Atividade do INEM tem sido marcada pela falta de recursos e por polémicas.
Atividade do INEM tem sido marcada pela falta de recursos e por polémicas.

Governo entrega gestão do INEM a médico militar. É o segundo nomeado para estruturas vitais do SNS

Primeiro foi a nomeação de Gandra D’Almeida, tenente-coronel médico, para a Direção Executiva do SNS que surpreendeu. Agora, é a de Sérgio Dias Janeiro, tenente-coronel médico, para presidente do INEM. E o porquê de não ser um médico do SNS surge inevitavelmente. Será pelo estado a que o serviço público chegou?
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Não é a primeira vez que a gestão do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) é entregue a um médico militar. Nem é a primeira vez que o INEM está envolto em polémica, mas é a primeira vez a que se assiste à nomeação de dois médicos militares para estruturas vitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em tão pouco tempo.


Em junho, a ministra Ana Paula Martins nomeou o médico tenente-coronel, António Gandra D’ Almeida, para substituir o médico e gestor Fernando Araújo, na Direção Executiva do SNS, e, ontem, anunciou que o médico tenente-coronel Sérgio Dias Janeiro substitui o médico Vítor Almeida, que sai sem ter sido empossado e depois de ter aceite o desafio há uma semana.


A polémica estalou de novo em torno do INEM e as críticas não se fizeram esperar do lado da política. O líder do PS, Pedro Nuno Santos, acusou de imediato o Governo de “incompetência”, o Chega e a Iniciativa Liberal pediram a audição urgente de Vítor Almeida e o Bloco de Esquerda já disse que “a roda de cadeiras não vai resolver a falta de investimento no INEM”. 


Em comunicado enviado às redações, o Ministério da Saúde justifica a saída do médico anestesista do Hospital de Viseu com o facto de este ter considerado que “não estavam reunidas as condições para assumir a presidência do INEM, por razões profissionais e face ao contexto atual do instituto”.


Ao DN, o médico contestou esta versão, dizendo: “Não é verdade. Não foram motivos profissionais, nem pessoais, foram institucionais.” Vítor Almeida explicou ao DN que aquilo que o fez sair foi “não ter recebido resposta para um conjunto de condições técnicas e financeiras, que coloquei por escrito à Sr.ª ministra e que considero importantes para o INEM e para o seu futuro”, pois receia que “o modelo do INEM, tal como existe, possa desaparecer”. 


Na quarta-feira, Ana Paula Martins assumiu aos deputados, na Comissão Parlamentar da Saúde, quando questionada pela saída do anterior presidente, Luís Meira, que “o INEM que temos não é o INEM que queremos”.


No terreno, comenta-se que a ideia do Governo é trazer a Força Aérea para o apoio nesta área, tentando assim terminar com o ajuste direto com as empresas privadas para os helicópteros no INEM, mas o DN não conseguiu confirmar esta informação. Contudo, o facto de ter sido nomeado um médico militar do Exército para a gestão do INEM veio reforçar o cenário de que tal pode acontecer.


Visão estratégica dos militares ou o caos do SNS?


No terreno, há também quem comente que este Governo “quer trazer para o serviço público a disciplina e a visão estratégica dos militares”, depois de “o processo de vacinação contra a covid-19 ter sido um sucesso com a liderança do Almirante Gouveia e Melo e depois com a coordenação do médico coronel Penha Gonçalves.

O DN quis saber junto de representantes de médicos e gestores do SNS se a nomeação de dois militares em pouco mais de um mês para estruturas vitais do SNS, poderia ter a ver com o estado em que este se encontra, não sendo apetecível para um médico do serviço público assumir tais funções.


O bastonário dos médicos rejeita tal ideia, o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares também. Só a presidente da Federação Nacional dos Médico (Fnam), aceita que tal seja possível, embora destaque também que o motivo possa estar na “intransigência que este ministério está a assumir com os médicos na negociação de condições de trabalho”.


Carlos Cortes diz ao DN que “um médico é um médico”. “Não olho para estes dois profissionais como militares, porque, em primeiro lugar, exercem fundamentalmente atividade médica.” O bastonário destaca, no entanto, que o ir buscar militares para alguns cargos pode ter a ver com “algumas características interessantes, como o espírito de missão para melhorar as condições do país”.


Mas não só. Carlos Cortes relembra que “um médico militar à frente do INEM faz muito sentido, pelo conhecimento que têm na emergência pré-hospitalar”. “São treinados para o tratamento do doente crítico em cenários e condições muito adversas.”


