Gen. Mendes Ferrão: “Um Exército que não tem capacidade de combate não é um Exército”
O Exército é o ramo que mais militares tem perdido nos últimos anos. No entanto, sabemos que este ano já tiveram mais candidatos do que em todo o ano passado. Qual é, neste momento, a vossa perspetiva?
Nunca escondi que, de facto, o principal problema do Exército está na quantidade. Desde 2011 que temos vindo a perder efetivos. Não é por falta de alerta, de identificarmos as causas. Felizmente, neste ano conseguimos que fossem implementadas algumas medidas que contribuíram para recrutar mais, mas, sobretudo, para reter mais pessoas. O que posso dizer é isto: temos pouca gente, temos gente muito boa, muito bem qualificada. Uma das medidas foi uma melhoria comunicacional, de proximidade com a juventude que queremos recrutar. O jovem passa a comunicar connosco desde o primeiro contacto, através do WhatsApp, tem um tutor dedicado que responde pessoalmente às suas dúvidas. Ainda é cedo para medir o alcance das medidas que recentemente foram aprovadas e que, sobretudo, se refletem no aumento do dinheiro vivo que os nossos militares têm ao fim do mês na sua conta. Mas o que sei é que tenho expectativas muito positivas. Os indicadores que temos é que este ano, 2024, vamos conseguir estancar aquilo que foi um contínuo, desde 2011, de redução de efetivos e, portanto, vamos terminar 2024 com os mesmos efetivos com que começámos 2023. Isto, para nós, é um indicador muito claro de que estamos a fazer melhor as coisas. Mas há uma coisa que eu digo sempre às minhas estruturas de recrutamento: que não andem à procura dos cidadãos que não existem. Temos de perceber a juventude do nosso país. Temos de saber chegar à juventude do nosso país e temos de saber recrutá-la. Mas depois de os recrutar, também temos de os saber reter.
Como é que conseguiram inverter esse ciclo?
Temos pessoas muito mais novas na estrutura de recrutamento. Trabalhámos muito a vertente comunicacional do recrutamento, autonomizámos a estrutura de recrutamento do Exército. É uma das estruturas que tem mais autonomia a nível comunicacional.
Falar a mesma língua daqueles que vão ser recrutados...
É isso que queremos. Os produtos que temos nas redes sociais do Exército não são os mesmos que estão na rede social do recrutamento do Exército. São produtos que pretendemos que estejam muito mais perto da maneira de ser e de estar dos jovens. Depois tem outra coisa que é importante: não vale a pena queixarmo-nos de que eles não aguentam estar longe do telemóvel. São assim. Temos de ter mais progressividade nas coisas. Conseguimos baixar as taxas de atrição na formação inicial, que eram de 30%, em média, para 13%, [dos] que desistem.
Caiu para menos de metade do que era...
Mas tudo isto é conseguido porque temos um comando de proximidade e temos de, por vezes, dizer aos nossos próprios jovens militares que vão receber os recrutas, que têm de ter outra atitude e outra postura. Há os que andam mais depressa e há os que andam mais devagar. Isto é, do ponto de vista cognitivo, intelectual, da apreensão, os jovens estão muito mais capazes. Mas do ponto de vista físico, nós já sabemos que estão atrás. Precisamos de mais tempo para lhes dar as condições físicas. Mas outra coisa que é importante é a resiliência. Temos de ir mais progressivamente para lhes dar a resiliência necessária para a condição militar e para cumprir a função militar.
E não desistirem.
E não desistirem perante a primeira adversidade. Isto é, sobretudo, um trabalho dos jovens quadros do Exército, que não é fácil. Os jovens quadros do Exército que estão diretamente a lidar com os jovens que ingressam têm de transformar esta menor resiliência numa cultura de superação, isto é, que cada um destes jovens sinta que é capaz de superar um desafio. É este o grande desafio que os jovens têm. Os jovens quadros que estão a dar formação são pessoas muito qualificadas. São quadros, oficiais e sargentos com 27, 28 anos. Compreendem esta juventude. Este misto de ações, de texturas, de atitudes e de trabalho de levar a instituição e as pessoas que estão na instituição a entenderem esta nova realidade é que é o grande desafio.
A ideia que temos na sociedade é que os jovens lidam cada vez menos com a disciplina. Ora, a vida militar é assente precisamente em alguns princípios que são básicos e um deles é a disciplina. Isso não dificulta esse recrutamento?
