Embora Ramsay já não trabalhe profissionalmente na cozinha com frequência, continua a gostar de cozinhar. “Está-me no sangue, não é?”, diz. -- Jonathan Player/The New York Times
Embora Ramsay já não trabalhe profissionalmente na cozinha com frequência, continua a gostar de cozinhar. “Está-me no sangue, não é?”, diz. -- Jonathan Player/The New York Times

Gordon Ramsay não vai a lado nenhum

Com uma nova temporada da sua série 'Next Level Chef', o anti-herói mais duradouro dos 'reality shows' ainda reina supremo. Quanto tempo ele consegue continuar assim?
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Gordon Ramsay insiste que nunca quis ser o mau da fita. A sua imagem de chef de cozinha e empresário de restauração impetuoso e belicoso, de mestre da fusão culinária, foi, segundo ele, em grande parte uma questão de ter começado com o pé errado.

Ramsay foi apresentado aos espectadores britânicos em Boiling Point (1999), uma série de cinco episódios no Channel 4 que narrava os seus esforços turbulentos para abrir o seu primeiro restaurante. Por volta da mesma altura, a BBC Two lançou The Naked Chef, um programa de culinária alegre e animado, protagonizado pelo jovem chef Jamie Oliver. Os dois programas, e os dois chefs, dificilmente poderiam parecer mais diferentes.

Por um lado, tínhamos Ramsay, um perfecionista rude, a despedir um empregado por beber água à frente dos clientes. “E depois, literalmente ao mesmo tempo, noutro canal, estava Jamie”, recordou numa entrevista na semana passada, “um rapaz de cabelo despenteado de Essex, a deslizar pela bancada e a fazer maravilhas com apenas um tacho”.

“A nação apaixonou-se por ele”, disse Ramsay. Já em relação a si próprio, acrescentou, “a nação perguntava-se o que raio se estava a passar”.

A explicação de Ramsay pode não justificar totalmente a sua infâmia persistente como um tirano explosivo da televisão. Afinal, não foi Oliver que deu o nome de Hell’s Kitchen à série de Ramsay e não foi ele que obrigou Ramsay a arrasar inúmeros chefs de cozinha e proprietários de restaurantes com críticas coloridas durante os últimos 25 anos no ar.

Porém, o facto de Ramsay ainda falar de velhas rivalidades quando discute a sua reputação é revelador, um vislumbre da intensidade competitiva que tem sido crucial para o seu sucesso contínuo.

Essa competitividade é uma das razões pelas quais o apresentador de cerca de duas dúzias de programas ao longo dos anos, incluindo Next Level Chef, que regressou dia 28 de janeiro à televisão americana para a sua terceira temporada na Fox, ainda dedica muito do seu tempo livre a ver outros programas de culinária. Foi por isso que, durante o confinamento da pandemia, se lançou de cabeça nas redes sociais. E é também por isso que, aos 57 anos, Ramsay não tem qualquer intenção de se despedir.

“Quando comecei esta carreira, não tinha nada a ver com dinheiro; era a paixão e o desejo de ser o melhor”, disse. “A longevidade resume-se a não tomar nada como garantido”.

Se a Grã-Bretanha alguma vez foi verdadeiramente cética em relação a Ramsay, é seguro dizer que tanto o país como grande parte do mundo mudaram de opinião. Atualmente, é um dos nomes mais conhecidos da televisão, produtor e estrela de populares reality shows na BBC, ITV e Channel 4 na Grã-Bretanha e na rede National Geographic e Fox nos Estados Unidos. Hell’s Kitchen, a série de competição culinária que apresenta na Fox desde 2005, acabou de terminar a sua 22.ª temporada em janeiro; Ramsay estima ter filmado mais de 1200 horas de conteúdo só para a Fox.

Next Level Chef, um dos seus mais recentes programas, é uma espécie de concurso de culinária em que um conjunto de cozinheiros caseiros, influenciadores das redes sociais e chefs profissionais competem numa elaborada arena de três níveis. Ramsay chamou-lhe um “conjunto de todas as melhores ideias que funcionaram em vários programas”, combinando o ritmo alucinante de Hell’s Kitchen com o escrutínio extremo de MasterChef.

