Histórias de sucesso de três portugueses a viver no Cazaquistão
Tenho o sol a bater-me nos olhos, com os raios a refletirem-se também no ovo dourado que encabeça a emblemática Torre Bayterek, quando Miguel se aproxima e me cumprimenta em português, aqui mesmo no coração de Nursultan. Fomos postos em contacto pela nossa embaixada, pelo diplomata Adelino Silva, que me falou de um professor de Braga agora a viver na capital do Cazaquistão. Mas não adivinhava que Miguel, de 40 anos, chegaria acompanhado de Catalina, de 37, a professora colombiana que conheceu já cá, nem por um miúdo de três anos, o Santiago, cidadão português nascido na Ásia Central, neste vastíssimo país das estepes, o nono maior do mundo.
"Era investigador na Universidade do Minho quando pensei em ir dar aulas para o estrangeiro. A primeira ideia foi Inglaterra, mas depois dei por mim a candidatar-me a ser professor em vários países, até fora da Europa. Como não tinha currículo internacional, as respostas não chegaram. Bem, chegou a do Cazaquistão, para ser professor de Física numa escola pública em Aktobe, onde o ensino é trilingue: cazaque, russo e inglês", explica Miguel Carvalho Araújo, enquanto bebemos um café.
Catalina Roncacio, que segura no colo um pequeno Santiago cheio de sono, junta-se à conversa, ela que já tinha sido professora de Química no Uganda antes da aventura no Cazaquistão: "Éramos sete professores estrangeiros em Aktobe, mas só nós os dois, eu e o Miguel, éramos adeptos de caminhar pela cidade, à descoberta. [Risos] Fomos ficando próximos e de amigos passámos a namorados e a marido e mulher", conta num português muito bom, aprendido, diz, a conversar com Miguel. "Afinal já são sete anos", acrescenta.
Este é o primeiro ano letivo do casal em Nursultan, onde chegaram há poucas semanas e pouco a pouco vão conhecendo melhor. "É muito maior e com muito mais diversidade de tudo, até de restaurantes, do que Aktobe. Nem se compara", afirma Miguel sobre a cidade que se tornou capital em 1997, em substituição de Almaty, e que em 2019 deixou de ser Astana para ser rebatizada de Nursultan em honra do pai da independência, Nursultan Nazarbaiev, presidente cazaque entre 1991 e 2019.
Em casa, Miguel fala com Santiago em português, de modo a o miúdo saber a língua. O menino ri-se para mim quando lhe pergunto se está bom, virando depois a cara com a típica vergonha dos da sua idade quando encontram estranhos. Tem já passaporte português (feito na embaixada em Nursultan), até porque viajou para conhecer a família tanto em Portugal como na Colômbia, anda num infantário que usa o inglês e percebe o russo, porque até recentemente foi criado por uma ama que falava com ele nessa língua.
"Os cazaques são muito amigáveis e sempre nos acolheraram bem", diz Miguel. "E ao fim de algum tempo criámos amizades e passámos a ser convidados para ir a casa", acrescenta Catalina, sempre com um sorriso de simpatia. E habituaram-se aos 50 graus negativos. "Antes de vir, quase nunca tinha visto neve", diz Miguel, que de início notou preocupação da família por vir para um "...stão", muitas vezes associados a caos, o que está longe de ser o caso no Cazaquistão.
Têm viajado pelo país, que este ano celebra 30 anos de independência, e também por outras antigas repúblicas da União Soviética, mas a pandemia veio complicar tudo. Até a mudança para Nursultan tem a ver com os imprevistos causados pela covid-19, pois iam candidatar-se à China, para dar aulas, e à última hora tiveram de desistir, permanecendo no Cazaquistão. De repente, em Aktobe não havia vaga para ambos.
"Em Aktobe já tínhamos amigos cazaques. Participávamos nas tradições locais, nas festas familiares, sempre cheias de comida", diz Miguel, que se confessa apreciador de bife de cavalo, prato típico. Também Catalina gosta de cavalo, parte da cultura cazaque, um povo túrquico originalmente nómada.