O bastonário reforça ao DN não saber o que terá corrido mal para levar à saída de Vítor Almeida, que conhece bem e é coordenador do Gabinete de Ajuda Humanitária da Ordem dos Médicos, mas “não [vê] que a razão para a nomeação de médicos militares seja o caos do SNS”.

Reconhece que “o INEM é uma estrutura complexa, que tem estado envolvida em polémicas constantes, sendo preciso dar alguma estabilidade à instituição e articulá-la mais com o SNS”. Para o representante dos médicos “o INEM precisa de uma carreira mais atrativa para os médicos e para os outros profissionais. No caso dos médicos, a esmagadora maioria trabalha para lá, não é dos quadros”.


O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, salienta que o INEM tem sido sempre presidido por médicos e não por gestores, argumentando: “Não retiro qualquer ilação” destas nomeações. “Certamente que existem gestores com capacidades executivas para o SNS ou para o INEM. Rejeito, de todo, a ideia de que o SNS está numa situação de caos ou de conflito tal que precise de competências militares. Precisa, sim, de alguém com competências em liderança de equipas e na gestão de situações complexas. Se o ministério escolheu estas pessoas quero acreditar que é por terem estas competências e não por serem militares”, argumentou ainda.


A presidente da Fnam, Joana Bordalo e Sá, aceita que a nomeação de dois militares possa ter a ver, de facto, com a desmotivação e o estado em que está o SNS, mas argumenta: “Temos 21 mil médicos especialistas no SNS, pessoas altamente credenciadas e com perfis que poderiam ocupar tais cargos, que são de grande responsabilidade, mas se tal não acontece é também porque essa é a escolha deste ministério.”


A médica salienta que “não cabe à Federação Nacional dos Médicos (Fnam) comentar se o perfil dos nomeados é ou não adequado. “O que podemos dizer é que, seja um médico civil ou militar que assuma este cargo, vai enfrentar uma situação muito difícil.” Só  considera que a saída de Vítor Almeida possa ter a ver com “uma atitude de inflexibilidade deste ministério em relação às condições de trabalho que os médicos pretendem negociar. Isso aconteceu com a Fnam e pode acontecer com médicos noutras áreas”.
Ontem, e questionada por jornalistas, a ministra Ana Paula Martins não quis fazer mais comentários à saída de Vítor Almeida. 


INEM tem história ligada aos militares


Se olharmos para a história do INEM, fica a saber-se que foi a pedido do Ministério da Defesa Nacional, em 1974, que o pai da emergência em Portugal, o médico cardiologista Rocha da Silva, criou as bases para a existência de um sistema integrado de socorro e urgência pré-hospitalar. Este viria a resultar na criação oficial do INEM, em 1981. Mas, depois disto, e mais recentemente, esta estrutura já foi dirigida duas vezes por médicos militares, Abílio Gomes, cardiologista, em 2008, e depois pelo major Paulo Campos, em 2014, que saiu do cargo após polémica no socorro a uma doente.  

Sucede-lhe Luís Meira, em 2016, nomeado pelo primeiro Governo do PS liderado por António Costa, que se demitiu na semana passada. 

Segundo o comunicado divulgado ontem pelo Ministério da Saúde, Sérgio Agostinho Dias Janeiro é nomeado também por 60 dias e em regime de substituição, sendo atualmente “diretor do Serviço de Medicina Interna do Hospital das Forças Armadas, onde, de 2022 a 2023, ocupou o cargo de Diretor Clínico do Serviço de Urgência”. O médico militar, de 43 anos, nascido em Vale de Cambra, licenciou-se na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, tendo feito a Formação Militar Complementar ao Curso de Medicina para o Exército, na Academia Militar, no curso de 1999-2006.

No meio militar é visto como “um operacional com uma boa folha de serviço” e como um “médico tecnicamente competente na área da emergência, onde tem experiência e conhece bem a operacional do INEM, que já assumiu funções de responsabilidade no Hospital das Forças Armadas”, comentaram ao DN.

No currículo, Sérgio Dias Janeiro conta ainda com o curso de paraquedismo militar, de Advanced Trauma Life Support (ATLS) e Medical Response to Major Incidents (MRMI), além dos cursos certificados pelo INEM de Viatura Médica de Emergência e Reanimação para Médicos, Médico Regulador do Centro de Orientação de Doentes Urgentes e Curso de Fisiologia de Voo e Segurança em Heliporto. Sérgio Dias Janeiro foi diretor de Curso de Suporte Avançado de Vida (SAV) e Formador do European Trauma Course (ETC) e do Tactical Combat Casualty Care (TCCC). Cumpriu ainda uma comissão em operações NATO em Kabul, no Afeganistão, no Medical Advisor da Operational Mentoring and Liaison Team.

Com Valentina Marcelino

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