Ganhar a vida com a morte, um negócio que está a mudar

O que mudou em Portugal nos últimos anos no que respeita ao negócio fúnebre? Ao contrário de outras áreas, não há falta de trabalho nem dificuldade em recrutar trabalhadores. Um quarto dos mortos já são cremados.
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O que mudou em Portugal nos últimos anos no negócio da morte? Quase tudo. A começar pelo facto de um quarto dos corpos ser agora cremado e não enterrado, como antes. Mas até lá chegar é preciso "tratar do corpo", providenciar a despedida. É essa a tarefa dos agentes funerários, uma espécie de faz-tudo, que têm vindo a modernizar-se muito graças à formação.

Em Pombal, a cidade onde há 37 anos é "a Guida da funerária", Margarida Santos começou mesmo por cuidar dos vivos. Aos 15 anos já trabalhava nas limpezas do hospital, onde se cruzava com o (falecido) marido, bombeiro. Aí, ambos se habituaram a lidar com a morte. E por isso foi sem surpresas que acabaram por ficar com o trespasse do negócio da agência funerária, corria o ano de 1985. "Eu gostava muito de flores. E ia com frequência ajudar a senhora, ao lado da [nossa] gráfica, esposa do dono da agência. De resto, tratava - como trato hoje - a morte como uma coisa natural, sem entrar muito nas profundezas", conta ao DN Margarida Santos, entre os cigarros que fuma pausadamente.

É ela, ainda hoje, o rosto principal da funerária, que em 2002 passou a sociedade por quotas: quatro partes iguais, divididas entre ela e os três filhos. Os mais velhos continuam ao leme da gráfica; o mais novo, Rúben, está com ela a tempo inteiro na funerária. No escritório há carrinhos e outros brinquedos. Guida já tem uma mão-cheia de netos, que às vezes brincam ali, porque aquele é um escritório como outro qualquer. Foi assim que criou os filhos, num tempo em que "trabalhava sozinha, porque naquele tempo tudo era diferente: o público era menos exigente e havia muito menos burocracia".

Foi essa exigência que a fez caminhar ao ritmo dos caminhos fúnebres, com horas de formação, que partilha com a equipa: três rapazes na casa dos 30 anos, como Nuno, que assiste à conversa, habituado a preparar os corpos. Qualquer deles lida bem com tanatoestética (restauro ou recomposição do cadáver, para manter aparência natural do corpo após a morte) e com a tanatopraxia. "Imagine um corpo ferido, com manchas negras, nós temos que dar ali uns retoques para que o corpo tenha uma aparência o mais natural possível, para não chocar a família. E temos muito cuidado com a higienização do corpo. Daí que para nós esta questão da covid não tenha sido nenhum problema."

Conhecida pela sua forte personalidade, Guida conta ao DN como é que lida com tantas e tão diversas sensibilidades, num momento tão peculiar como a perda de um ente querido. Sobram-lhe histórias de familiares desavindos, "e é nessa altura que tenho que entrar em ação com a psicologia. Nós temos que estar aqui deste lado para saber ouvir, opinar pouco, saber mediar os conflitos. É para isso que afinal fazemos formação da psicologia do luto", sublinha.

Aos 66 anos, embora goste do que faz, Margarida diz que "está cansada". Apesar de tantos anos a lidar de perto com a morte, nunca se habituou ao sofrimento. "Quando são os nossos amigos, por exemplo. Ou pessoas muito novas, que deixam filhos pequeninos. Fujo cada vez mais dessas situações, vai um dos empregados ou o meu filho." O telefone toca, é alguém de França. Numa zona fortemente marcada pela emigração, a funerária passa agora também uma parte do tempo com estes serviços: França, Bélgica, Suíça, Luxemburgo, Alemanha e Espanha. É nesta altura que Guida aponta o lado negro do negócio, a "concorrência desleal" entre agentes funerários. "Não há outra maneira de o dizer. Aqui é "ou matas ou morres". Mas se eu estou no mercado é para ir à luta... e quem quiser lutar comigo tem que estar nas mesmas condições que eu", adverte, ela que afinal acabou por prescindir das flores, a que se dedica apenas em casa.