Naturalmente que os jovens são jovens. Nós sempre fomos. Fui jovem. Já fiz as minhas pilantrices na Academia Militar quando entrei, como todos fizemos. Aliás, isso deu-me uma bagagem enorme quando fui comandante do corpo de alunos, porque os capitães eram muito rígidos com os cadetes. E eu dizia-lhes assim: isto é uma falha disciplinar ou é uma pilantrice de jovem? É diferente. Mas eu não tenho problemas disciplinares com esta juventude...
Portanto, o problema não estava na disciplina?
Não, não está. O Exército e os jovens entendem bem a disciplina. Mas lá está o tal conceito de progressividade. Hoje os jovens, quando entram nas nossas unidades, sentem um ambiente onde a disciplina impera e já têm alguma predisposição para aceitar estas regras e esta disciplina.
Ainda sobre os candidatos, tem o número exato de quantos é que entraram este ano, comparativamente com todo o ano passado?
Este ano já atingimos as 4.500 candidaturas, o que está igual ao número que tivemos durante o ano inteiro passado. Sendo que no último trimestre é sempre o período do ano em que estatisticamente temos o maior número de candidatos.
Vai superar então… Sentiram diferença com a criação do novo quadro permanente de praças?
O que o quadro permanente de praças e o regime do Contrato Especial nos vieram trazer, sobretudo na categoria de praças, foi o regresso de muitos cidadãos que tinham sido nossos militares. Portanto, cerca de 60% dos militares do Quadro de Praças e de hoje em Contrato Especial, eram aquilo que nós chamamos Reserva de Mobilidade, isto é, foram militares que já estiveram connosco e quiseram regressar.
Por causa das condições?
Não, não por causa das condições. Para poderem terem no quadro permanente um vínculo para a vida ou terem um contrato mais alargado associado de todos estes novos regimes associados a um pacote de formação certificada. Portanto, um militar que tenha um Contrato Especial, que pode ir até aos 18 anos, ou entre no Quadro de Praças, tem, obrigatoriamente, de frequentar e ter aproveitamento numa formação nível 4 do Catálogo Nacional de Qualificações. Ficam todos qualificados. Os sargentos, em relação aos quais abrimos agora o primeiro concurso ao regime de Contrato Especial, têm de obter, no final da sua formação, o nível 5. Isto é uma aposta grande do Exército, que é qualificar as pessoas. E, se esta entrevista servir para alguma coisa, o importante é transmitir a ideia de que o Exército é uma instituição que aposta nas pessoas e é uma instituição que integra pessoas muito qualificadas. Um soldado tem quase nove meses de formação-base e, se fizer o nível 4, são mais nove meses. Um exemplo prático: o operador de equipamento de engenharia que vemos aí, as máquinas a apagar os fogos, além da sua formação normal, tem nove meses de curso para saber operar aquela máquina. O sargento tem três anos.
Nesse quadro permanente foi recentemente integrado o soldado Aliu Camará, que sofreu um acidente na República Centro Africana e foi sujeito à amputação de ambas as pernas. Que sinal pretende dar o Exército com esta medida?
O Exército nunca esquece os seus. Não esquece Aliu Camará, nem esquece outros, como a furriel que também teve um acidente na Pandur, que já está a fazer a formação, e que para o ano ingressará no quadro. Há uma série de disposições legislativas que se fizeram, infelizmente só na sequência do acidente com o cabo Camará, que permitem que os ingressos se regularizem. Estes militares podem ter, dentro do Exército, o desempenho de cargos que não exigem a sua plena capacidade física.
O senhor general tem 43 anos de serviço no Exército, uma experiência operacional no terreno como comandante. Como é que alguém com esse histórico olha para o desinvestimento que, não só cá, mas um pouco por toda a Europa, se tem vindo a verificar na área da Defesa e, ainda por cima, com guerras, neste momento, na fronteira Leste da Europa?
