O governo entregou o Orçamento do Estado para 2023 no dia 10 na Assembleia da República, e as reações não se fizeram esperar, quer por parte da oposição, quer por parte dos vários setores. No que respeita à Saúde, as classes médica e de enfermagem foram as primeiras a manifestarem-se, criticando sobretudo o montante atribuído aos recursos humanos (5474,7 milhões de euros, mais 153,3 milhões do que este ano, no total mais 2,9%). Ambas defendem ser insuficiente, tendo em vista as reivindicações feitas e os incentivos que poderiam travar as saídas em barda do Serviço Nacional de Saúde (SNS)..Mas este receio é também manifestado pelos administradores hospitalares. "O que mais nos preocupa é o facto de estar previsto um aumento de 2% para os salários mais qualificados e se isso é ou não suficiente para incentivar e fixar os profissionais no SNS, sobretudo num cenário de inflação", admite Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH)..O gestor acredita mesmo que, no decorrer do próximo ano, o governo terá de criar "outro tipo de incentivos que mitiguem o efeito da eventual perda de rendimento por causa da inflação". Senão, diz, será muito difícil obter resultados..O OE 2023 prevê um total de receita para o ministério agora comandado por Manuel Pizarro de quase 15 mil milhões de euros, precisamente 14 858,5 milhões, mais 1177 milhões do que o previsto para 2022, que era de 13,5 mil milhões, o que "é um cenário bem melhor", destaca o administrador..No entanto, e embora enaltecendo as prioridades definidas, não esconde que a questão dos recursos humanos "é um dos principais riscos deste orçamento". E explica porquê: "O aumento previsto para o montante é de 2,9%, mas é um aumento que carece de alguma interpretação. O sr. ministro já referiu, na entrevista à RTP, que este número terá alterações quando se concretizar a transferência de competências de recursos para os municípios, porque haverá menos pessoas no SNS e menos gastos. Portanto, não podemos só olhar para a percentagem em si ou para o montante global"..A grande preocupação é mesmo o aumento previsto para a Função Pública de 2%, porque este não será suficiente para fazer face a uma inflação muito próxima dos 9% este ano, e dos 4% prevista para 2023. "Este ano, já vai haver uma perda de rendimento real de cerca de 7%. Se somarmos a isto a perda que poderá haver no próximo ano estaremos a falar de perdas consideráveis de rendimento.".Desta forma, sublinha, não restará outra solução senão criarem-se mecanismos de incentivos para "retribuir as pessoas em função do seu desempenho", apontando como uma das soluções de maior investimento numa das medidas há muito previstas em lei : os Centros de Responsabilidade Integrada (CRI). "São uma forma de premiar os melhores, os que mais produzem, e de se obter melhores resultados"..Outra das preocupações em relação a este Orçamento e referida pelo presidente da APAH respeita a uma omissão: a revisão da própria carreira dos administradores hospitalares. "O tema mais referido em debates ou em conferências é sempre o mesmo: mais eficiência e melhores resultados, mas como queremos gerir melhor os hospitais se depois não revemos a carreira e se não há um investimento claro na estrutura de gestão do SNS?" Isto é "absolutamente evidente no OE 2023, porque, mais uma vez, não inclui esta questão"..Xavier Barreto sustenta que a questão não tem um interesse corporativista, mas um interesse público, argumentando: "A classe dos administradores é a mais preocupada com o desenvolvimento, eficiência e produtividade do SNS. Este tem sido sempre o nosso trajeto. Portanto, não se entende esta omissão. No dia a dia dos hospitais, sabemos que é preciso ter alguém no terreno preocupado com os resultados e a discutir com médicos, enfermeiros e outros profissionais de que forma é que podemos ser mais produtivos. Isto faz toda a diferença"..E dá exemplos: "Se houver um administrador responsável pelo bloco, que garanta que as cirurgias são feitas de acordo com um plano, que os tempos cirúrgicos são todos ocupados na sua totalidade e que se está, de facto, a produzir o que era suposto, os resultados serão sempre diferentes do que se não tivermos nenhuma estrutura focada nestes aspetos"..O administrador recorda que, neste momento, e como noutras áreas clínicas, já faltam gestores no SNS, "e se não há um enquadramento legal para a sua contratação, os hospitais que querem qualificar a sua estrutura de gestão, para que esta seja mais capaz, eficiente e produtiva, acabam por recuar no recrutamento, e já há unidades a fazê-lo". Quantos gestores faltam no SNS, Xavier Barreto não sabe ao certo, "falamos apenas de algumas dezenas de profissionais, mas que seriam