Há mais profissionais e mais dinheiro, mas 1,5 milhões não têm médico de família
O seu parto foi difícil e a gestação muito mais longa do que os habituais nove meses, mas, a 15 de setembro de 1979, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) nascia da Lei nº 56/79, pelas mãos de António Arnaut, então vice-presidente da Assembleia da República, e que viria a ser apelidado de "Pai do SNS". Este momento foi, para muitos, o maior salto civilizacional da democracia portuguesa, que contribuiu para colocar Portugal em posição de destaque nos principais indicadores de saúde, na Europa e no mundo. "O SNS é um grande instrumento de coesão social do país", afirma Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde, que salienta que, sendo um direito social e estruturante, ricos e pobres têm a mesma oportunidade de acesso. De uma forma muito simples, o SNS funciona como uma espécie de seguro de saúde universal, de caráter social, abrangente e inclusivo, suportado pela solidariedade de todos os cidadãos através dos seus impostos.
Mas esta é apenas a teoria, que parece hoje muito desfasada da realidade. São diárias as queixas de atrasos no acesso a consultas, listas de espera para cirurgias, falta de profissionais de saúde ou encerramento de Urgências que têm enchido as páginas de jornal nos últimos meses. Queixas que são, contudo, recorrentes se olharmos para as notícias pré-pandemia, há dez anos, ou há 20, na viragem do século. A grande questão é por que é que isto acontece? Essencialmente, diz ao DN Maria de Belém, "porque se foi avançando às fatias e não com uma visão global e estratégica".
Muito crítica do estado atual do SNS, a ex-ministra, entre 1995 e 1999, defende que, não obstante o bom trabalho realizado por vários governantes com a pasta da Saúde, "perdeu-se o norte". E, à semelhança da história de "Alice no País das Maravilhas", "é preciso saber para onde vamos, senão todos os caminhos servem".
Mas o Dia do SNS em 2022 marca também mais uma mudança na Saúde. A troca de pastas no ministério acontece com um clima de crispação no setor, mas também com muita expectativa sobre os desafios que esperam o novo ministro. Não será tarefa fácil para Manuel Pizarro, para quem o maior desafio, na opinião de Maria de Belém Roseira, será recuperar o orgulho em ser do SNS. "Houve mudanças sociológicas nas últimas décadas que não foram valorizadas e que é preciso enquadrar", reforça.
Para a jurista, os profissionais de Saúde são a base do SNS e é preciso saber cuidar e respeitar para reter. Na sua opinião, não é apenas uma questão financeira, mas de conhecer o terreno, ouvir as suas necessidades e reorganizar as carreiras "com sentido de responsabilidade e respeitabilidade", como acredita que conseguiu fazer durante o seu mandato, há mais de 20 anos.
Marta Temido ficará na história nacional como a ministra da Saúde que, em 4 anos de mandato, teve de lidar com uma pandemia que ninguém previa e cuja gestão não vem em nenhum manual. Apesar disso, chegou a ser, até há poucos meses, a ministra deste governo mais apreciada pelos portugueses.
Agora sai pela porta pequena depois de múltiplos casos que espelham o caos e a desorganização dos serviços do SNS. Não era essa a sua vontade quando, em 2018, chegou ao governo, vinda da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), que presidiu, após a saída da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que também liderou. Numa entrevista, nesse ano, revelava que gostaria de fazer reformas que permitissem travar a fuga de médicos do SNS e atrair para o serviço público profissionais dedicados, compensados por modelos remuneratórios justos. Confirmou também a intenção de, tal como prometido por António Costa, dar um médico de família a todos os portugueses. Quatro anos depois, os mesmos problemas, agravados por 2 anos de pandemia que, nos últimos meses, deixou de ser desculpa para tudo.
Feitas as contas, e segundo dados do Portal da Transparência, Marta Temido recebeu a pasta de ministra da Saúde com um total de 127 013 profissionais de saúde ao serviço, 800 mil portugueses sem médico de família, e uma despesa global na ordem dos 9,6 mil milhões de euros. Quatro anos depois, o número de profissionais cresceu 18,5% apesar de todas as falhas em escalas e a falta de efetivos apontadas em vários serviços, o número de portugueses sem médico de família é agora de 1 498 037 (o número mais elevado desde que há registo), e uma despesa de 13,6 mil milhões de euros, ou seja, mais 41,7%.
Fernando Leal da Costa, ministro da Saúde num dos governos mais curtos da democracia portuguesa, foi também secretário de Estado da Saúde e adjunto do ministro Paulo Macedo durante o período da troika. Ao DN revela que os maiores problemas que encontrou naquele ministério em 2011 estavam relacionados, essencialmente, com a dívida e a situação de insolvência do Estado. "Não fosse a ajuda internacional não poderíamos pagar salários quando iniciámos a governação. Era tão grave quanto isto".
O ex-ministro recorda ainda que não havia verbas para pagar cuidados continuados e que o volume de dívida conhecida, dentro do SNS e a fornecedores, era muito inferior à real. "Foi uma tarefa difícil tirar o SNS da falência e mantê-lo como esteio da paz social naqueles anos de troika, mas conseguimos", assume.
Além desta concretização, Leal da Costa destaca a restrição na venda de álcool a maiores de 18 anos, assim como a aprovação de uma Lei de Tabaco mais eficaz na prevenção do tabagismo e o fim das smart shops como grandes contributos. "Lamento, apesar da vitória nas eleições de 2015, não ter podido continuar a obra iniciada a partir de 2013, já com as contas mais estabilizadas".
O ex-ministro considera ainda importante a redução da despesa das famílias e do Estado com medicamentos, assim como a promoção da avaliação de tecnologias da Saúde e de linhas de orientação diagnóstica e terapêutica. "Aumentámos o número de isentos de pagamento de taxas moderadoras, e até conseguimos aumentar os salários dos médicos", reforça.
Se tivesse continuado, garante, a prioridade teria sido a recuperação de estruturas e equipamentos, construir o que faltava ser edificado, remunerar melhor todos os profissionais de Saúde e lançar uma reforma em busca da obtenção de cuidados com maior valor e qualidade. "Esse será o caminho principal para alargar o acesso e para eliminar listas de espera", defende.
Adalberto Campos Fernandes, o sucessor de Leal da Costa na pasta da Saúde, em 2015, acabou por dar continuidade a algumas das políticas do governo anterior, como assumiu numa declaração ao DN há uns meses. "É importante a sensação de dever cumprido nas funções políticas, honrando aquilo que vem de trás, de outros governos e de outros tempos políticos, sejam do nosso partido ou de outros partidos diferentes", disse na altura.
Uma postura também defendida por Maria de Belém que se orgulha de ter trabalhado com uma equipa "muito competente, e de vários partidos". Na opinião da ex-ministra, o governo tem de ter diferentes visões e um espaço de consenso porque, reforça, "o SNS é de todos e não apenas de quem governa".