Há que "capitalizar" o potencial das mulheres. E há áreas de oportunidade
DN assinalou o Dia Internacional da Mulher com uma tertúlia sobre os desafios que se levantam em tempo de guerra e de crise, em particular às mulheres. Educação e formação são armas-chave para ativar o elevador social, mas a par disso é preciso apostar em setores cruciais onde elas são uma minoria, como é o caso das engenharias e das tecnologias.
Os números mostram uma realidade em mudança, mas em lenta mudança. Em Portugal as mulheres continuam a ter um maior risco de pobreza, resultado dos salários mais baixos, de serem muitas vezes cuidadoras da família mais próxima, as principais responsáveis pelos encargos com os filhos nas famílias monoparentais. Uma situação que coloca as mulheres na linha da frente perante um contexto de incerteza, exponenciado pela guerra na Ucrânia, e de aumento do custo de vida, como o que se vive atualmente. Mas estas condições não são uma fatalidade - há caminhos para as contornar. E este deve ser um desafio que deve mobilizar toda a sociedade portuguesa.
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No Dia Internacional da Mulher, o DN promoveu ontem uma tertúlia dedicada aos desafios económicos, sociais e políticos para 2023, vistos pela perspetiva de cinco mulheres e um homem, e tendo como pano de fundo a situação específica das mulheres. Olhando também para trás, para o muito que o país evoluiu nas últimas décadas, mas também para o que está por fazer perante desigualdades que continuam a ser flagrantes na sociedade portuguesa. Um debate moderado pela diretora do DN, Rosália Amorim, que teve também no palco Célia Reis (responsável pelos centros de engenharia da Capgemini Engineering e vice-presidente da unidade de engenharia que resultou da integração da Altran na Capgemini), Gonçalo Saraiva Matias (Presidente do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da Fundação Francisco Manuel dos Santos), Inês Oom de Sousa (Presidente da Fundação Santander Portugal), Luísa Pestana (Administradora da Vodafone Portugal), Maria Celeste Hagatong (Presidente do Banco Português de Fomento) e Viktoria Kaufmann-Rieger (Administradora da SIVA-Porsche Holding).
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Foi pelo diagnóstico da atual situação das mulheres portuguesa - não especialmente animador - que começou a tertúlia que teve lugar no Edifício dos Leões, sede da Fundação Santander, em Lisboa. Gonçalo Saraiva Matias, presidente do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da Fundação Francisco Manuel dos Santos retratou, a traços largos, as conclusões do inquérito que a fundação levou a cabo sobre as mulheres no Portugal de hoje, e que mostraram uma percentagem grande de mulheres que diz estar cansada, sobrecarregada pelos deveres profissionais e domésticos, em situação de burnout.
Da mesma forma, os dados disponíveis provam amplamente que "as mulheres têm maior risco de pobreza", o que as torna mais vulneráveis a contextos sociais e económicos de incerteza como o que se vive atualmente. "O risco de pobreza e a vulnerabilidade são ainda um problema sério no nosso país", sublinhou Gonçalo Saraiva Matias. Mas há também aspetos positivos a destacar: a escolaridade ("as mulheres são mais escolarizadas, abandonam menos a escola"), uma maior representatividade feminina em cargos de decisão ("a evolução é notável") ou o "aumento grande do número de mulheres empregadoras". Os "aspetos em que a sociedade investiu mais pagaram dividendos", concluiu o responsável da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
"Tecnologia é área de oportunidade para as mulheres"
E este é um investimento que é preciso continuar a fazer, com várias intervenientes (e mais tarde também nas intervenções da plateia) a sublinhar o papel da educação e da formação como forma de empoderar as mulheres e quebrar o ciclo que as expõe, sobretudo a elas, à pobreza. Mas este é um objetivo que deve ser perseguido com foco. "Temos que mobilizar os recursos para onde eles fazem a diferença", diria a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, no discurso de encerramento da tertúlia.
A mesma questão já tinha passado pelo painel de comentadoras. "Há que procurar capitalizar o potencial das mulheres" em áreas específicas, defendeu Célia Reis, responsável pelos centros de engenharia da Capgemini Engineering e vice-presidente da unidade de engenharia que resultou da integração da Altran na Capgemini. "Temos falta de capital humano nas tecnologias. É uma área de oportunidade para as mulheres, uma via rápida" de progressão profissional. "Nenhum principiante no nosso setor ganha menos de 1200/1300 euros", sublinhou Célia Reis, acrescentando que estes valores "duram seis meses" - o mercado encarrega-se rapidamente de os aumentar. E esta não é a única razão pela qual este é "um setor privilegiado para as mulheres": "Não temos um compromisso horário, temos o compromisso de entregar" trabalho.
Viktoria Kaufmann-Rieger (Administradora da SIVA-Porsche Holding) destacou também as potencialidades do setor automóvel, outra área tradicionalmente vista como masculina: "O setor automóvel não é só construir carros. É um setor em transformação e é uma boa época para as mulheres virem."
"É pela Educação que conseguimos reduzir as desigualdades e a pobreza. É um eixo estratégico, uma forma de promover o elevador social", sublinhou também Inês Oom de Sousa, presidente da Fundação Santander Portugal, destacando que esta é uma das principais áreas de aposta da fundação que dirige. Também a Educação, a Saúde ou o Ambiente foram as áreas de atuação destacadas por Luísa Pestana, administradora da Vodafone Portugal, enquanto áreas chave das preocupações sociais da empresa, com o objetivo de capacitar pessoas e instituições nestas áreas.