suficientes para se gerir melhor"..Na questão da gestão, pura e dura, o presidente da APAH destaca que o montante atribuído à rubrica para a aquisição de bens e serviços traz igualmente risco e preocupação. "Se olharmos para o valor que está projetado até ao final deste ano, prevê-se um aumento de quase 11% em relação ao que estava inicialmente previsto. Não é um valor surpreendente, porque sabemos todos que os bens e serviços aumentaram, mas o que se prevê para 2023 é um aumento que assenta no pressuposto de que a inflação vai descer, podendo o aumento ser de 3,7%. Ora isto é um risco grande. Gostávamos que este cenário se concretizasse, mas estamos dentro de uma conjuntura internacional que não controlamos e um aumento sustentado nesta base é claramente um risco". No entanto, "acredito que o governo saberá resolver a situação, caso não se concretize a descida da inflação, e que aumente o montante para aquisição de bens e serviços"..Mas o OE 2023 tem algo de muito bom, que são 900 milhões de euros destinado a investimentos. Xavier Barreto diz que "é ótimo", mas a preocupação surge quando se olha para 2022 ou para os anos anteriores em que só 50% das verbas atribuídas ao investimento foi executada. "Em 2022, havia a mesma verba, mas até agora foram executados menos de 400 milhões. Estes montantes surgem do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) para a construção e renovação de unidades ou para a transformação digital - só para esta área estão destinados 300 milhões -, mas, de facto, é preciso que estes investimentos, que são por parte do Estado, avancem"..No ano passado, ficaram por concretizar cerca de 500 milhões de euros e a verdade é que o PRR tem prazos a cumprir, até 2026. Se os projetos não avançarem, porque a verba é atribuída mediante a apresentação destes, perde-se o dinheiro e, assim, "de nada vale termos um orçamento maior", diz Xavier Barreto, sustentando, no entanto, ter verdadeira esperança de que este ano seja diferente: "Temos uma nova equipa governativa e uma direção executiva que certamente estarão muito mais focadas nestes aspetos operacionais"..O presidente da APAH considera que as prioridades definidas para este orçamento "são arrojadas", "inovadoras" e vão ao encontro do que chama "decisão certa" para melhorar o acesso, a saúde mental e até as boas práticas de gestão. Por exemplo, "ao definir os Cuidados Primários como uma prioridade, bem como os Cuidados de Proximidade, nomeadamente no que se refere a uma maior participação das farmácias, é já um sinal de que é preciso encontrar-se maior complementaridade com outros parceiros", especificando mesmo: "Há uma medida que prevê a complementaridade dos serviços com o setor social para apoiar o acesso aos cuidados, o que significa uma direção ligeiramente diferente do que tivemos nos últimos anos", porque, embora já houvesse hospitais com acordos com o setor social para aproveitar as camas existentes nestes a um preço idêntico ao que custa no SNS, "só o facto de estar no OE representa que tal passa a ser uma realidade para todo o SNS. É uma medida que consideramos inovadora porque também tenta disseminar boas práticas de gestão"..Por fim, há algo que falta no SNS e que o presidente da APAH considera ser "a principal transformação que tem de ser feita". À questão sobre os desafios a curto e médio prazo para melhorar o SNS, Xavier Barreto não hesita a dizer que "é a revisão da carreira para se gerir melhor os hospitais". Mas há outra, que tem a ver com o percurso clínico. "Temos de encontrar rapidamente alternativas para o doente agudo, para que este, já que não é um doente urgente, deixe de ir às Urgências hospitalares". Uma resposta que, assume, não está a ser dada pelos Cuidados Primários. "É preciso criar uma rede de atendimento permanente para estes doentes. É a única forma de mitigarmos o excesso de doentes nos serviços hospitalares ao longo de todo o ano, já nem é só no inverno"..O gestor relembra que mais de 70% das consultas hospitalares são consultas de acompanhamento, havendo depois listas de espera de um ano e mais para os novos doentes. "Os hospitais foram criados para dar resposta aos doentes agudos, para fazer diagnósticos e tratamentos, e não para fazer acompanhamento de doentes crónicos, estáveis"..Xavier Barreto diz que a resposta ao doente crónico "é um dos grandes desafios para o futuro. Temos de pensar o que tem mais valor para a comunidade: fazer consultas de acompanhamento nos hospitais a doentes estáveis ou consultas a doentes que estão à espera há um ano espera por um diagnóstico e tratamento?"..A questão vai mais além do OE 2023, e não é nova, "mas tem de ser equacionada, a bem dos doentes e do SNS"..anamafaldainacio@dn.pt