A escolha de Santiago para nome do filho deu algum trabalho a Miguel e Catalina. Ainda tentaram um nome cazaque que também tivesse sentido em português e em espanhol, mas desistiram. E a escolha de Santiago só se tornou definitiva depois de Catalina perguntar "aos amigos árabes, indianos, um pouco de todo o lado, se lhes soava bem, se tinha algum significado estranho, se era fácil de dizer". Tudo a pensar, admitem, que os pais têm uma carreira internacional e o filho vai crescer provavelmente em vários países, pois devem ficar no Cazaquistão só até à idade de ele entrar na escola. Depois deverão procurar um local de trabalho na Ásia Oriental, mesmo que Catalina admita fascínio por África, mas "lá só quando o Santiago for maior e puder usufruir".
Portugal pode ser casa da família um dia, admitem. E não tem de ser Braga, nem sequer o Norte. "Gostei muito do interior do Algarve", diz Catalina, com Miguel ao lado a sorrir. Santiago já dorme.
Engenheiro aeronáutico de 56 anos, formado em Kiev, quando a Ucrânia era ainda uma república da União Soviética, Martín Germano Soares é fluente em russo e isso deu-lhe a oportunidade de trabalhar em Nursultan, capital do Cazaquistão, onde é vice-presidente de uma empresa que forma os futuros técnicos deste outro país saído da antiga URSS. "Os cazaques esperam de mim que eu prepare o pessoal do país com os standards europeus, internacionais, para que eles um dia possam já não estar dependentes de estrangeiros", explica num português em que muitas vezes surgem palavras espanholas pelo meio, ou não fosse Martín filho de pai português e mãe peruana.
Almoçámos num restaurante junto ao rio Ishim, que atravessa Nursultan, cidade onde o luso-peruano vive há cinco anos com a mulher russa e a filha, Nora, de nove anos, ambas de momento em São Petersburgo por causa da pandemia. De um primeiro casamento com uma ucraniana tem Marina, já adulta, que vive no Peru. "O tempo agora está agradável, mas no pico do verão é muito quente e no inverno o frio é muito. A temperatura pode chegar aos menos 40 ou 50 graus, mas já estou habituado", diz este homem que cresceu no calor tropical peruano e mesmo quando estudou em Kiev "era bastante menos frio, só 15 ou 20 graus negativos". Aos poucos, conta, vai também aprendendo umas palavras em cazaque, a língua nacional, que coexiste bem com o russo.
Nascido em Iquitos mas com o sonho de se fixar em Viana do Castelo, ou próximo, quando se reformar, Martín costuma visitar Portugal, onde tem família, e a ligação ao país do pai sempre foi forte: "A minha mãe, que era peruana, sempre me disse que o meu sangue era português, que era Portugal a minha terra, que os meus eram originários de lá. Isto marcou-me muito e a verdade é que Portugal me encanta. Visitei Lisboa, o Algarve e outras regiões e gosto muito."
A aventura peruana da família Soares é complicada: os avós paternos de Martín eram emigrantes portugueses no Peru quando se conheceram e casaram. Depois, vieram para Viana do Castelo, terra dele (ela era do Porto), e aí tiveram cinco filhos, até decidirem ir de novo para o Peru, com as crianças atrás, incluindo o menino de três anos que seria o pai de Martín. Nasceram mais cinco filhos no Peru. E as três filhas mais velhas do casal foram enviadas para Portugal para casar. Uma delas foi mãe do primo que vive hoje em Viana do Castelo, Germano Alberto Ferreira Soares, e que é muito próximo. Aliás, explica-me Martín, ele próprio também é Germano, nome que os homens da família costumam ter.
"Um momento muito especial para o meu pai foi ter ido celebrar os 80 anos a Viana do Castelo, voltar a ver a casa onde nasceu", relembra Martín, que depois me mostra fotos.
Foi um convénio entre os governos de Lima e de Moscovo que levou, em 1985, Martín para a URSS. Como o pai tinha uma oficina de carros, sempre gostou das matérias técnicas e assim quis estudar aeronáutica em Kiev, algo "mais útil" do que os cursos de marxismo-leninismo. Diz que nunca foi comunista, mas que "a União Soviética era um grande país". Foi-se embora em 1991, mesmo em vésperas da desintegração. No Peru teve altas responsabilidades na aeronáutica, pois foi diretor de segurança aérea; depois trabalhou para os espanhóis da Repsol, mas os contactos profissionais com a Rússia originaram a proposta para vir para o Cazaquistão, país que conheceu um grande progresso nas últimas três décadas, já independente, e onde Martín se sente bem a viver. Está integrado na comunidade e tem contacto regular com a dezena de portugueses de Nursultan, antiga Astana.
