Há menos centros de diagnóstico a trabalhar para o SNS e utentes esperam meses por exames

Há menos centros de diagnóstico a trabalhar para o SNS e utentes esperam meses por exames

No último ano, 41 unidades convencionadas deixaram de fazer ecografias e mamografias para o SNS, segundo a ERS. Associações do setor alegam que os preços pagos pelo Estado não são atualizados desde 2011. A situação foi reportada à anterior tutela, mas ficou sem resposta. Lisboa e Algarve são das regiões mais afetadas.
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Começa a ser cada vez mais difícil um utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS), sobretudo da Região da Grande Lisboa e do Algarve, conseguir marcar um exame de diagnóstico, como ecografias, de qualquer tipo, mamografias ou até colonoscopias, sem ter de esperar entre um mês e meio a três meses e até mais, no caso do último exame (a lista de espera pode ir até aos oito meses).

Ana, de 60 anos, e Sofia, de 49, contaram os seus casos ao DN. Desde o início do ano que tentavam marcar os exames de rotina nos mesmos centros dos anos anteriores, só que não o conseguiram. Tiveram de procurar outras alternativas e, mesmo assim, não se livraram de  mais de um mês e meio de espera.

Ana começou por ligar para o centro onde faz há mais de uma década mamografias e ecografias, mas, desta vez, recebeu como resposta: “Ligue no início do mês, quando abrimos a agenda para o mês seguinte.” Estranhou e perguntou porquê? “Há muitos utentes à espera para esses exames. E a marcação só será feita para o mês seguinte ou mais”, avisaram-na logo.

Achou melhor não esperar pelo mês seguinte e continuar a procurar marcação noutros centros de diagnóstico de Lisboa, mas a resposta tornou-se quase sempre a mesma nas unidades convencionadas com o SNS. Foi então que decidiu esperar pelo o início do mês seguinte, fevereiro, e ligar para o centro de sempre para fazer os exames com a mesma médica. No dia 2 de fevereiro, liga então e a resposta nesse dia já não foi a mesma que no mês anterior. “As vagas para os utentes do SNS acabaram ontem.” “E agora?”, pergunta. “Volte a ligar no próximo mês”, disseram-lhe.


Decidiu que iria voltar a ligar para outras unidades, mas ao primeiro contacto disseram-lhe: “Já não trabalhamos com o SNS.” No contacto seguinte obteve marcação, mas só para o final de março. Dias depois percebeu que não estaria no país e ligou para ver se poderia alterar a data, e podia. Mas só para o final de maio. Até que perguntou: “E se for pelo meu seguro?” “Tenho vaga para daqui a 15 dias”. Ana preferiu esperar para o final de maio até porque a credencial que tinha era do seu médico de família do SNS.


Sofia teve o mesmo problema: “E nunca me tinha acontecido”, desabafa . “Estava acostumada a fazer todos os anos os mesmos exames num centro junto à minha casa, mas este ano liguei e não tinham vagas para o SNS. Comecei a ligar para outros que ficavam também nas redondezas e estranhei, porque estava a obter a mesma resposta. Até que liguei para um dos maiores centros de diagnóstico de Lisboa e me disseram que já não trabalhavam com o SNS. Isto não é normal.”


Sofia conseguiu marcar os exames de rotina para o final de maio, mas teve de  “estar a ligar quase um dia inteiro para vários sítios”, justifica. Mesmo assim, teve de alterar a consulta já marcada para a médica para mostrar os resultados, pois não imaginava que “levasse tanto tempo”. “Os meus exames são de rotina, posso fazer em maio, mas imagine alguém que tenha de fazer estes exames com urgência. Vai esperar um mês e meio ou mais?”, questiona.

Associações do setor admitem constrangimentos


A Associação Nacional das Unidades de Diagnóstico da Imagem (Anaudi) admite ao DN que “possa haver mais dificuldade na realização de alguns exames”, devido às circunstâncias em que o SNS está a trabalhar com os convencionados, nomeadamente no que toca “aos preços que pratica e que não são atualizados há vários anos”.


A Associação Portuguesa da Hospitalização Privada (APHP), que representa alguns centros de diagnóstico, assume haver mais dificuldade na marcação e realização de certos exames, sobretudo “nas regiões de Lisboa, por ser a maior do país e ter mais procura, e na do Algarve, porque é a que tem menos oferta em centros de diagnóstico”, explicaram ao DN.


