Rastreio às hepatites pode ajudar a identificar pessoas que não estão imunizadas e que devem fazer a vacinação.
Rastreio às hepatites pode ajudar a identificar pessoas que não estão imunizadas e que devem fazer a vacinação.Global Imagens Reinaldo Rodrigues

Hepatite A. “Deve pensar-se em reforçar a vacinação gratuita para grupos de risco”

Portugal está a viver o segundo surto em oito anos. O primeiro, que correu entre 2016 e 2018, atingiu 600 casos. O de agora já vai em 43, de janeiro a 18 março, mas sem casos graves ou óbitos. O diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais diz é preciso outra abordagem e “começar-se a falar mais da hepatite A”
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Há uma semana, a Direção-Geral da Saúde (DGS) alertava para um novo surto de hepatite A em Portugal, anunciando terem sido registados 23 casos entre 1 de janeiro e 5 de março. Na sexta-feira, ao final da tarde, informava que o número de casos passou para 43 até 18 março e que a situação está a desenvolver-se  “sem  casos graves e sem óbitos”.

Na nota sobre a evolução epidemiológica no país, a autoridade de saúde refere que o padrão rastreado envolve sobretudo homens. “Maioria dos casos são do sexo masculino (37 casos), com idade entre 20-49 anos, sendo que em 37% dos casos a transmissão ocorreu em contexto  sexual (16 casos). Do total de casos, 26 (60%) são de infeção adquirida em Portugal, a maioria na região de Lisboa e Vale do Tejo (31 casos), e  16 são de estrangeiros residentes em Portugal”, pode ler-se.

No mesmo documento recomenda à população o reforço das precauções de higiene em relação a alimentos e à lavagem das mãos e a vacinação a pessoas de grupos de risco, recordando que esta “está disponível nas farmácias e que pode ser adquirida mediante receita médica”. 
Este é o segundo surto que Portugal vive em oito anos.

O anterior desenvolveu-se entre 2016 e 2018, atingindo 600 casos. E, segundo explicou ao DN o diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais (PNHV), Rui Tato Marinho, o vírus da hepatite A tem este tipo de comportamento: aparece, pode levar semanas ou meses a desenvolver surtos e depois retira-se.

O que quer dizer que tais surtos podem ser considerados normais, mas se puderem ser eliminados melhor. Em Portugal, os primeiros casos deste surto foram identificados  no início do ano, mas em outros Estados  europeus, como nos Países Baixos, começou a estar ativo nos últimos meses de 2023. O diretor do PNHV confirmou ao DN a não existência  de “casos graves, embora tenha havido alguns internamentos para se fazer o diagnóstico e para tratar um dos sintomas,  a icterícia”.  


Para já, parece estar afastada  a transmissão por via alimentar. “Na maioria dos casos a transmissão está associada a homens que fazem sexo com homens, mas  há outras situações associadas à atividade sexual”, explica o diretor do programa. Outra informação confirmada pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) é de que foi  detetada uma das estirpes do surto anterior  “em 12  casos confirmados”.

Entre 2016 e 2018  uma das formas de combate foi a vacinação gratuita de grupos de risco, já que a vacina para a hepatite A não integra  o Plano Nacional de Vacinação (PNV) e tem um custo. Mas, como diz Rui Tato Marinho,  “o aparecimento de dois surtos em meia dúzia de anos é  uma luzinha, um  sinal, para se começar a pensar numa outra abordagem à doença”.

Sobre o que estaria a falhar no plano nacional para o aparecimento destes dois surtos em tão pouco tempo,  o médico admite que “há sempre coisas a fazer e aspetos a melhorar.  Por exemplo, a primeira coisa é começar a falar-se mais da hepatite A”, assumindo mesmo que  a medida implementada anteriormente deve ser equacionada.  “Deve pensar-se em reforçar a vacinação gratuita nos grupos de risco.” 


Questionado ainda sobre se o combate à hepatite A não deveria mesmo passar pela inclusão desta vacina no PNV, Rui Tato Marinho diz ter “dúvidas”,  considerando que a vacinação deve ser reforçada de forma gratuita nos grupos de risco, devendo as organizações que trabalham nesta área estar mais atentas à situação e insistir na sua administração. “Não sou a favor nem contra, tenho dúvidas de que seja absolutamente necessário”, argumenta. 


Proteger desde viajantes às pessoas com dependências


A diferença no combate à doença pode ser feita através da proteção dos grupos de risco, que envolvem não só pessoas com dependências, homens que fazem sexo com homens, pessoas que fazem sexo em grupo, doentes com VIH, pessoas em situação de sem-abrigo, mas também viajantes e outros .

“Os  viajantes para países onde a doença está ativa, África, Ásia e América Latina, devem ser vacinados. Temos militares e até jogadores de futebol que podem estar em funções nestes  locais que deveriam ser vacinados. Temos também imigrantes oriundos destes países a trabalhar na restauração e todas estas pessoas estão incluídas em grupos de risco”, explica. 