O investimento na Defesa tem de ser um contínuo. Em permanência. Não podemos ter uma capacidade, depois apagou, depois queremos outra. Tudo isto demora muito tempo a construir nas suas várias vertentes. Não é só ter o equipamento. É preciso ter formação, infraestruturas, cuidar das pessoas. A história tem-nos mostrado que não temos conseguido manter um investimento constante na Defesa e, sobretudo, nos processos de reequipamento. No caso do Exército, houve muitas capacidades que praticamente desapareceram porque, nestes tempos passados, era fácil falar do duplo-uso, mas ninguém queria ouvir falar das capacidades de combate. Ora, um Exército que não tem capacidades de combate, não é um Exército. Para terem uma ideia, hoje temos as nossas Forças Nacionais Destacadas (FND), à exceção da República Centro Africana (RCA) - e já vamos particularizar este caso -, com equipamentos que comprámos na década de 2008/2010. Foi a última a grande aquisição de meios de combate que o Exército teve. E mesmo esses dois grandes projetos, que eram o das Pandur e dos carros de combate, ficaram a meio. Mas, se não tivéssemos tido este investimento, hoje não conseguíamos estar solidariamente na Frente Leste com os nossos aliados. Isto é um lado do problema.
Onde nós alterámos a nossa atitude relativamente ao emprego operacional de meios, um corte com a atitude que vínhamos a ter, foi com a RCA. Para lá fomos com o que tínhamos inicialmente, usámos o que tínhamos. Mas estávamos em processo de aquisição das viaturas táticas blindadas, as que hoje estão na RCA. Normalmente, gostamos de receber as viaturas, testá-las, fazê-las evoluir e, depois, é que vão para os teatros de operações. Neste caso foi exatamente o contrário. Assumimos riscos calculados. O melhor material e mais moderno que nós temos está projetado. Assumimos o risco com estas viaturas. Deram os problemas na RCA, mas com o fabricante e na garantia que tínhamos resolvemo-los e fizemos evoluir aquela viatura junto com o fabricante.
No próprio teatro de operações?
No teatro de operações e, depois, em todas as que cá ficaram. Foi um risco calculado, mas que deu excelentes resultados. Fizemos isto também com sistemas aéreos não-tripulados, em que também fomos inovadores. O Exército, em 2012-2013, foi pioneiro nesta estratégia de investigação e inovação. Fomos nós os primeiros a empregar um drone, no teatro de operações do Kosovo. Dito isto, naturalmente que é preciso investir, mas é preciso manter um contínuo e, sobretudo, há capacidades de combate que não se podem apagar. Mesmo no tempo em que não é simpático falar delas.
A Lei de Programação Militar que está em vigor foi pensada ainda em tempo de paz. Era preciso haver algumas adaptações, tendo em conta o contexto atual?
Também estive nesse processo, fiz parte daquilo que nós temos hoje inscrito na Lei de Programação Militar (LPM). Tal como está desenhada, a LPM previa repor as capacidades de combate que o Exército precisava, abrir as capacidades que tínhamos perdido e, sobretudo, visando o fim desta lei, em 2034, o Exército ser capaz de projetar, empregar e sustentar uma brigada com os padrões que a NATO nos fixou. Esse era o objetivo que pretendíamos atingir. Entretanto, dá-se o conflito na Ucrânia, há um incremento exponencial dos custos. Aquilo que era, não o racional do desenho da LPM, mas o suporte financeiro da LPM, face àquilo que as coisas hoje custam, está muito aquém. Vai ser preciso reforçar alguns dos programas que consideramos que são essenciais.
Onde está o principal défice?
Já na altura, o que estava na LPM não satisfazia todas as necessidades do Exército. Pensou-se em trabalhar com objetividade para cumprir aquilo [com] que o país se comprometeu com a NATO para 2034. É assim que a nossa lei está desenhada. O que há agora de novo é o aumento dos preços e temos de fazer algumas variações, algumas capacidades que ganharam acrescida importância, nomeadamente a artilharia antiaérea. É crítica. Estamos sempre atrasados.
Houve um grande hiato na renovação desta...
Já tivemos um sistema de defesa antiaérea de Lisboa. O mais avançado que havia no mundo. Só chegou foi a seguir à Segunda Guerra Mundial. Portanto, na artilharia antiaérea temos de mexer em quantidade e qualidade. É a prioridade do Exército. Não está totalmente expressa nesta LPM, mas é uma prioridade. Aliás, também face àquilo que estamos a ver, que são as ameaças mais prováveis e mais perigosas que hoje verificamos. Outra questão, que é fundamental, é a dos fogos. Normalmente associamos a artilharia ao nível tático, mas hoje temos os drones de sacrifício que transportam munições. Temos os lança-rockets com mais alcance, a nossa artilharia toda renovada e, sobretudo, temos de trabalhar nos sistemas aéreos não-tripulados. E já estava na LPM os drones de sacrifício. Vão ter é de ser em mais quantidade.
