“Há um risco considerável no mercado desregulado de soluções ‘milagrosas’ para dormir”
O sono é há muito modelo de inspiração na literatura. Sobre o ato de dormir, escreveu William Shakespeare em Macbeth onde o sono é tanto alívio quanto culpa. Edgar Allan Poe no seu poema O Corvo, relaciona o sono ao luto e à angústia. Na literatura grega, Homero reveste o sono de carácter divino. Na voz popular, é uso dizer-se que “o sono é inimigo da morte”. O sono antes de ser dimensão cultural é condição biológica, fator de sobrevivência. Precisamos de dormir, mas andamos a dormir pouco e sem qualidade.
A questão do sono, ou o reverso da moeda, a insónia, detém a atenção de André Ponte, açoriano, nascido na ilha Terceira, psiquiatra e sonologista, a exercer no Hospital Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, e de Henrique Prata Ribeiro, de Coimbra, psiquiatra no Hospital Beatriz Ângelo. A quatro mãos, os dois especialistas no estudo do sono, escreveram o livro Dormir é Fácil (edição Lua de Papel), obra prefaciada pelo psiquiatra Daniel Sampaio.
Os trajetos dos dois autores cruzaram-se após o curso de Medicina, ao tirarem a especialidade de Psiquiatria no antigo hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Sobre o livro que agora entregam aos escaparetes, escreveram-no “conscientes de que existia uma lacuna em Portugal quanto à informação acerca da insónia e do seu tratamento”. Em síntese, a proposta do responsável pela consulta de Insónia na CUF Açores (André Ponte) e do assistente convidado na Católica Medical School (Henrique Prata Ribeiro) é a de “curar a insónia sem ter de ir à farmácia”. “A primeira linha de tratamento da insónia, consensualmente aceite por todas as guidelines, sociedades do sono ou especialistas, não é farmacológica e baseia-se em princípio da Terapia Cognitivo-Comportamental dirigida à insónia (TCC-i)”. O objetivo dos dois especialistas em sono é “fazer com que as pessoas possam tratar a insónia na sua própria casa, sem que tenham de recorrer a fármacos numa primeira abordagem”, sublinha a abrir o seu livro. Por insónia entende-se a “dificuldade persistente em iniciar, manter ou terminar o sono, associada a uma insatisfação relativamente à qualidade ou quantidade do mesmo”.
“A verdade é que, para quem dorme bem, dormir é fácil. O sono acontece de forma automática, sem esforço consciente. No entanto, quando o sono se torna difícil, as pessoas começam a preocupar-se cada vez mais com a falta deste, a monitorizar cada detalhe da noite e isso gera um círculo de frustração. A tentativa constante de controlar o sono acaba por transformá-lo numa tarefa, quando deveria ser um processo espontâneo e involuntário”, sublinham os dois autores numa entrevista previamente acordada que decorreria por escrito.
Uma doença de 24 horas
No livro que assinam, André Ponte e Henrique Ribeiro afirmam que “a insónia é a doença de 24 horas”. Os efeitos da privação do sono “não se limitam apenas à noite. As consequências da insónia estendem-se ao dia seguinte, com impacto na capacidade de concentração, humor, níveis de energia e nas relações interpessoais e profissionais. Não é apenas o número de horas de sono que importa, mas como a pessoa se sente durante o dia. Se uma pessoa dorme pouco, mas está impecável no dia seguinte, então podemos dizer com toda a segurança que essa pessoa não tem insónia; provavelmente é o que chamamos de short sleeper, alguém que biologicamente necessita de menos horas de sono. Mas quando há insónia, o cansaço, a irritabilidade e o prejuízo cognitivo são inevitáveis, afetando a qualidade de vida de forma profunda. A falta de sono adequado associada à insónia aumenta o risco de doenças não psiquiátricas, como hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares, mas também de perturbações mentais, como a depressão e a ansiedade”.
“Por si só, a insónia não mata”, assevera a dupla de psiquiatras, para basear a informação num “estudo publicado em 2019 no Sleep Medicine Reviews que analisou dados de quase 37 milhões de pessoas ao longo de 11 anos. O estudo não encontrou qualquer associação direta entre insónia e mortalidade precoce”. Esta é provavelmente uma boa notícia para quem batalha diariamente com a insónia. “Por outro lado, quando falamos de duração de sono e mortalidade, já parece existir uma relação com um ‘padrão em U’: tanto dormir muito pouco quanto dormir em excesso estão associados a maior risco de mortalidade. Curiosamente, quem dorme mais (mais que oito horas), em geral, tem um risco maior do que quem dorme menos (menos de sete horas). No entanto, é importante destacar que a insónia não é sinónimo de poucas horas de sono. Na insónia, o mais frequente é existir uma perceção incorreta da duração do sono, ainda que o número de horas de sono efetivo seja, na maior parte das vezes, relativamente normal”, detalham os médicos.
André Ponte e Henrique Ribeiro também querem “desconstruir alguns preconceitos sobre o sono” e destacam um, “a crença de que todos precisamos de dormir oito horas é uma das mais difundidas e, sem dúvida, uma das que temos mais dificuldade em desconstruir em consulta. Muitas pessoas acreditam que existe um número mágico de horas – as famosas oito horas – que garante um sono reparador. Não é verdade. O número ideal de horas de sono varia bastante de pessoa para pessoa, sendo influenciado por fatores como a genética, a idade, o estilo de vida e o estado de saúde”.