 Por isso defende também que a introdução do rastreio não só à hepatite A, mas a todas as hepatites, nestes grupos ajudaria a identificar quem não está imunizado contra a doença e deveria ser vacinado, evitando-se a doença para o resto da vida. “Ao contrário das outras hepatites, a hepatite A só se apanha uma vez na vida e tem cura, não fica como doença crónica, o que acontece com as hepatites B e C, que podem resultar em situações que evoluem para a destruição do fígado e para cirroses e exigem tratamentos específicos, como a hepatite C.”  

Esta última não tem vacina de prevenção, mas a B tem e foi incluída no PNV. Rui Tato Marinho diz mesmo que  “foi das melhores medidas em termos de saúde pública, porque a vacina é muito eficaz”.  A vacina da hepatite A também é e por isso dá um conselho a “quem não integra grupos de risco e  tem poder económico que faça a vacinação se quiser evitar mais uma doença”.


Para o diretor do PNHV, se  hoje não se ouve falar tanto da hepatite A e se não há tantos casos como antes é porque as condições de vida das populações melhoraram muito nas últimas décadas. “Há 40-50 anos as condições de vida e de higiene não eram tão boas e a  infeção atingia a maioria das crianças, muitas vezes sem o saberem, porque nesta fase a doença não dá sintomas e o assunto ficava resolvido para o resto da vida”, afirma, acrescentando: “Na altura, era raro um adulto ser infetado pelo vírus. Mas as condições de vida melhoraram muito e só uma pequena parte das crianças é infetada. E agora temos adultos que nunca estiveram em contacto com o vírus e que estão mais sujeitos à infeção. Na fase adulta, a doença provoca sintomas, como icterícia, e é assim que muitos dos casos  são diagnosticados.” 


A vacina gratuita pode ser só para os grupos de risco, mas o  alerta vale  para toda a população, porque “a hepatite A é uma doença de transmissão fecal e oral e a pessoa é contagiada através da ingestão de alimentos contaminados que foram mal lavados ou mal cozinhados”.

Em relação aos grupos de homossexuais ou que praticam sexo em grupo, Rui Tato Marinho alerta: “Houve uma alteração no padrão dos comportamentos em relação à atividade sexual. Houve um  aliviar nas precauções, o  que tem a ver com o facto de a transmissão do VIH já não ser tão mortal. A sida acabou por se tornar numa doença crónica,  relativamente fácil de controlar, e isso mudou tudo, mas é preciso voltar a falar das implicações destas doenças” e de todas as outras infeções sexualmente transmissíveis. O médico dá o exemplo do aumento de doenças como a sífilis.   


Para Rui Tato Marinho, este é o momento de se melhorar o que está a ser feito. A DGS pede à saúde pública vigilância e diagnósticos rápidos, para se travar a disseminação da doença, e reforça a insistência na vacinação.

Hepatite A é das menos graves mas das mais contagiosas

O que é a hepatite A?
A hepatite A (VHA) é a forma menos grave da doença, tal como os outros vírus das hepatites (B, C, D e E), também o da A causa uma inflamação aguda no fígado. A  hepatite A “é uma infeção muito contagiosa e pode originar surtos, com pessoas infetadas durante várias semanas ou até meses”.
Quais são os sintomas?
Se a infeção ocorrer na infância, a doença quase não dá sintomas. O mesmo já não acontece quando ocorre em crianças mais velhas e na idade adulta, em que a doença clínica se manifesta em mais de 70% dos casos. Os sintomas podem ser febre, mal-estar, náuseas, vómitos, dor abdominal, falta de apetite, fadiga, urina escura, fezes esbranquiçadas e icterícia (pele e olhos amarelados).
Como se transmite o vírus?
O principal modo de transmissão é por via fecal-oral (contacto de fezes com a boca), através da ingestão de alimentos ou de água contaminados. É importante ter em conta esta via de transmissão no caso de se viajar para locais com saneamento básico deficitário. Mas o vírus também pode ser transmitido por contacto pessoa a pessoa, nomeadamente através do contacto sexual.
Qual o período de incubação e de contágio do vírus?
O período médio de incubação é de 28 dias, variando entre 15 e 50 dias. Quanto ao contágio, o vírus vai sendo eliminado nas fezes, em elevadas concentrações, entre  duas e três semanas antes e até uma semana após os primeiros  sintomas.
E  os comportamentos de risco?
Os comportamentos de risco estão associados ao consumo de alimentos mal lavados ou mal cozinhados, como carne, ovos, legumes, marisco, fruta, não lavar as mãos após a utilização da casa de banho, mudar fraldas antes de preparar os alimentos.
Como se pode prevenir?
A principal forma de prevenção é a vacinação, mas  são aconselhadas medidas que visem reforçar a higiene pessoal, familiar e doméstica e sobretudo a confeção de alimentos, como lavar e desinfetar as mãos frequentemente, beber água potável ou engarrafada, cozinhar bem os alimentos, nomeadamente carne, legumes e ovos, lavar e desinfetar bem os alimentos crus antes de os consumir.

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