"Temos cá uma senhora e não queremos mais nenhuma"
No painel de cinco mulheres não faltaram os exemplos do quanto o país evoluiu quanto à representatividade de género e à situação das mulheres no mercado de trabalho e, em particular, em contextos de liderança. Maria Celeste Hagatong, presidente do Banco Português de Fomento, deu o exemplo da sua primeira tentativa de entrada no mercado profissional, em 1974, à data na Direção Geral dos Impostos: "Estava lá um senhor no gabinete que se virou e disse: temos cá uma senhora e não queremos mais nenhuma."
Passados praticamente cinco décadas em que passou pela liderança do BPI e da COSEC, Maria Celeste Hagatong diz que recebeu "com surpresa" e como "um desafio" o convite para liderar o Banco de Fomento, instituição que quer pôr a "funcionar até ao final do ano". Já quanto ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e porque o bem estar também passa pelo desenvolvimento económico, deixou uma nota de "otimismo na execução" - "os fundos afetos ao Banco de Fomento ou tiveram concursos abertos pela anterior administração ou pela atual" - deixando a nota de que esta entidade vai "começar nos próximos dias um road show pelo país para dar conhecimento" às empresas dos produtos disponíveis.
Não basta o Estado, toda a sociedade tem de agir
Como mudar um panorama onde as mulheres ainda estão, muitas vezes, em situação de desigualdade? Quem são - e quem devem ser - os principais atores dessa mudança? Gonçalo Saraiva Matias voltou a citar os dados apurados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos - há 4,4 milhões de pessoas em situação de pobreza em Portugal, um número que reduz para 1,8 milhões face às transferências de apoios sociais - para defender que "é muito importante perceber que a missão do Estado social não pode desaparecer ". Mas esta não deve ser uma responsabilidade exclusiva do Estado: "A sociedade como um todo tem de acorrer a esta situação, para que estas diferenças sejam ultrapassadas de vez. Isto não vai ser corrigido apenas com os mecanismos do Estado, com quotas, com medidas legislativas. É muito importante que todos tenhamos consciência da nossa responsabilidade individual."
Já Celeste Hagatong deixou dois conselhos às mulheres, elas próprias necessárias protagonistas de uma mudança de paradigma: "Tenham ambição e tenham toda a coragem do mundo para acreditar em vocês." E um outro, para que o futuro não perpetue os problemas que ainda se fazem sentir no presente: "Eduquem os vosso filhos para a igualdade. Muitas vezes as desigualdades começam na educação, quando as crianças são pequenas, temos de as educar de forma a que a igualdade seja respeitada em casa."
"Forçar pressão no sistema"
Célia Reis preferiu destacar a obrigação das empresas de "forçar e introduzir pressão no sistema". Leia-se que não basta garantir uma maior presença de mulheres nos cargos de topo das empresas, é preciso que esse reforço aconteça nos cargos intermédios, para que as mulheres possam fazer por si o caminho, em condições de igualdade. "A equidade e a igualdade são duas coisas diferentes. Ao permitir que todos tenham igualdade de acesso estamos a permitir que as mulheres possam ter equidade para que então possa haver igualdade" - não discriminação positiva, mas igualdade de facto. Para isso é também preciso um outro ingrediente, sobretudo para quem quer aceder a lugares de topo, e ao que se ouviu durante a tertúlia, bastante mais saliente nas novas gerações: "ambição". "É uma coisa que em Portugal às vezes falta", disse Celeste Hagatong, mas "demos passos de gigante, sobretudo nos últimos dez anos, é preciso acreditar que é possível chegar lá". Ou, nas palavras de Rosália Amorim, "chegar-se à frente, levantar a mão". "As mulheres ponderam sempre se são capazes, se é o momento certo, não têm a certeza se conseguem responder ao desafio", alertou também Luísa Pestana, administradora da Vodafone Portugal.
Da plateia chegou outro apelo, pela voz da embaixadora de Espanha, Marta Betanzos, após 36 anos na diplomacia, a cruzar países, continentes e culturas, e nos quais diz ter identificado um traço comum. "As mulheres trabalham muito, têm grande disponibilidade, são multifunções". Mas muitas vezes "têm que fazer uma escolha" e ela não é feita "em função do que é melhor para mim, mas para o contexto, para a família, para os filhos, para as pessoas que dependem delas". Habitualmente o que fica pelo caminho é "a formação e é aqui que tem que se atuar: "Tem que haver um esforço institucional para que a formação [das mulheres] não seja sacrificada."
"Sociedade mais igualitárias são mais desenvolvidas economicamente"
Antes, na abertura da tertúlia, Marco Galinha, CEO do Global Media Group, já tinha referido que "os motivos para homenagear [as mulheres] nunca se esgotam". Assinalando ser "um privilégio" estar presente, o responsável considerou que "os direitos das mulheres são direitos humanos". "Apesar da maior representatividade", disse, "ainda há muito a fazer ". Assim, para Marco Galinha, é necessário "assegurar que as próximas gerações nasçam numa sociedade plenamente igual".
Já Isabel Guerreiro, membro da Comissão Executiva do Santander, assinalou o 8 de março como sendo "o dia para celebrar todas as conquistas" das mulheres "e o muito que ainda há para fazer". Exemplo disso são os salários, assinalou. "As mulheres ainda recebem, em média, menos 13% do que os homens. Isso não é aceitável", por isso, explicou, "o Santander tem a meta de, até 2025, anular essa diferença". Referindo também que "só proporcionando o acesso à educação de qualidade" se poderá "ter o potencial máximo", Isabel Guerreiro considerou ainda que "a igualdade de oportunidades é da mais elementar justiça", cabendo às mulheres assegurar que é alcançada. "Está provado que sociedades mais igualitárias são, também elas, mais desenvolvidas economicamente", concluiu.
susete.francisco@dn.pt
rui.godinho@dn.pt
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