Ambas as associações garantem que tais constrangimentos foram sempre relatados, nomeadamente à anterior tutela, para que a situação pudesse ser resolvida, mas “nunca houve resposta”, disseram-nos.


O DN questionou o gabinete da nova tutela sobre se tinham conhecimento da situação e se iria ser feito algo para a resolver, mas fomos reencaminhados para a Direção Executiva (DE) do SNS, a quem foram colocadas as mesmas questões, só que a resposta que chegou não responde ao que foi perguntado. Ou seja, se a DE tem conhecimento dos constrangimentos a certos exames para os utentes do SNS e se está a ser feito algo para se resolver a situação. 


Por escrito, a DE-SNS refere que “as tabelas de preços para as entidades convencionadas, no âmbito das suas competências legais, são elaboradas pela ACSS e submetidas ao membro do Governo com a tutela da Saúde, para a sua competente autorização”. Resumidamente, se há constrangimentos não são da sua responsabilidade. O DN tentou ainda ontem obter uma resposta às mesmas questões junto da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), mas sem sucesso.

No entanto, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) confirma haver unidades convencionadas que deixaram de fazer certos exames para o SNS, dando números: de 2023 para 2024, 41 unidades deixaram as convenções com o SNS. Na resposta enviada ao DN, a ERS refere que, “em 2023, existiam 230 prestadores convencionados a realizar mamografias, mas, em 2024, o número passou para 216 prestadores, menos 14”.

No que respeita às ecografias, e não fazendo distinção ao tipo de ecografia, a ERS indica que, em 2023, “existia um total de 325 prestadores a realizar este tipo de meio de diagnóstico complementar”, mas que, em 2024, este número desceu para 298 - ou seja, menos 27, perfazendo um total de 41 unidades.


A ERS explica ainda que “tem dedicado particular atenção ao setor convencionado com o SNS vindo a monitorizar a sua atividade, estando prevista nova publicação relativa ao setor convencionado na área da radiologia em maio de 2024”.


O DN procurou saber ainda se a ERS teria aplicado alguma deliberação por este tipo de constrangimento a unidades convencionadas, mas no seu site  não há qualquer indicação. Até porque, no que toca às reclamações que chegam à ERS sobre os setores privado e social, os dados divulgados na sua página indicam que estas respeitam sobretudo a “questões financeiras”.


Associações dizem que preços são os mesmos desde 2011


A Anaudi e a APHP garantem que nos últimos anos têm vindo a dar conta da situação às sucessivas tutelas e de como esta pode vir a agravar-se. “Alertámos sucessivamente a tutela anterior para este tema. Fizemo-lo durante o ano de 2022, em 2023 também e já em 2024.

Aliás, ao longo de 2022 e 2023 solicitámos várias vezes reuniões com o anterior ministro ou com o seu secretário de Estado, para discutir o grande desfasamento de preços, mas a anterior tutela optou por não querer dialogar sobre esta matéria e, de forma objetiva, e em última análise, quem sofre as consequências são os utentes”, afirma ao DN, António Neves, secretário-geral da Anaudi, assumindo mesmo: “Embora não tenhamos indicação de dificuldades de forma generalizada, admitimos que nalguns tipos de exames possa haver constrangimentos”. 


“Vou dar-lhe um exemplo, as ecografias obstétricas. O SNS paga às unidades privadas convencionadas 14,50 euros pela realização deste exame, mas aos hospitais públicos, que também as realizam, paga 94 euros. Ora, há uma grande disparidade de preço, sendo que é um tipo de exame de grande responsabilidade e exigência técnica, e as regras são as mesmas para uma unidade privada ou pública. Por isso, admito que alguns centros não estejam dispostos a executar certos exames para o SNS”, explica.

Segundo relatou ao DN, “a tabela que fixa os valores que o Estado paga aos convencionados não é atualizada, grosso modo, desde 2011. Já passaram mais de dez anos e, com os respetivos aumentos nos meios de produção e de salários, portanto para algumas unidades pode não ser minimamente rentável assegurar estes exames”. 


A situação pode tornar-se mais grave se não for resolvida pela atual tutela, mas a Anaudi espera ser um dos parceiros que a nova ministra irá chamar para ouvir e assim poder discutir o tema.


O DN sabe que o Sistema de Saúde do Estado, a ADSE, já atualizou os preços para estes exames e as seguradoras também, o que faz com que quem tem prescrição de exames passada por estas entidades possa passar à frente na marcação, havendo menos vagas para os utentes do SNS . “Alguns dos preços praticados estão muito abaixo do valor que o próprio exame custa”, explica fonte ligada a um centro de diagnóstico.


António Neves lembra, por sua vez, que as “unidades de diagnóstico convencionadas têm uma característica própria, estão muito próximas dos utentes permitindo-lhes de forma fácil o acesso aos cuidados e aos exames que necessitam. Portanto, a manutenção desta rede do setor convencionado tem uma grande mais-valia. E todas as situações que de alguma forma limitem ou dificultem estas unidades em dar resposta aos utentes do SNS, deveriam ser resolvidas, porque se não forem, naturalmente, traduzem-se em consequências para estes”, diz o dirigente, sublinhando mesmo: “Os utentes que mais necessitam dos cuidados convencionados são os mais prejudicados, porque o utente que tem um seguro de saúde pode recorrer a outro tipo de unidade. O que não tem precisa dos exames no momento, não é daí a dois ou três meses.”


Centros não sabem se ULS vão pagar no fim de abril


Para as associações representativas do setor, a falta de atualização dos preços “é uma questão de bom senso”. Aliás, António Neves argumenta não se perceber a posição do “anterior Governo, que foi sensível ao tema da inflação para muitos setores e à subida do ordenado mínimo atualizando os preços praticados, por exemplo, para os cuidados continuados, serviços de segurança, refeitórios públicos, etc. Mas não atualizou nos cuidados convencionados, o que não faz sentido, porque também sentimos a subida da inflação e dos meios de produção”.


Neste momento, há outra situação que está a preocupar o setor convencionado e que também pode prejudicar as unidades e os utentes do SNS. “Há muita falta de informação nas Unidades Locais de Saúde (ULS) sobre a forma de como pagar às unidades convencionadas. Antes, os pagamentos eram feitos mensalmente pelas Administrações Regionais de Saúde depois do exame realizado, mas com a nova orgânica o anterior Governo não deixou assegurado o processo de pagamento. Recebemos respostas muito díspares das ULS e receamos que os pagamentos não sejam feitos a tempo e horas no final deste mês, criando-se mais uma situação que pode levar à asfixia de algumas unidades e a novos constrangimentos para os utentes do SNS”.


Para a Anaudi é mais uma situação que deveria ser evitada, já que “o SNS recorre aos cuidados convencionados porque não tem capacidade de dar resposta a todas as necessidades dos seus utentes”.

Mas António Neves quer acreditar que será possível uma solução. “Da mesma forma que procurámos sempre o diálogo com o anterior Governo, porque consideramos que o setor convencionado pode ajudar de forma complementar o SNS, vamos tentar dialogar também com a nova tutela. É verdade que esta precisa de um tempo para se adaptar, mas é necessário que o governo perceba que as unidades convencionadas não podem prestar cuidados por valores irrisórios, que não representam a complexidade, nem a segurança que os exames implicam”, afirma ao DN, rematando: “Esperamos que esta tutela esteja mais atenta a esta questão, porque isso significará mais saúde para os utentes.”

130 milhões de atos médicos por ano

A Federação Nacional dos Prestadores de Cuidados de Saúde (FNS), em representação de cerca de 1000 unidades do Setor Convencionado de Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica (MCDT), veio ontem, em comunicado, acusar o Ministério da Saúde, a Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) e a ACSS de não acautelarem, devidamente, a transferência dos procedimentos resultantes do Sistema de Pagamento a Convencionados (SPC) das Administrações Regionais de Saúde (ARS) para as novas Unidades Locais de Saúde (ULS). A federação recorda que os convencionados realizam 130 milhões de atos médicos por ano e podem entrar em “colapso financeiro” com a nova organização das ULS. “Esta indefinição quanto à transferência obrigatória da responsabilidade do SPC das ARS para as ULS está a gerar um enorme alarme em todo o setor”, sublinhando que “muitas unidades temem ter de fechar portas”.

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