Insónia também é produto do estilo de vida atual
Dizem-nos os números que Portugal ocupa as posições cimeiras entre os países onde a população toma mais fármacos para dormir (em 2022, despendemos 87,4 milhões de euros nesse âmbito, de acordo com os dados avançados pela consultora IQVIA). “Curiosamente, apesar da venda de medicamentos sujeitos a receita médica se ter mantido relativamente estável, a comercialização de medicamentos de venda livre aumentou cerca de 95%. Isto mostra que os portugueses estão à procura de alternativas aos tratamentos habituais. Neste sentido, acreditamos que este livro possa ser um veículo para combater opções farmacológicas desnecessárias, através da TCC-i”.
O psiquiatra Daniel Sampaio leva para a introdução que faz ao livro um dado preocupante. Em 2022, 14,2% dos adolescentes portugueses tomavam comprimidos para dormir. Um número que cresceu face a períodos anteriores. “Parte da explicação está nos estilos de vida atuais, com aumento da exposição a ecrãs, horários desregulados e pressões sociais e escolares. No entanto, não podemos ignorar o impacto profundo da pandemia nesta geração. Num estudo que realizámos durante o confinamento da covid-19, observámos que os jovens foram um dos grupos mais afetados, com um aumento significativo dos sintomas de insónia nesse período. O isolamento social, a alteração das rotinas diárias e a incerteza em relação ao futuro são fatores que ajudam a explicar estes resultados. Sabemos que a persistência da insónia é elevada, com taxas entre 56% e 74% ao longo de um ano. Podemos estar a testemunhar as consequências a longo prazo de um período que deveria ter sido de afirmação social para muitos destes jovens, mas que acabou por ser marcado pela ansiedade e pelo isolamento”, adiantam os autores de Dormir é Fácil.
Hoje, vivemos com dietas milagrosas e, também, com receitas milagrosas para dormir. Em ambos os casos há uma grande procura de soluções. Esta procura pode levar-nos a duas considerações: as pessoas estão a procurar alternativas aos fármacos. “As pessoas estão, de facto, a procurar alternativas, o que, até certo ponto, pode ser positivo. No entanto, há um risco considerável no mercado desregulado de ‘soluções milagrosas’ para dormir. Desde suplementos com melatonina de qualidade duvidosa a gadgets para ‘melhorar o sono’. Num estudo realizado nos Estados Unidos e no Canadá, verificou-se que a quantidade real de melatonina nos suplementos de venda livre variava entre menos 83% e mais 478% do que o anunciado, o que, como podem calcular, tem consequências não só ao nível da eficácia, mas também dos efeitos secundários”, enfatizam os psiquiatras e acrescentam: “Outro conceito relevante é o da ortossonia, ou seja, a obsessão pelo sono ‘perfeito’. Muitas pessoas acabam por ficar tão focadas em atingir o sono ‘ideal’ que, paradoxalmente, essa busca pode gerar insónia. O que pedimos às pessoas é que se tentem manter informadas e que procurem fontes seguras e baseadas em evidência científica”.
Recuperar o sono através da Terapia Cognitivo-Comportamental
“O principal caminho que propomos para a recuperação do sono é através da TCC-i. Esta abordagem foca-se na modificação de comportamentos e pensamentos que perpetuam a insónia. Inclui técnicas para melhorar a higiene do sono, ajustar rotinas e corrigir padrões de pensamento negativos associados ao sono. A TCC-i é amplamente reconhecida como a primeira linha de tratamento para a insónia crónica e, em muitos casos, é mais eficaz do que a medicação”, detalham André Ponte e Henrique Ribeiro. “Infelizmente, o acesso à psicoterapia especializada em Portugal, incluindo a TCC-i, ainda é bastante limitado. O seu acesso é restrito, sobretudo no sistema público. Muitas pessoas desconhecem esta opção ou simplesmente não têm como obter este tratamento, o que leva a uma dependência excessiva de fármacos. A falta de profissionais formados e de disponibilidade nas unidades de saúde pública torna este tratamento mais difícil de alcançar”.
O livro que os dois psiquiatras assinam apresenta um plano de quatro semanas para a recuperação do sono. “Antes de iniciar o plano de tratamento, dedicamos uma secção a despistar outras patologias do sono, como por exemplo a apneia do sono ou a síndrome das pernas inquietas, que podem imitar sintomas de insónia. É essencial identificar essas condições, pois um diagnóstico errado pode diminuir a eficácia do tratamento da insónia. O plano de tratamento começa pela higiene do sono, onde promovemos ajustes no estilo de vida e no ambiente do quarto. Em seguida, avançamos para a modificação de comportamentos que perpetuam a insónia e introduzimos técnicas de relaxamento que ajudam a reduzir o estado de ativação e a ansiedade, fatores que frequentemente interferem no sono. Por fim, incorporamos técnicas cognitivas para modificar pensamentos disfuncionais relacionados com o sono, garantindo uma resposta mais eficaz e duradoura à TCC-i. O objetivo final é proporcionar ao leitor uma melhoria sustentável da sua qualidade de sono e de vida. Afinal de contas, dormir é fácil, mas pode dar trabalho”, concluem.