Esse desinvestimento coloca em causa a capacidade de Portugal continuar envolvido nas operações internacionais?
Não. Nós somos muito criteriosos quando assumimos a responsabilidade de projetar forças para as missões. Não damos passos maior do que a perna. E, sobretudo, enquanto eu for comandante do Exército, informamos os nossos aliados com a verdade sobre a nossa situação. Temos de defender a Leste e estabilizar o Sul. Como é que entendemos que devemos contribuir para isso? A Leste, participando nas operações da NATO, integrados nos Multinational Battle Groups, quer na Roménia, quer na Eslováquia, com forças médias e forças pesadas. A presença na Roménia é, já há muito, apreciada. Temos aí as forças médias com as Pandur. Começámos no ano passado na Eslováquia e temos a expectativa de, em 2025, aumentar aí a nossa presença. Estamos a apostar naquilo que são os dois setores de Defesa principais da NATO, com forças bem treinadas, bem equipadas, isto é, com grande credibilidade internacional. Aliás, ouvi dizer que o nosso pelotão de carros de combate que está na Eslováquia já teve mais notícias no site da NATO do que qualquer outra das forças que nós temos projetadas. Mas temos também, pela primeira vez, as nossas Operações Especiais em teatro europeu, num escalão nunca antes atingido. Uma força que já tem capacidade para planear, dirigir e coordenar operações de Operações Especiais, incluindo comandar forças de outros países. As Operações Especiais são de pequena dimensão, elevadíssima qualidade. É o investimento que é preciso fazer e não precisa ser de grande monta. Há dez anos que estamos a construir este projeto, de termos este nível de Operações Especiais e projetar este escalão.
Na Roménia estamos mesmo na fronteira… Isso significa que o militar português, seja das Operações Especiais, seja de artilharia, está preparado para, a qualquer momento, uma situação de conflito real?
É por isso que lá estamos. Não lhe podemos chamar propriamente um teatro de operações, pois não estão a decorrer operações. Estamos integrados nos Planos Regionais de Defesa da NATO, onde estamos a treinar arduamente com os nossos aliados para termos interoperabilidade. Começamos com o treino com a finalidade última, que é estarmos preparados para combater.
Estes contingentes internacionais de zonas de conflito, seja com a bandeira das Nações Unidas, da NATO ou até da União Europeia, são respeitados? Sente que há respeito por estas forças multinacionais?
Deixe-me só completar o que ia explicar há pouco, sobre estabilizar o Sul. O que temos feito enquanto país e com o Exército inserido? Primeiro, cooperação no domínio da Defesa. É uma mais-valia enorme que Portugal tem e que nem sempre é devidamente valorizada. Estamos lá praticamente desde a independência dos países. Conhecemos os nossos camaradas dos países africanos e de Timor-Leste. Há confiança. Não vamos apresentar soluções que eles não queiram. Temos uma coisa que é quase única. Falamos com eles. Não é só a mesma língua, alguma afinidade cultural. Somos capazes de fazer com que eles nos digam, sem vergonha, aquilo de que precisam. Às vezes são coisas muito simples que um americano não percebe. Mas nós somos capazes de perceber e de os ajudar. E esta cooperação na área da Defesa permite-nos, depois, articular no plano multilateral e bilateral, ou no seio de organizações internacionais, formas de dar as melhores respostas àquilo que precisam. Olhemos para Moçambique como estudo de caso.
Cabo Delgado?
Tínhamos a cooperação no domínio da Defesa e, quando entra a missão da União Europeia (UE), fomos capazes de projetar antecipadamente e começar a trabalhar bilateralmente com os moçambicanos para preparar o lançamento desta missão. Depois fomos capazes de ter o comando dessa missão, de ter um papel significativo e de sermos um elo fácil de ligação entre a UE e as autoridades moçambicanas. Depois de estar aí, potenciar aquilo que é a relação com países mais relevantes na região ou fora da região, para congregar apoios para essa missão e trabalhar de forma conjugada e integrada. Ultimamente, também fazer a ligação com as organizações regionais de segurança, que também trabalhavam de forma conjugada. Neste momento, esta missão é apresentada nos fóruns internacionais e pelos próprios moçambicanos como uma missão de grande sucesso. Fomos capazes de treinar e equipar. Mas tivemos de convencer os nossos aliados de que valia a pena investir. Neste momento, formamos as chamadas Quick Reation Forces do Exército moçambicano, que são aquelas que eles empregam no norte do país, em Cabo Delgado, e que estão a ter um sucesso enorme.
