipa, “organizar um centro, já com equipa com capacidade para atender 15 mil pacientes por ano não chega aos 400 mil euros, menos do que o preço de um T2 em Lisboa”, disse. Em contrapartida, aponta, “o custo para o Estado de uma pessoa cega ronda os 30 mil euros, entre o que ela deixa de produzir e os cuidados e equipamentos e subsídios de que vai necessitar”. O especialista conclui que “se tivéssemos rastreado 500 mil pessoas teriamos detetado 10 mil casos de glaucoma e evitado 50% destes casos, poupando 500 mil consultas de tratamento e diagnóstico”.Para além disso, “se criarmos circuitos com mais algum equipamento, podemos não só estadiar a doença e enviar o doente ao hospital já sabendo se é grave ou não; e por outro lado, criamos perto de casa das pessoas um centro onde podem monitorizar as doenças se estas estiverem estáveis. Representariam assim um ganho para os doentes, para o sistema de saúde e para a comunidade no geral”.A próxima etapa deste projeto consiste na implementação de um centro de rastreio no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, que servirá como modelo para a replicação do SEER noutras regiões de Portugal. Essa é, pelo menos, a expetativa da equipa. “Gostaria que isso acontecesse ainda este ano”.Até agora, a equipa tem contado com o apoio do conselho de administração do Hospital de Santa Maria, mas confia nos méritos do projeto para convencer a tutela da sua utilidade para o país.“Estou convencido de que esta é mesmo a solução para esta doença”, conclui o vice-presidente da Sociedade Europeia de Glaucoma e coordenador do Grupo de Investigação da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia.