Há mais vítimas mulheres e abusadores padres em Portugal do que na Europa

Comissão de estudo dos abusos sexuais na igreja católica portuguesa validou 512 testemunhos de crianças molestadas, mas há pelo menos mais 4303, cujos casos foram denunciados por outros. Só 25 foram para investigação, os outros prescreveram. Recomenda que a idade da vítima para a prescrição dos crimes de abusos sexuais passe de 23 para 30 anos.

Nascida nos anos 60, filha de comerciantes, F. foi vítima de abuso durante a confissão. Tinha 11 anos e o abusador era um padre "velhinho de 80 e tal anos", muito conhecido na comunidade e "muito simpático". "Pedia para eu dizer os meus pecados e, quando eu dizia que fiz asneiras e disse palavrões, tocava-me em todo o lado, maminhas, punha-me as mãos nas cuequinhas e tocava no pipi. [...] Tocava, tocava, foram cinco vezes até que comecei a mentir ao meu pai e deixei de ir... aquele ordinário!»

O testemunho de F. à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica Portuguesa é um dos 512 confirmados (em 564 denúncias). O relatório final, Dar a voz ao silêncio, foi divulgado esta segunda-feira, com a conclusão de que serão pelo menos mais 4303 casos, que foram denunciados por outros. Os abusadores são padres, alguns dos quais no ativo. A esses, Pedro Strecht, o coordenador da comissão, não tem dúvidas: "Obviamente, demitia-os." Recordando a frase de Humberto Delgado dirigida a Salazar se ganhasse as presidenciais de 1958

Dos denunciados, só 25 casos podem ser investigados judicialmente, uma vez que a maior parte prescreveu. A ação da Igreja pode ter mais impacto se agir eticamente, como defende a Comissão, em particular Laborinho Lúcio, um dos seis membros da Comissão. "O dever de denúncia é inequívoco, como ninguém poderá pôr em causa o dever moral, ético e cívico de denunciar um caso de homicídio." A Comissão recomenda que a idade das vítimas para a prescrição dos crimes de abusos sexuais passe de 23 para 30 anos.

O seu trabalho acabou, mas estará a trabalhar administrativamente até ao final do mês para finalizar a lista de pedófilos que vai entregar à Comissão Episcopal Portuguesa, que pediu o estudo. Têm assembleia extraordinária dia 3 de março sobre o relatório.

Na igreja e no seminário

F. é mulher e foi molestada na igreja, onde duas em cada cinco vítimas femininas foram abusadas, 25,5 % das quais no confessionário. As mulheres em Portugal têm maior representatividade nas queixas (42,2%) do que acontece noutros países europeus, nomeadamente França. E há uma percentagem maior de abusadores padres (77%), o que também é uma distinção na Europa.

Em relação à grande prevalência de mulheres, a socióloga Ana Nunes de Almeida, membro da Comissão, tem uma explicação: "Desde a Guerra Colonial, e com a emigração, a mulher em Portugal tem uma participação ativa no tomar da palavra. Temos uma taxa mais elevada de emprego, nomeadamente de mulheres com filhos." Elas também denunciaram os casos mais cedo, 52,2% falaram com alguém antes de terem feito 18 anos. A percentagem de homens que o fizeram é menor (41,2%).

Quanto à grande prevalência de padres, mais de dois terços, pode dever-se ao local de abuso, os seminários, colégios religiosos com internato ou instituições de acolhimento, onde 33,4% das vítimas masculinas foram abusadas. Os outros países europeus têm uma maior distribuição por profissões.

4815 casos denunciados

M., nascido na década 50 em Lisboa, foi abusado num seminário do interior do país. "Só aos 21 anos desabafei, ... atolado em pecado, não contava nada." Descreve: "O padre B. era o prefeito da camarata e engraçou comigo. Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me, perguntava-me se eu já pecara. Vivi sempre sobressaltado. Tinha medo porque era pecador e ia para o inferno. Mandava-me ir buscar rebuçados cada vez que tivesse maus pensamentos! Houve um dia em que consegui 26 rebuçados. Quando ia ao seu quarto buscar, ele apalpava-me todo e metia a língua toda!"

"O padre X. era o que vinha à igreja dar a missa à RTP. Ele começava por dizer letras e eu palavras com asneiras, claro... Até que comecei a pedir para me confessar com outros padres, para não ser sempre o mesmo, só que às tantas todos sabiam dos meus pensamentos e da minha vida. Através de um amigo, chegou aos ouvidos do vice-reitor, que me deu um chapadão e fui expulso por más companhias. No seminário as coisas extrapolaram para outras coisas, relação pedófila. Na Páscoa chegou o postal a dizer que ia ser expulso. Desgosto enorme para os meus pais. Puseram-me a trabalhar, mas não conseguiram. Fui parar a Leiria a um refúgio para infância desvalida."

"Eram 20 rapazes órfãos. Estava lá o frei W. Era bem pior, porque era sádico, porco, muito mau. Não aprendia nada. Tinha modos por ter andado no seminário e acompanhava o frei W. Um dia, fui com ele a casa de um benfeitor e durante a noite disse para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes. Deitava-se e adormecia. Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo. Depois dizia: "Agora tens que te ir confessar." Sentia muita culpa."

A maior parte das denúncias é de quem vive atualmente em Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Leiria - o que tem também a ver com a dimensão destes distritos -, mas no local de abuso surgem em 4.º e 5.º lugares Santarém e Aveiro. As vítimas têm agora uma média de 52,4 anos. A maior parte dos testemunhos devem-se a abusos que ocorreram entre as décadas de 60 e 90, sendo o primeiro perpetrado, em média, aos 10,5 anos, no caso das meninas, e aos 11,7, no caso dos meninos.

Sequelas para a vida

O psicólogo Daniel Sampaio, membro da comissão, destacou os sintomas psicopatológicos ao longo da vida em 60 % dos casos, segundo os vários estudos. Ansiedade, depressão, autorregulação emocional, perturbação do sono e da alimentação, stresse pós-traumático e uma correlação com abuso do álcool, drogas e esquizofrenia. Sublinhou: "Não há abuso sexual sem ocultação. O que é importante é que a ocultação não exista por parte das instituições. Esperamos que este relatório contribua não só para a desocultação na Igreja mas também na sociedade em geral."
A Comissão realizou entrevistas com 19 bispos e 13 superiores hierárquicos na Igreja Católica. "Contrasta o fluxo de intensidade e gravidade das vítimas com o desconhecimento, distanciamento, por parte do topo da hierarquia da igreja", salientou Ana Nunes de Almeida.

Recomendações da Comissão

IGREJA
Propõe uma nova comissão para continuidade do estudo e
acompanhamento do tema (multidisciplinar), com membros internos e externos à
Igreja. Reconhecimento pela Igreja da existência e extensão do problema e compromisso na sua adequada prevenção futura. Cumprimento do conceito de "tolerância zero" proposto pelo Papa Francisco.

Denúncia
Dever moral de denúncia por parte da Igreja e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual. Pedido efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização. Formação e supervisão continuada e externa de membros da Igreja, nomeadamente na área da sexualidade (sua e das crianças e adolescentes).

Prevenção
Cessação de espaços físicos fechados, individuais, enquanto locais de encontro e prática religiosa. Medidas preventivas eficazes, incluindo "manuais de boas práticas" e "locais de apoio ao testemunho e acompanhamento das vítimas e familiares".

Terapia
Apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras (responsabilidade da Igreja), o que deve ser feito em articulação com o Serviço Nacional de Saúde.

SOCIEDADE CIVIL
Necessidade da realização de um estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças nos seus vários espaços de socialização. Reconhecimento inequívoco dos direitos da criança. Empoderamento das crianças e famílias sobre o tema: o papel da escola.

Justiça
Aumento da idade da vítima para os 30 anos para efeitos de prescrição de crimes de abusos sexuais. Atualmente são os 23 anos. Celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça.

Divulgação
Reforço do papel da comunicação social na investigação e tratamento do tema. Aumento da literacia emocional sobre as verdadeiras necessidades do desenvolvimento infanto-juvenil, sobretudo no campo afetivo e sexual.

céuneves@dn.pt

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