"Há claramente aqui um duplo financiamento partidário"

Presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade diz que os partidos violam a lei para obter uma nova fonte de financiamento. Em causa podem estar, segundo o Ministério Público, crimes de peculato e abuso de ​​​​​​​poderes envolvendo o ex-líder do PSD.
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Em 2018 PS, PSD, BE, PCP e CDS tinham funcionários pagos pelo parlamento que não prestavam serviço ao partido no parlamento. Em setembro desse ano, a Sábado escrevia sobre os "assessores dos partidos que o Parlamento paga" revelando que "são pagos pela Assembleia da República para prestar assessoria aos grupos parlamentares, mas em muitos casos trabalham nas sedes nacionais ou distritais dos partidos e, apesar de as suas nomeações serem publicadas em Diário da República, não é público quanto ganham nem estão sujeitos a regras e deveres que não os que lhes sejam impostos pelos respetivos grupos parlamentares".

Nessa altura, em 2018, a justificação para estas contratações era comum a todos os partidos: "partilha de recursos", "falta de condições físicas no parlamento", "as instalações disponibilizadas na Assembleia da República são insuficientes". E o PSD? Recusou responder.

E agora? A Iniciativa Liberal assegura não ter funcionários do partido que estejam a ser pagos com dinheiros do parlamento: "A IL tem muito respeito pelo dinheiro dos contribuintes"; o Livre deu resposta semelhante: "Não temos"; o PAN diz que "todos os assessores nomeados do PAN e pagos pela AR trabalham somente para o gabinete da AR".

Estas são as respostas do "não". As seguintes são as do nin e do sim. No caso do Chega, o partido garante que "todos os funcionários pagos pela AR trabalham para a atividade parlamentar do partido" sem explicar se são funcionários que trabalham em exclusivo na Assembleia da República.

Já o BE, à semelhança de 2018, explica que "a atividade parlamentar dos deputados do Bloco é apoiada por assessores na Assembleia da República, que acompanham a produção legislativa e o trabalho das comissões parlamentares. É também acompanhada por assistentes parlamentares que, trabalhando à distância, como a lei expressamente prevê, garantem o suporte e a expressão da atividade parlamentar do Bloco em todo o território: identificam problemas, prestam apoio técnico e administrativo, participam na elaboração de perguntas ao governo sobre temas locais e regionais, acompanham e organizam visitas, geram proposta legislativa e promovem o seu debate. Tal é fundamental para o exercício do mandato dos deputados do Bloco, o qual, sendo pautado pela proximidade à realidade das várias regiões, não se limita ao espaço da Assembleia da República".

O PCP entende que "os grupos parlamentares têm, segundo a lei, inscrita no Orçamento da Assembleia da República uma verba, proporcional à sua dimensão, destinada à contratação de apoios de pessoal, nas diversas áreas e valências necessárias ao trabalho parlamentar seja no trabalho específico na Assembleia da República, seja no estudo da realidade regional e setorial e na articulação e ligação com os eleitores nos vários círculos eleitorais, os trabalhadores e as populações".

Ou seja, "sim" porque "as instalações disponibilizadas na Assembleia da República são insuficientes sendo necessário o uso de espaços do Partido para o seu trabalho, que envolve gastos em instalações, equipamentos, nomeadamente informáticos, e de energia que comportam e que são suportados pelo Partido".

Mas há, dizem, uma certeza: "Não são as verbas atribuídas pela Assembleia da República ao Grupo Parlamentar do PCP que apoiam a atividade geral do Partido, são os resultados da atividade geral do Partido que contribuem para a ação do Grupo Parlamentar."

Citaçãocitacao"Pagamentos não são ilícitos. É uma prática na Assembleia e nos partidos todos". Rui Rio

Nem PS nem PSD responderam aos pedidos de esclarecimento do DN.

Nuno Cunha Rolo, presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade, que já em 2020 pediu explicações ao conselho de administração da Assembleia da República, não tem dúvidas que se está perante "uma ilegalidade" e que "há claramente aqui um duplo financiamento partidário".

"É ilegal. Não está escrito na lei [a Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República] que os funcionários dos partidos sejam pagos pelo Parlamento. A lei é muito clara: é para trabalhar no Parlamento, não é para trabalhar nos partidos. Daí que o MP fale em peculato e abuso de poder. Os partidos políticos já recebem a subvenção pública, prevista na lei, de acordo com os resultados eleitorais. Mas parece que agora há uma nova fonte de financiamento que é o Parlamento. Só que o Parlamento é para financiar trabalho parlamentar, não é para financiar partidos, trabalho partidário", afirma.

E que resposta obteve em 2020? "Respondeu-nos o secretário-geral da Assembleia da República quando quem o deveria ter feito era o conselho de administração. E foi uma resposta curta de dois parágrafos citando o artigo 46 e as alíneas 2, 5 e 6 da Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República. No fundo a resposta foi esta: "Nós não temos nada a ver com isso, porque isso é da responsabilidade dos grupos parlamentares. Eles indicam as pessoas e nós pagamos"".

