“Há uma maneira de dizer o mundo que só pode ser dita em mirandês”
Sabe como se chama o alimento que os pássaros levam no bico para os filhotes que estão no ninho? Em português não existe uma palavra, mas em mirandês há: çubiaco. “Há uma maneira de dizer o mundo que só pode ser dita em mirandês”, contou Alcides Meirinhos, da Associaçon de la Lhéngua i Cultura Mirandesa, dando outros exemplos numa aula aos jovens que participaram no Summer CEmp, que decorreu em Miranda do Douro. “Eu sonho em mirandês”, revelou.
O Dia da Língua Mirandesa assinala-se na próxima terça-feira, 26 anos depois da data em que a Assembleia da República reconheceu o mirandês como a segunda língua oficial do país. “Para nós é bonito que se fale que o mirandês é a segunda língua oficial, mas não é verdade. O mirandês é uma língua com direitos reconhecidos e isso é diferente. Se fosse uma língua oficial não estaríamos com este receio de que desaparecesse e há tanto tempo à espera de que o Governo fizesse algo”, explicou ao DN a presidente da Câmara de Miranda do Douro, Helena Barril.
A autarca social-democrata diz contudo que há uma luz ao fundo do túnel. “Há já uns meses que temos tido reuniões ao mais alto nível com o Governo. E nos dias 19 e 20 de setembro vai haver uma reunião presencial aqui em Miranda com vista à criação de um organismo para apoiar e ajudar a promover o mirandês”, referiu.
Por uma questão prática, quando se fala desse organismo fala-se de um Instituto da Língua Mirandesa, mas não se sabe ainda que orgânica terá. “A reunião servirá para começar a dar corpo à orgânica deste organismo, que será sempre na dependência do Governo Central, que não será manietada por quem está no poder autárquico”, disse.
Para Alcides Meirinhos, a criação do tal instituto é apenas uma das três coisas “nucleares” que é preciso ser feito a nível administrativo para ajudar o mirandês. “Miranda já perdeu 300 mil euros porque politicamente nada foi feito neste sentido”, explicou, lembrando que houve uma dotação de 100 mil euros para o mirandês no Orçamento de 2023 e que houve uma duplicação desse valor em 2024. “Foi dinheiro orçamentado que não foi executado”, referiu ao DN.
A segunda prioridade é a ratificação da Carta Europeia das Línguas Minoritárias, que já vem de 1992 e foi aprovada pelo Governo português em 2021 - mas nunca chegou à Assembleia da República. Esta carta tem como objetivo “proteger e promover as línguas regionais ou minoritárias enquanto elemento ameaçado do Património Cultural da Europa”.
A terceira e última prioridade, segundo Meirinhos, é a criação de um quadro de professores do mirandês. Desde o ano letivo de 1986/1987 que esta língua é uma disciplina de opção nas escolas da região de Miranda do Douro, sendo que 85% dos alunos estão inscritos. Ainda assim, há muito a fazer, a nível de manuais escolares. Segundo um estudo da Universidade de Vigo, estima-se que haja apenas cerca de cinco mil falantes na Terra de Miranda.
“Há aulas nas escolas, mas isso não é o suficiente para se manter uma língua”, explicou ao DN Paulo Meirinhos (sem parentesco com Alcides), do grupo Galandum Galundaina, que com a sua música espalham o mirandês pelo mundo. “O que falta é gente. Os netos não falam com os avós em mirandês, porque não vivem com os avós. A gente vai embora daqui. Os netos estão nas cidades e uma língua só se mantém se houver uma oralidade diária”, insistiu, queixando-se do “despovoamento galopante” e defendendo uma “discriminação positiva” com políticas para fixar as pessoas.
Mas afinal, de onde vem o mirandês? É uma língua que nunca foi o português, derivada do asturo-leonês e falada na Região de Miranda do Douro ainda antes da fundação do país. Até à sua identificação e estudo por José Leite de Vasconcelos, no final do século XIX, era uma língua não-escrita, conseguindo passar de geração em geração apenas pela oralidade durante mais de nove séculos. Mesmo quando a igreja a proibiu na cidade, após a constituição do Bispado de Miranda em 1545 - os padres diziam que não se podia rezar a Deus em mirandês, porque era a língua do Diabo. No Estado Novo, as crianças eram castigadas na escola se falassem o mirandês.
Desde o seu reconhecimento, há 26 anos, a situação mudou e tem-se apostado nesta língua que “marca a identidade de um território”, segundo Helena Barril. Neste Dia da Língua Mirandesa há muitas iniciativas previstas, desde a apresentação do site em mirandês na RTP-Ensina até à divulgação do audiolivro Mensaige, de Fernando Pessoa, na plataforma digital da Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Haverá ainda apresentação de livros e a assinatura de um acordo de cooperação com o Instituto Politécnico de Bragança e a Associaçon de la Lhéngua i Cultura Mirandesa.
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