Também mostra o lado mais gentil e encorajador de Ramsay, visto em programas como MasterChef Junior, em que é mais paternal do que tirano.
“O Gordon agrada verdadeiramente a todos os membros da família”, afirmou Rob Wade, Diretor Executivo da Fox Entertainment, numa entrevista. “É suficientemente arrojado para entreter os espectadores mais crescidos e suficientemente cómico para entreter os mais jovens, e penso que a sua autenticidade é tão evidente que as pessoas se sentem cativadas por ele”.

No entanto, mesmo depois de um quarto de século em frente à câmara, Ramsay insiste que não se vê como um profissional do entretenimento.

“Não sou um chef da televisão”, afirmou quando questionado sobre a sua carreira no mundo do espectáculo, apesar da impressão que alguns possam ter dele. Acrescentou: “Sou um cozinheiro sério e, por acaso, trabalho na televisão”.

É verdade que Ramsay já estava bem estabelecido no mundo da culinária antes de se tornar uma estrela de televisão. Antigo protegido de chefs condecorados, incluindo Joël Robuchon e Marco Pierre White, abriu o seu primeiro restaurante, o Restaurante Gordon Ramsay, em 1998, ganhando três estrelas Michelin em poucos anos. Foi o primeiro chef escocês a obter essa distinção, tendo acumulado 17 no total, das quais detém atualmente sete, incluindo para o Pétrus, em Londres, e para o Le Pressoir d’Argent, em Bordéus, França.

Alguns dos seus outros restaurantes são menos apreciados. As suas cadeias internacionais de hambúrgueres têm recebido críticas variadas, enquanto a cadeia Hell’s Kitchen nos Estados Unidos é efetivamente uma novidade do tipo Planet Hollywood que promove a série e vice-versa. Os mais de 80 restaurantes atualmente explorados pela Gordon Ramsay Holdings constituem uma marca poderosa, embora Ramsay afirme que continuam a ser uma paixão, na qual se inspira.

“Tudo o que faço e desenvolvo nesses restaurantes é levado para o mundo da televisão, para que se mantenha real”, afirmou.

Apesar da sua reputação implacável, Ramsay é simpático e solícito nas conversas. Pediu imensas desculpas quando problemas técnicos atrasaram a nossa entrevista. Fez perguntas sobre a minha vida e parecia genuinamente interessado nas respostas.

Essa simpatia e afabilidade contrastam fortemente com a persona unidimensional a que Ramsay é por vezes reduzido, seja em vídeos curtos do YouTube, em paródias ou em anúncios dos programas de Ramsay que enfatizam os palavrões e os gritos. Ramsay afirmou nunca ter tentado cultivar essa atitude de arrogância ácida e não gostou da sugestão de que a Fox o possa ter apresentado como mais extravagantemente zangado do que é na realidade. Os palavrões quase constantes, como a nossa conversa deixou claro, não são uma faceta da televisão.

Nyesha Arrington, ex-concorrente do Top Chef e coapresentadora do Next Level Chef, elogiou o profissionalismo de Ramsay no estúdio. “As pessoas podem dizer que ele tem um temperamento explosivo, mas o homem é uma verdadeira maravilha”, disse. “Vê-se na forma como dirige as suas equipas e no respeito que têm por ele. Não é uma mentalidade baseada no medo”.

Embora Ramsay já não trabalhe profissionalmente na cozinha com frequência, continua a gostar de cozinhar. “Está-me no sangue, não é?”, disse. Durante a covid-19, brincou, era o “cozinheiro da casa que recebia muito pouco” para as suas três filhas adolescentes.

Sempre que Ramsay não está a trabalhar ou a cozinhar, está a ver programas de culinária. “Sempre que viajo de avião, descarrego um programa culinário novo”, disse. Isso inclui séries dramáticas, como The Bear, que, segundo Ramsay, oferece “a visão mais próxima da realidade que se passa diariamente nos restaurantes” que já viu.

Toda esta paixão por programas culinários na TV pode parecer um passatempo estranho para um dos chefs de cozinha mais bem sucedidos do mundo. Porém, Ramsay continua obcecado em manter-se a par do mundo da gastronomia e parece movido por uma necessidade insaciável de continuar a demonstrar o seu valor, de continuar a ganhar.

