Em outubro, os farmacêuticos hospitalares fizeram greve durante três dias. No último ano houve várias greves, mas ainda não há acordo à vista para as reivindicações, como para a valorização da carreira. A ministra, que é da área, esqueceu-se da classe? Os farmacêuticos hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS) estão desiludidos, mais do que isso, frustrados, porque desde 1999 que não vêem a sua grelha salarial modificada ou aumentada. Este é um dos problemas porque temos a mesma grelha salarial há 25 anos, quando há outras profissões do SNS, e bem, a fazerem uma trajetória positiva nesta área. Os farmacêuticos estão estagnados. Outro problema na base da frustração dos profissionais é o facto de a progressão na carreira também estar congelada no SNS, o que está a levar colegas a saírem do serviço público..A tutela tem esquecido os farmacêuticos hospitalares? Tem. Não apenas esta tutela, mas todas as outras desde há 25 anos. Não é só o terem esquecido, têm desconsiderado, digamos assim, a profissão no SNS. Tenho esperança que esta ministra, que não tem desculpa, como outros, de não conhecer a situação, ajude a repor o reconhecimento da profissão farmacêutica dentro das instituições hospitalares. Se olharmos para outros países, como Itália, França e Espanha a carreira farmacêutica está equiparada à carreira médica em termos salariais. Em Portugal, estamos a uma distância cada vez maior, o que é uma frustração do ponto de vista material e profissional..Isso pode ter repercussão nos cuidados dados aos utentes? Claro que se pode refletir na saúde dos cidadãos. E, principalmente, na saúde das instituições hospitalares, porque nenhuma instituição hospitalar pode viver adequadamente, nem prestar e cuidados adequados, pelo menos nos que está obrigada a prestar, se não tiver farmacêuticos. E temos tido cada vez mais casos de colegas, muitos deles de elevado potencial, a abandonarem o SNS para irem para hospitais privados ou para outras estruturas da profissão, que ainda tem muitas outras saídas profissionais. Por exemplo, recentemente tivemos um grupo de profissionais, que estavam dedicados aos ensaios clínicos nos hospitais do SNS, que saíram para desenvolverem atividade semelhante nos privados e em empresas da área. E saem porque precisam de melhores condições de trabalho e de reconhecimento. É muito urgente que se resolva esta situação. Qualquer dia não temos capacidade de assegurar minimamente a qualidade da prestação dos cuidados farmacêuticos dentro dos hospitais do SNS..Em termos de futuro a carreira hospitalar corre riscos? O que posso dizer é que foi criada recentemente a carreira de farmacêutico hospitalar. Neste momento, temos cerca de 400 internos que entraram na especialidade nos hospitais do SNS e que estão agora no terceiro ano, estando prestes a sair. Portanto, é importante que quando chegarem aos serviços tenham condições para fazer formação adequada, mas se não tivermos profissionais preparados para os formar, porque saíram do SNS, estaremos a perpetuar um problema..Qual? O de estar a formar farmacêuticos para ‘exportar’, tal como acontece com médicos e enfermeiros? É um dos problemas. Ou seja, criou-se a carreira farmacêutica à semelhança do internato médico mas, contrariamente ao internato médico, esta carreira não assegura o futuro dos farmacêuticos que estão a fazer a especialidade. O SNS forma, mas não tem mecanismos para garantir que depois usufrui destes especialistas. No meu entender, isto até é má gestão dos recursos no SNS, que está a investir na formação de novos especialistas e depois não os consegue segurar. .Isto é a nível hospitalar. Há mais perspetivas para quem escolhe a área da farmácia comunitária ou das análises? São duas áreas igualmente importantes e clássicas na profissão, que, às vezes, esquecemos, mas também temos farmacêuticos na indústria em diferentes vertentes, da produção à distribuição, e outros já a fazer caminho num conjunto de áreas que têm vindo a ter um grande desenvolvimento: avaliação das tecnologias de saúde, dispositivos médicos ou em intervenções em saúde pública. A ONU tem feito um grande esforço para criar massa crítica e de diferenciação nestas áreas..Não é uma profissão com desemprego neste momento? Não, o que é uma vantagem, mas, às vezes, um inconveniente. Há momentos em que não é fácil para as diferentes áreas de desenvolvimento profissional encontrar farmacêuticos de forma a responder às necessidades. Com a agravante de termos cada vez mais jovens farmacêuticos a irem para o estrangeiro..A Ordem tem números? Tem. Neste momento, cerca de 5% dos farmacêuticos inscritos na Ordem estão no estrangeiro. Somos 20 mil e mais de mil já saíram para trabalhar fora do país. E o problema é que estes estão na faixa dos 30 aos 40 anos. São farmacêuticos de elevado potencial, que iniciam a sua atividade profissional aqui e que depois se vão embora por falta de reconhecimento e das condições de trabalho. E, neste caso, não falo só dos farmacêuticos hospitalares, falo também dos comunitários, que é uma área em que, nas últimas duas décadas, tem havido uma degradação das condições de trabalho e principalmente de remuneração. Aumenta-se o número de horas de trabalho dos farmacêuticos