Henrique Leitão: "Uma sociedade que subvalorize a literatura, a história, a filosofia, as artes, não está a caminhar numa direção segura"
Inaugura o ciclo de conferências "Desafios da Ciência na Sociedade Contemporânea", subordinando a sua intervenção ao tema "Interfaces Ciências-Humanidades". Esta é uma relação que suscita um debate antigo. Neste campo, que reflexão vai levar à referida conferência?
Sim, o debate é antigo, mas um dos aspetos mais salientes das sociedades modernas consiste no facto de os temas e as questões científicas ocuparem hoje um lugar muito vasto no espaço público, muito mais vasto do que no passado. A questão tem hoje uma relevância que não tinha antes. Basta abrir um jornal para constatar que os assuntos de base científica são uma prioridade nas preocupações atuais e, por causa disso, nos debates, na definição de políticas públicas, e nas escolhas coletivas: assuntos relacionados com a saúde e a doença são de interesse permanente e tomaram uma forma especialmente dramática durante a pandemia; as questões climáticas estão na ordem do dia; as preocupações com os recursos energéticos e a sustentabilidade adquiriram grande urgência; os desafios colocados pela Inteligência Artificial ou as possibilidades e os riscos que se abrem com os avanços da engenharia genética são motivo de justificada ansiedade - e esta lista é muito reduzida. Este alargamento das preocupações e da discussão por temas que têm uma base científica não é um facto completamente novo, mas tem vindo a acelerar de maneira evidente, e obriga a uma reflexão muito mais atenta.
Numa conferência onde participou em 2018 [A Ciência na Sociedade Atual - Ciência para um futuro sustentável], lançou um repto: "No século XXI a ciência não é um assunto apenas dos cientistas". A quem se destinava esta sua afirmação?
Este problema ficou patente de forma muito clara nos anos da pandemia e traduziu-se sobretudo em dois aspetos que, aliás, já foram assinalados por muitos: em primeiro lugar, observou-se que havia grande desconhecimento acerca do funcionamento interno da ciência. O público teve imensa dificuldade em compreender as hesitações, os avanços e recuos que são próprios da investigação em ciência. A natureza da modelação e da previsão científica foi tantas vezes mal-entendida, depositaram-se por vezes esperanças irrealistas nos processos tecnológicos. Em segundo lugar, é também evidente que se colocaram, de maneira por vezes dramática, questões acerca de autoridade nas sociedades e do papel dos especialistas científicos na determinação de políticas públicas.
Que papel cabe às Humanidades numa sociedade dominada por um pensamento digital, imediato, e pela vertigem da economia?
A pergunta está, em grande medida, ainda em aberto, precisamente por estarmos a viver um período de grandes transformações. Se, em décadas passadas, o ensino e a formação intelectual se estruturavam em torno das humanidades, e o conhecimento das ciências era como que um complemento para certo tipo de especialistas, tudo isso foi profundamente alterado nas últimas décadas. Mas estas mudanças não são necessariamente positivas. Já foi há muito notada uma "crise das humanidades", e penso que há um consenso claro de que se está a perder algo de muito valioso. Uma sociedade que subvalorize a literatura, a história, a filosofia, as artes, não está certamente a caminhar numa direção muito segura, por mais desenvolvimento tecnológico de que se orgulhe.
Um dos desafios expressos no ciclo de conferências de que aqui falamos prende-se com o "contributo da ciência para uma sociedade melhor informada, justa e feliz". Podemos assumir que vivemos numa sociedade abundante na informação, mas parca no conhecimento?
Este ciclo de conferências, se bem entendo, propõe-se como uma ocasião de reflexão. Talvez seja verdade, como diz, que as sociedades atuais são abundantes na informação, mas parcas no conhecimento, mas importa caracterizar de maneira mais precisa o que é que isso quer dizer, em que medida afeta as nossas vidas, e o que é que se deve fazer para corrigir. O avanço do conhecimento científico é sem dúvida alguma um bem, é um dos grandes triunfos do nosso tempo, mas é preciso que esteja coordenado com a construção de sociedades mais justas e mais humanas.
Em 2014, ano em que ganhou o Prémio Pessoa, referia que "há uma imagem demasiado negativa da história científica em Portugal". Que imagem é esta? A forma como estudamos a nossa ciência afeta a imagem que temos de nós próprios e aquela que transmitimos?
A história da ciência é uma subdisciplina da história, mas com particularidades muito próprias. Acima de tudo necessita de profissionais especialmente formados para levar a cabo esses estudos. No caso do nosso país, esses profissionais foram quase sempre muito escassos e nem sempre devidamente formados. As minhas palavras nessa ocasião iam sobretudo nessa direção, mas felizmente nas duas últimas décadas houve grande progresso. O público em geral pode talvez ainda não se aperceber, mas o que sabemos hoje sobre as atividades científicas na sociedade portuguesa do passado é imensamente superior ao que sabíamos em finais do século XX. Há ainda grandes áreas que precisam de ser muito melhor investigadas historicamente, mas o balanço geral daquilo que tem vindo a ser feito, por muitos estudiosos em várias universidades do país, é francamente positivo.
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