E na República Centro Africana?
Até aqui estávamos a capacitar o aparelho de Defesa dos países. Na RCA estamos a conduzir operações numa força das Nações Unidas. A complexidade da realidade africana - e aqui falo um bocadinho com a experiência real que tive - requer uma aproximação multidisciplinar. E as Nações Unidas fazem isto muito bem, porque conseguimos congregar vários pilares com o pilar da Segurança e Militar para darmos uma solução. Agora, não há milagres no tempo, estas coisas demoram. Na RCA, hoje a situação está muito mais estabilizada do que era no meu tempo, do ponto de vista da Segurança. Não é que não haja insegurança, mas não são aqueles grandes conflitos a que eu assisti. Não só assisti, como tive de planear e combater. Digo sempre que estive em guerra com a missão de paz e quase estive em guerra em determinados períodos na RCA.
Houve situações complicadas, não foi?
Sim, várias. Mas esta nossa aproximação é capacitar, através da cooperação no domínio da Defesa e as missões da UE, fazendo a articulação no quadro das Nações Unidas em África.
Na próxima semana celebra-se o Dia do Exército. Que qualidades há no Exército português, neste momento, e onde é que pode fazer a diferença?
A pergunta não é fácil, porque são tantas as coisas. Onde é que penso que o Exército, neste momento, está a fazer a diferença? Nas pessoas. Desde o princípio, as pessoas são o meu centro de gravidade. Mas não é só no sentido de lhes dar as melhores condições para trabalhar e estar preocupado com elas, é também numa cultura de exigência e de atitude. Penso que estamos muito melhor nesse aspeto. Temos apostado muito na exigência e, aliás, os resultados são reflexo desta exigência que temos tido para com os jovens.
Segundo - e a questão é um bocadinho o cartaz que temos para o Dia do Exército -, o mundo de oportunidades que podem encontrar no Exército. E nem todos vão combater. Tenho farmacêuticos, socorristas… uma elevada percentagem do Catálogo Nacional de Qualificações [que] existe dentro do Exército. Outra questão que se aplica a este mundo de oportunidades é a nossa Academia e a nossa Indústria poderem ganhar muito com o Exército. A nossa Academia, sob a forma de investigação, desenvolvimento e inovação. Nós somos excelentes parceiros e ainda melhores embaixadores e temos feito um trabalho enorme neste domínio, não só no aspeto formal. Criámos um centro de Experimentação e o Centro de Capacitação Tática, em Santa Margarida. As pessoas não têm ideia das oportunidades que se lhes podem abrir. Isto é, o Exército está a comprar uma viatura blindada e não temos em Portugal nenhuma linha de montagem para fazer uma grande viatura. Mas a lógica é a mesma da indústria automóvel.
Há uma série de componentes que a nossa indústria tem capacidade de produzir. Isto é o que nós estamos a fazer com o I&D e o interface entre a Indústria Nacional e os grandes players da Indústria de Defesa, apresentando a Indústria Nacional, apresentando a nossa Academia e mostrando a um e a outro as mais-valias que podem vir de trabalhar em conjunto. Penso que isto vai dar frutos.
E daqui decorrem dois sonhos. Um é a digitalização total da nossa base logística, em Benavente. Hoje temos uma logística que responde e eu quero ter uma logística que seja preditiva, isto é, que antecipe as necessidades e trabalhe em antecipação. Isto implica que todas as nossas novas viaturas nos cadernos de encargos terão de trazer sistemas digitais que permitam implementar isto e vão estar permanentemente em contacto com as estruturas de manutenção. Saberemos à partida como é que a viatura está e se precisa de manutenção ou não. O outro sonho é transformar Santa Margarida, para além daquilo que já lá está e da força que já lá está, num grande Centro Internacional de Simulação de, e para, a Europa e para os nossos aliados. Tem investimentos previstos de cerca de 4,2 milhões na LPM. Pode trazer uma mais-valia significativa ao Exército e, com isso, podemos atrair muitos dos nossos aliados para virem treinar aqui. Santa Margarida tem como vantagem que, além de ter este sistema de simulação, pode haver treino real no campo. Já temos vários comandos da NATO interessados, nomeadamente dos Estados Unidos.
Celebramos este ano os 50 anos do 25 de Abril, uma revolução em que os militares tiveram um papel muito importante. Tendo em conta todos os problemas que temos aqui identificado, será precisa uma revolução de mentalidades na forma como se pensa a Defesa Nacional e as Forças Armadas no nosso país?