e, muitas vezes, com salários que são pouco superiores ao salário mínimo. Há um problema de reconhecimento da profissão no SNS, mas também na farmácia comunitária. O que está a aumentar o movimento de saídas, sobretudo para Reino Unido, Irlanda, França, Bélgica e Norte da Europa, que dão muito melhores condições para o exercício profissional..Mas há falta de farmacêuticos nas farmácias comunitárias? Ainda não. Apesar de tudo, Portugal tem uma situação melhor do que a maioria dos países europeus em termos de recursos humanos e da sua qualidade. Cada farmácia tem uma média de quatro farmacêuticos diferenciados. Só aqui há grande potencial para se poderem desenvolver outras atividades técnico-científicas dentro das farmácias. É isto que a nova realidade europeia e internacional tem vindo a fazer para a sustentabilidade da profissão e para dar resposta às necessidades das populações cada vez mais envelhecidas e com maior carga de doença. Portanto, o que os sistemas de saúde internacionais estão a fazer é aproveitar o potencial que a rede farmacêutica comunitária tem em cada país para prestarem outros serviços e ajudar a resolver alguns dos problemas dos sistemas de saúde..Quando fala noutros serviços fala em cuidados aos utentes? Sim. Falo de cuidados em situações clínicas ligeiras. Isto é, sem elevada gravidade, mas situações que necessitam de um cuidado, e, por isso, acabam por sobrecarregar as consultas nos cuidados primários e até as urgências hospitalares. É o caso das infecções urinárias na mulher. É uma situação que não é grave do ponto de vista de não colocar em risco a vida ou a saúde da mulher, mas que é muito debilitante e necessita de uma resposta. E o que pretendemos é que nestas situações a mulher possa ir a uma farmácia e, com um protocolo definido para o tratamento, o farmacêutico possa fazer o mesmo teste à urina que se faz quando se vai a uma urgência hospitalar. Depois, no caso de dar positivo, poder dar um antibiótico protocolado para o seu tratamento. A situação fica resolvida de forma correta sem que a utente tenha ficado a espera e, até, sobrecarregado o sistema de saúde. Nada disto é novo. No Reino Unido já se faz e há estudos que indicam que num ano conseguiu evitar-se 38 milhões de consultas nos cuidados primários e nas urgências..A Ordem já fez alguma proposta neste sentido à tutela? Já. É um projeto importante onde o sistema de saúde pode ter ganhos ao trabalhar com a rede de farmácias comunitárias. Foram dados alguns passos com o anterior Diretor Executivo do SNS, Fernando Araújo. No Orçamento de Estado para 2024 estava inscrita até uma medida que refletia isto mesmo, desenvolver protocolos para situações clínicas ligeiras mediante com as Ordens dos farmacêuticos e dos médicos, mas o Governo caiu e, embora este já tenha demonstrado vontade de continuar com o processo, ainda nada se fez. Só temos de seguir as boas práticas internacionais, a bem de todos e principalmente a bem do SNS e dos cuidados dos doentes. .“É preciso reforçar a comunicação para todos serem vacinados antes do inverno”.Estamos em plena época de vacinação, mais uma vez as farmácias entraram nesta campanha. Está a correr como esperado? Este ano parece haver um bocadinho menos de adesão do que no ano passado. Isto é, os números até agora, relativamente à mesma altura, são superiores, mas começámos duas semanas mais cedo, o que tem de ser tido em consideração. Mas era importante que antes de se iniciar o verdadeiro período de inverno houvesse um reforço na comunicação para que as pessoas que devem vacinar-se ainda o fizessem. Mas tem havido listas de espera nas farmácias? Por exemplo, há centros de saúde que ainda não chamaram pessoas com mais de 85 anos, que só podem ser vacinados ali, para receberem a dose dupla da gripe. As farmácias funcionam como no ano passado, para a vacina da covid - em que são precisas cinco pessoas para administrar uma ampola e tem de haver marcação -, mas para a gripe em muitas farmácias não é preciso marcação. As pessoas chegam e são logo vacinadas. Da informação que temos não há listas de espera, só marcações para não haver desperdício de vacinas. O problema, agora, é outro: o da hesitação vacinal, embora Portugal seja dos países europeus que menos tem sofrido com este fenómeno. Está a acontecer? Não é que esteja a acontecer, o que é preciso é reforçar a mensagem para convencer pessoas de maior risco a vacinarem-se. Faz sentido que quem tenha mais de 85 anos tenha ser vacinada nos centros de saúde? Para mim não faz sentido absolutamente nenhum. Se queremos vacinar todas as pessoas com mais de 60, então os mais de 85, que são o grupo de maior risco, deveriam ser os primeiros a serem vacinados, são os que têm mais comorbilidades e os que têm maior probabilidade de desfecho fatal. Estar a tirar-lhes a opção de poderem dirigir-se à farmácia é estar a dar-lhes um sinal contrário. Portanto, não vejo razão nenhuma para que os centros de saúde, que já estão a fazer um esforço para vacinar as pessoas institucionalizadas e os acamados, tenham de vacinar os maiores de 85. Mesmo que a cobertura vacinal esteja nos 75%, quer dizer que ainda há 25% de pessoas de elevado risco que não foram vacinadas. Isto é preciso ter em consideração.