Despedimo-nos e Martín diz que a conversa foi boa para relembrar a família. Sobretudo esse pai português, "de olhos celestes, meio loirinho, que encantou a minha mãe".
Ao fim de 13 anos no Cazaquistão, onde casou e foi já pai por duas vezes, António Henriques sente-se em casa e os planos para um eventual regresso a Portugal são muito indefinidos para este consultor, nascido no Funchal, pois ainda agora fez 37 anos. "Vim depois de me ter candidatado a delegado da AIESEC no Cazaquistão quando estava a estudar Economia na Universidade de Coimbra. A AIESEC é a maior organização de estudantes do mundo, a envolver sobretudo alunos de Economia e de Gestão. Vinha para ficar um ano", conta António, enquanto bebe uma cerveja no Afiche, um café-restaurante cujo nome se inspira na palavra francesa para cartaz e que é vizinho do teatro nacional em Almaty, um edifício construído em 1941, na era soviética, e que hoje tem o nome de Abay, o grande poeta cazaque, nascido no século XIX.
A meio da nossa conversa na esplanada do Afiche passam uns amigos, que António cumprimenta em russo com grande à-vontade, pois foi aprendendo o idioma que no Cazaquistão funciona como língua internacional e igualmente de ligação entre as mais de 100 comunidades do país, dos alemães aos usbeques e coreanos. Também vai aprendendo cazaque, até porque casou com uma cazaque, Madina, mãe de Camila e de Adam, ela com seis anos e ele com dois. Como é habitual em muitos casais binacionais, António e Madina procuraram para os filhos nomes que funcionassem nos dois países.
Sobre casar com uma cazaque, e como foi tal aceite pela família da noiva, o português garante que "não houve absolutamente nenhum problema". Até porque, explica, os cazaques "são muçulmanos subtis, seguem um islão que se soma a tradições nómadas, ligadas ao culto do Sol. Não é nada como o islão árabe".
Almaty, que no tempo da União Soviética se chamava Alma-Ata, deixou, em 1997, de ser capital do Cazaquistão, cedendo o estatuto a Astana, depois rebatizada de Nursultan. Mas mantém-se a mais cosmopolita das cidades e com um clima menos extremo do que o de Nursultan. António gosta da cidade, das avenidas arborizadas, das esplanadas no verão, das montanhas, às quais é possível subir de teleférico até 3200 metros, onde fica a estância de esqui de Shymbulak. E se a vida é agradável, também as oportunidades de negócio existem no Cazaquistão, país de 19 milhões de habitantes, a maior economia da Ásia Central (tanto em PIB absoluto como em PIB por habitante) e a segunda do antigo espaço soviético, depois da Rússia. A riqueza do país, presidido desde 2019 por Kassim-Jomart Tokayev, vem sobretudo do petróleo e do gás natural, mas também de minérios vários e da agricultura.
"Existem várias empresas de consultoria que conseguem fazer relatórios sobre o Cazaquistão. Eu não faço relatórios. O que eu faço é criar ligações, estudar o produto da empresa portuguesa e saber ir à procura de onde esse produto se encaixa. Faço a pré-venda, faço a venda em conjunto e ajudo também a executar os projetos ou a entrega do produto até ao fim", explica.
Entre os clientes de António está o gabinete de arquitetura Saraiva & Associados, que em Almaty fez a entrada do jardim botânico e em Nursultan a sede de um banco, perto da avenida onde fica a Torre Bayterek, um dos símbolos da nova capital.
Sobre o país onde os filhos estão a crescer, António diz que "a tão elogiada estabilidade é um pau de dois bicos, pois também limita certos eixos de desenvolvimento". Contudo, quem sabe como o Cazaquistão funciona, quais as regras, pode ser bem-sucedido nos negócios, e por isso há constantemente empresas portuguesas a contactar o consultor, que nunca trabalha com mais de três ou quatro ao mesmo tempo e sempre sem serem concorrentes.
De Portugal, diz, os cazaques sabem pouco, embora "toda a gente conheça o Cristiano Ronaldo, o melhor jogador do mundo". António, que em miúdo jogou no Andorinha, costuma até contar aos amigos no Cazaquistão que chegava a cruzar-se com o agora famoso futebolista na Madeira, mas que poucos acreditam, "acham que sou um exagerado", tal é a fama de estrela de Ronaldo.
DN viajou a convite do MNE do Cazaquistão.