Não falaria de uma revolução. Acho que todos temos de fazer o nosso caminho. Porque, hoje, estamos a ver que a guerra que nos querem mostrar em direto tem mudado um bocadinho a perceção daquilo que é a preocupação com as questões de Segurança e Defesa internacionais. E noto isso nas pessoas com que contacto. Deixaram de questionar quando eu digo que preciso de investir em capacidades de combate. Até aqui, há uns anos, só me falavam em militar de emergência ou apoio militar de emergência, em ir aos incêndios, às vigilâncias. Era o que se falava. Hoje as pessoas aceitam naturalmente que eu fale das capacidades de combate. Eu sei que as minhas capacidades de combate são menos simpáticas do que as da Marinha e da Força Aérea. Tenho essa noção clara. Mas hoje isso está a mudar, porque as pessoas estão a ver que hoje os combates são predominantemente terrestres. E não estou a dizer isto por oposição ou depreciação de qualquer um dos outros ramos. Só em conjunto é que podemos fazer as coisas. Mas o que nós estamos a assistir na opinião pública, nacional e internacional, é uma perceção clara da prevalência das forças terrestres.
Uma prevalência das forças terrestres em que sentido?
No combate a que nós assistimos, que é na Ucrânia, a maior parte são operações terrestres. E onde foi a maior transformação destas operações terrestres? Foi no domínio das informações. São cada vez mais precisas e em tempo real, no domínio informacional. Isto é, nós hoje sentimos perfeitamente que grande parte dos conflitos se travam fora - à exceção de Israel, ou da Rússia -, não há grande liberdade de ação para determinados tipos de ações. Outra transformação foi na letalidade. Como dizemos na gíria militar, o campo de batalha tornou-se transparente. Isto é, enquanto eu antigamente, na década de 1980, quando, no âmbito de compromissos com a NATO, passava todos os meses uma semana em prontidão fechado em Santa Margarida, sabia as continhas, sabia qual era o alcance da artilharia, metia-me fora do alcance da artilharia e estava descansado. Hoje isso acabou. Toda a gente sabe onde eu estou e quando estou. Isso atingiu qualquer sistema de armas. Isto traz uma inquietude tática enorme para nós que estamos no terreno. Ou seja, implica que temos de ter meios para nos protegerem. Por isso é que eu refiro muito a questão da artilharia antiaérea, porque grande parte destes ataques são feitos ou com os rockets ou com os meios aéreos. Temos de ter uma prevalência muito maior e mais dispersa no campo de batalha para proteger as forças. Por outro lado, não vale de nada proteger se não tiver capacidade de abater o outro lado. E por isso é que falei da artilharia e dos fogos.
Ainda a propósito da pergunta em relação aos 50 anos do 25 de Abril, veria hoje como natural um militar na Presidência da República ou candidato à Presidência da República?
Vou dar uma resposta bastante simples. É assim: eu não sou candidato. Adoro ser chefe do Estado-Maior do Exército. Não é pela nobreza do cargo, por estar aqui em cima. Não, não. Eu adoro estar no Exército, que adoro comandar. A maior alegria que tenho é que entro em qualquer unidade do Exército, conheço os meus militares e os meus civis, e eles conhecem-me. E os meus soldados não têm medo de pedir para ser meus amigos nas redes sociais. Um soldado com quem me cruzei numa unidade onde fui chefe pediu-me amizade no Facebook. Essa é que é a minha grande alegria como comandante do Exército. É que eles sentem genuinamente que eu me bato por eles. Vou dizer-vos o seguinte: estive três meses internado no hospital em junho e fiz questão de não dizer. É a primeira vez que estou a falar disso publicamente. E tive dois motores, dois motores enormes: a minha família e o Exército.
A pergunta não era se seria candidato. A pergunta era se encararia como normal um militar candidato?
Eu não ponho as coisas assim...
Vou fazer-lhe a pergunta de maneira diferente. Um Presidente da República é um comandante. Um comandante militar daria um bom Presidente da República no século XXI?
Nós já tivemos na Presidência da República pessoas de várias profissões, de vários setores políticos. Eu acho que, sobretudo, é a pessoa em si que conta e não a sua profissão. Portanto, não estigmatizando nenhuma carreira, nenhuma profissão, como eleitor, quero que seja o melhor Presidente da República. Porque é disso que nós precisamos.