A Transparência e Integridade tinha pedido dados sobre o número total de funcionários de apoio aos grupos parlamentares, aos deputados únicos e não inscritos, quantos deles prestam funções fora do parlamento, por exemplo destacados nas sedes partidárias, e que mecanismos de controlo tem a Assembleia da República sobre o local de trabalho dos funcionários, bem como dados relacionados com estas possíveis circunstâncias laborais.

"Há demasiados anos que o Parlamento convive em silêncio com suspeitas e denúncias de que funcionários que são pagos para apoiar o trabalho da Assembleia acabam desviados pelos partidos para fazerem trabalho estritamente partidário, nas suas sedes, sem qualquer ligação com as funções do Parlamento", sublinha Nuno Cunha Rolo.

O caso que levou às buscas de ontem começou a ser investigado depois da polémica dos "empregos fictícios" - uma carta aberta a Rio partilhada por WhatsApp no PSD.

Rui Rio preparava cortes que iam atingir funcionários do partido no parlamento e na sede, mas havia críticas, citadas pela Sábado, de "empregos fictícios no grupo parlamentar do PSD, presidido pelo mesmo Rui Rio que pretende reformar o sistema político".

Tradução: pessoal nomeado para o grupo parlamentar do PSD, mas que estava na sede nacional do PSD ou até em distritais - como terá sido o caso da distrital do Porto que também foi alvo de buscas.

Ou seja: está em causa a suspeita de que foi através deste "desvio" de funcionários, e à custa do orçamento da Assembleia da República - transferindo custos do partido para o Parlamento, que o PSD conseguiu reduzir parte do seu passivo.

Não havendo "qualquer fiscalização" do conselho de administração, como sustenta o presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade, e como parece ter verificado o MP, seria "possível reduzir custos do partido com os salários" de pelo menos dez "funcionários".

Na operação, a PJ mobilizou cerca de 100 inspetores e peritos para buscas na casa do ex-presidente do PSD e na sede nacional do partido, por suspeitas dos crimes de peculato e abuso de poderes.

Ao ex-líder do PSD, Rui Rio, a Hugo Carneiro, secretário-geral adjunto, e 12 funcionários e antigos assessores foram apreendidos, nomeadamente, telemóveis e discos rígidos de computadores.

"Está em causa a investigação à utilização de fundos de natureza pública, em contexto político-partidário, existindo suspeitas da eventual prática de crimes de peculato e abuso de poderes (crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos), a factos cujo início relevante da atuação se reporta a 2018 [ e até 2021]", informou a PJ.

O ex-líder do PSD entende que o objetivo das buscas domiciliárias de que foi alvo foi o de afetar a sua imagem, afirmando que os pagamentos em causa "não são ilícitos" e acontecem em todos os partidos, que esta forma de pagamento a funcionários do partido via parlamento "é uma prática na Assembleia e nos partidos todos".

"Os pagamentos não são ilícitos, isto são os partidos todos, porque é que [foi] o PSD? Se alguma coisa aconteceu no meu tempo foi uma reforma no sentido de moralizar ao máximo tudo isto, que não é que estivesse mal, mas moralizar, pôr direito", afirmou.

E depois deixou quase uma ameaça: "Eu estou fora da política, não conto voltar à política, estou farto da política, mas às vezes... Eu tinha um amigo que era o dr. Miguel Veiga que dizia: 'Piquem-no, piquem-no, que ele funciona bem é picado'. Eu estou tão sossegado, para que é que me vêm picar?".

Hugo Carneiro, outros dos visados, deputado e ex-secretário-geral adjunto do PSD, não respondeu de forma clara à suspeitas levantadas preferindo dizer que "há muitas coisas que constarão do processo que desconheço, a seu tempo irá desenvolver-se e o que me for questionado, não deixarei de responder".

Augusto Santos e Silva, presidente da Assembleia da República, saiu em defesa da presunção de inocência argumentado que o "facto de estar a ser conduzida a uma investigação não significa que haja sequer a formação de culpa. E depois da formação da culpa e da acusação, haverá um julgamento e só no fim, se do julgamento resultar a averiguação de factos indevidos e a responsabilização dos seus responsáveis é que nós podemos falar de eventuais manchas, nódoas, casos ou o que seja".

A declaração causou perplexidade em Nuno Cunha Rolo, presidente da Associação Cívica Transparência e Integridade: "É muito conveniente confundir a justiça com a questão criminal. Porque, agora, se não é crime ninguém tem nada a ver com isso. É surreal. Mas sabia ou não sabia desta prática? E se sabia acha que é correto? Não acredito que com tantos anos de parlamento não soubesse disto".

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