Jaime Alexandre não herdou do pai apenas o nome. Herdou também o negócio, já que foi o único dos quatro irmãos que acabou por enveredar por esta área. Recebe o DN num espaço lounge, como se fosse um bar. Ao fundo, uma paisagem idílica, com um por do sol. Estamos no Centro Funerário Jaime, em Amor (Leiria), o primeiro do género na região, um espaço onde investiu 450 mil euros em plena pandemia. Ali há todo o conforto que não é comum à maioria das casas mortuárias, onde decorrem os velórios, normalmente geridas pelas igrejas ou juntas de freguesia. Também há uma parte de exposição de caixões, potes para cinzas e toda a arte funerária. Quem entra tem a estranha sensação de participar num episódio do Querido, Mudei a Casa, versão fúnebre.

Desde os 13 anos que Jaime contacta com o universo da morte, quando começou a ajudar o pai no escritório. Em adulto, frequentou "tudo o que era curso nesta área", de que também é hoje formador. E durante oito anos foi presidente da Associação de Agentes Funerários do Centro (fundada pelo pai), sendo agora secretário da direção. Já fez uma revista temática, organizou feiras, fez crescer o negócio que o pai começou em 1978. Antes de construir o Centro Funerário em Amor, pesquisou muito. "Andei a ver o que havia na Europa, fui tirando ideias. E estávamos numa altura em que, como em todos os negócios, tínhamos que evoluir."

Naquela freguesia, por exemplo, das três casas mortuárias existentes, "nenhuma tinha condições. Ou seja, não têm aquecimento, são sítios muito fechados, e eu queria sobretudo tirar aquele ambiente pesado dos velórios. Dar alguma dignidade às famílias e à pessoa que morreu".

Recua até final dos anos 70 para recordar o tempo em que o pai começou. "Era um setor muito pouco profissional. Naquele tempo o agente funerário era alguém que ia desenrascar uma família. Hoje não é assim", enfatiza Jaime, a quem na verdade não custa lidar com a morte. "Custa-me mais lidar com a vida - dos que ficam - e com o sofrimento", acrescenta, ele que se emociona por tudo e por nada, que não consegue ir visitar ninguém ao hospital, mas que, no entanto, ao contrário de Guida, não foge de lidar com a morte de um familiar ou conhecido. "É uma questão de profissionalismo", conclui.

Na Funerária Jaime, L.da, trabalham 12 pessoas, embora parte delas seja apenas prestadora de serviços. Tal como Margarida, também ele não tem tido dificuldade em encontrar quem queira trabalhar na área. "Tenho uma pessoa que trabalha connosco no Juncal (Porto de Mós), onde temos uma agência também, há 35 anos. Mas a maioria é gente nova."

No universo funerário há um antes e um depois da entrada em cena da empresa Servilusa, que começou a operar em Portugal em 2001, na sequência da junção de dois grupos da área. A marca só se tornaria conhecida do mercado a partir de 2003, quando tudo mudou: o conceito de funeral, a começar pelo velório, e o cuidado na apresentação dos funcionários e do equipamento. "Temos crescido por via de duas formas: a abertura de novas lojas pelo país, mas também a integração de outras funerárias já existentes", conta ao DN Paulo Moniz Carreira, diretor-geral da Servilusa. Há agora 70 lojas da empresa por todo o país, que empregam um total de 340 trabalhadores. Metade são mulheres. "Houve aqui uma grande mudança do paradigma", frisa Paulo Carreira quando olha para o caminho percorrido, que acabou por "trazer a mulher para o setor".

Até este ano, a empresa nunca sentira dificuldade em contratar, nomeadamente por se tratar deste setor. "Mas em 2022 todas as áreas estão com dificuldades, e a nossa não é exceção", afirma o diretor-geral, orgulhoso "da política de recursos humanos que já nos fez ganhar vários prémios. Nós estamos organizados de maneira a não sobrecarregar as pessoas e as famílias. Por isso é que muitas vezes são as próprias funerárias a aproximarem-se de nós, por sermos uma empresa atrativa para trabalhar".

É a Servilusa que explora em Portugal uma parte dos crematórios, sendo proprietária de alguns deles. Atualmente, apesar de não existir ainda uma cobertura de todo o território nacional, um quarto dos mortos já é cremado. Em Leiria, onde o crematório é propriedade da Servilusa, Jaime Alexandre diz que os serviços "já rondam os 40%".

"O que é preciso é criarmos as condições", considera Paulo Carreira, que aponta também a grande mudança que ocorreu nos velórios, hoje "muito menos tétricos".

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