“Diz que sim a tantas coisas”, disse Wade. “Por exemplo, aquela coisa com as malaguetas?”, acrescentou, referindo-se à participação de Ramsay em Hot Ones, o programa sobre asas de frango fritas do YouTube apresentado por Sean Evans. “Não tem de o fazer. Mas é ele que quer fazê-lo”.

Richard Blais, um dos coapresentadores de Next Level Chef, disse que ficou surpreendido com a quantidade de trabalho que Ramsay fez dentro e fora do programa, incluindo o tempo que dedicou a selecionar manualmente os ingredientes no cenário. Ficou admirado, sobretudo, com o interesse de Ramsay pelas redes sociais. “Lembro-me de ele dizer que se há alguma coisa a acontecer no mundo da alimentação, ele quer participar”, disse Blais. Salientou os TikToks e Reels do Instagram de Ramsay, em que examina jantares caseiros com uma ameaça exagerada, uma brincadeira com a sua reputação.

Ramsay começou a produzir os vídeos com as suas filhas durante os primeiros dias do confinamento, e deram-lhe a conhecer dezenas de milhões de pessoas que podem não ver a Fox, mas que adoram os gostos de Mr. Beast [um dos maiores youtubers do mundo].

“Nunca quis criar isso por estar a tentar conquistar um público diferente”, disse Ramsay sobre o seu conteúdo viral. “Aconteceu de forma orgânica”.

Nem todas as apostas criativas de Ramsay foram bem sucedidas. Hotel Hell e 24 Hours to Hell and Back, variações do seu programa de reabilitação de restaurantes Kitchen Nightmares, não tiveram tanto impacto como o original. E Kitchen Nightmares causou muito sofrimento a Ramsay, devido ao destino final de alguns dos restaurantes que tentou salvar no programa.

“Quando têm sucesso, não sou elogiado”, afirmou. “Quando falham e fecham, a culpa é minha. Por isso, estou (palavrão) de qualquer forma”.

Alguns proprietários de restaurantes que participaram na série acusaram publicamente Ramsay de ter prejudicado os seus negócios ou, em alguns casos, de ter destruído os seus restaurantes. “Foi um verdadeiro pesadelo na cozinha para mim”, disse o chef John Chapman ao The Daily Mail em 2013. Em 2007, o antigo gerente de um restaurante nova-iorquino processou Ramsay, acusando-o de o ter apresentado como incompetente no programa, o que, segundo ele, o levou a perder o emprego. O processo foi posteriormente arquivado.

Ramsay disse que quando comete um erro, assume-o. Tem sido franco sobre os erros que levaram ao encerramento do Amaryllis, o seu restaurante de alta gastronomia em Glasgow, na Escócia, e admite que abriu restaurantes “mal planeados” ou na zona errada. “Nunca se deve ter vergonha do fracasso”, disse. “Mas nunca cometam o mesmo erro duas vezes”.

É razoável questionar durante quanto tempo Ramsay conseguirá continuar assim; será que ainda estará a gritar com cozinheiros amadores ou a ajudar restaurantes em dificuldades quando tiver 75 anos? Quando questionado sobre se ainda lhe restam mais 20 anos de carreira, Ramsay disparou. “Está a sugerir que eu me devia reformar?”, gritou, depois riu-se. “Porque estou absolutamente (palavrão) de acordo”.

Wade disse que a Fox tem “muitos objetivos que ainda queremos alcançar com Gordon”. E acrescentou: “Com a sua energia, o seu entusiasmo e a sua paixão pelo trabalho, não o vejo a abrandar”.

Ramsay foi mais direto ao assunto. Continuar a trabalhar? Claro. Mas apenas porque é melhor do que a alternativa.

“O que é que eu vou fazer?”, disse. “Andar num (palavrão) barco de pesca nas Bahamas? Consegue imaginar as minhas plataformas sociais a explodir porque vou (palavrão) pescar mahi-mahi?

“Não”, disse, rindo-se. “Não, não, não, não, não”.

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