Galland encontra-se com Hanna. Uma história d"As Mil e Uma Noites com 300 anos
Autor e dramaturgo anglo-irlandês, John O"Keefe foi um profícuo criador da sua época. À beira da cegueira, O"Keefe ditou 30 peças de teatro, operas cómicas e libretos entre 1782 e 1796. Assim o fez com a adaptação aos palcos da capital inglesa de uma das primeiras versões teatralizadas de um conto publicado 70 anos antes. Em 1788, as aventuras de um jovem asiático enredado na busca de uma lamparina mágica, refúgio para um génio (djinn), conquistava as plateias do histórico Theatre Royal. Desde 1707, Aladino e a Lâmpada Mágica nutria o apetite europeu por histórias encantatórias. Na transição do século XVII para o XVIII, o velho continente entregou-se à procura voraz por um novo género literário, o conto de fadas. Histórias que beneficiaram, na década de 1690, do advogado, também escritor e poeta francês, Charles Perrault. Fundado na adaptação de narrativas orais e escritas, entre outras, do folclore europeu, Perrault entregou aos prelos histórias como Capuchinho Vermelho, Cinderela, O Gato das Botas e Barba Azul.
O mundo de dragões, bruxas, fadas e gigantes espicaçava um robusto mercado de demanda. Este, encontrou na milenar tradição contista do Oriente uma pródiga fonte de narrativas. À parte o enredo da história, Aladino e a Lâmpada Mágica conta-nos uma outra crónica, a do encontro no século XVIII de dois homens, provenientes de mundos diferentes: um, francês, orientalista e arqueólogo, então já sexagenário. O outro, perto dos 20 anos, viajante e comerciante nascido em Alepo, na Síria. No domingo 17 de março de 1709, Antoine Galland recebeu Hanna Diyab na sua casa parisiense. Nas semanas que se seguiram, o sírio, cristão maronita, desfiou em árabe 16 contos orientais, prontamente vertidos para a língua francesa por Galland. O autor gaulês encontrou na verve de Hanna Diyab o caminho para o nono volume de uma obra monumental que traduzia, compilava e publicava desde 1704. As Mil e Uma Noites nascera de uma coletânea de contos compilada ao longo de séculos, originários do Médio Oriente e do sul asiático. Uma narrativa urdida a partir de uma história de sobrevivência, a da princesa persa Xerazade e dos contos com os quais encantava Xariar. O monarca que, a cada noite, ordena a morte de uma nova esposa, enlevou-se no poder hipnótico das narrativas. Xerazade garantiu um bem precioso, tempo, e a empatia do rei.
O talento narrativo de Hanna Diyab entregou a Antoine Galland histórias como Ali Babá e os Quarenta Ladrões e O Cavalo Encantado. O homem a quem é creditada a primeira tradução europeia d"As Mil e Uma Noites, sucesso editorial com traduções, ainda no século XIX, para as línguas inglesa, alemã, italiana e russa, não creditou a Hanna Diyab a autoria das histórias que este transportara desde a sua terra natal. O diário de Galland, publicado postumamente no século XIX, contém generosos resumos das histórias contadas por Diyab, embora se revele dúbio quanto à autoria das narrativas.
Hanna Diyab nasce por volta do ano de 1688 na Síria Otomana. Em Alepo, onde trabalha para comerciantes estrangeiros, Diyab aprende as línguas francesa e italiana e domina o provençal e o turco. Jovem, ingressa como noviço num mosteiro maronita no Monte Líbano, onde permanece por pouco tempo. Regressado à sua cidade natal, Hanna Diyab trava encontro com o francês Paul Lucas, mercador e antiquário ao serviço do monarca francês Luis XIV. Fascinado com o talento contista e o domínio de línguas do sírio, Lucas contrata-o para seu assistente e intérprete, com a promessa de um lugar na Biblioteca Real de Paris. Em fevereiro de 1707, Diyan deixa Alepo, num périplo que o leva a Trípoli, Sidon, Beirute, Chipre, Egipto, Líbia, Tunísia, Córsega, Marselha e, finalmente, a capital francesa, onde chega em 1708. De permeio, Hanna Diyab contacta com dois mundos que confluem naquele início do século XVIII. "Viajar entre o Levante e a Europa era testemunhar entre um mundo que oscilava entre antigas superstições e os frutos da "Idade da Ciência", um mundo que vivia entre a Contrarreforma e a morte de bruxas na fogueira, enquanto lutava com as leis da gravidade e a invenção do motor a vapor", recorda-nos o britânico Nicholas Jubber, no seu livro Os Contadores de Histórias (edição portuguesa de 2022), e acrescenta: "Em Beirute, Hanna visitou "a caverna do dragão que São Jorge matou" (...) mas também ficou maravilhado com o relógio astronómico de Lyon, as cisternas de Alexandria e a engenharia hidráulica de Versalhes". Quando se apresenta nos aposentos do referido palácio, frente à corte de Luis XIV, Hanna leva os olhos repletos de imagens da sua viagem e da tradição dos contadores de histórias da sua terra natal.
Na capital francesa, Paul Lucas apresenta o sírio ao homem com o título de antiquário do monarca Luis XIV, após anos de serviço a oriente. Na segunda metade do século XVI, Antoine Galland servira na embaixada francesa em Constantinopla (atual Istambul), viajara pelo Levante, trabalhara para a Companhia Francesa das Índias Orientais na recolha de antiguidades para o gabinete do ministro das Finanças Jean-Baptiste Colbert, aprendera a cultura e língua árabe, turca e persa. Em Paris, e após a morte em 1695 do orientalista Barthélemy d"Herbelot de Molainville, Galland deu seguimento à Biblioteca Oriental, que incluía a tradução da grande enciclopédia árabe Kashf al-Zunun, publicada em 1697. Sete anos antes apresentara com assinalável sucesso um conto baseado numa história que lhe fora transmitida em Constantinopla. Sindbad, o Marinheiro acabaria por "morar" no quarto volume d"As Mil e Uma Noites.
O resgate da memória de Diyab teria de aguardar 284 anos sobre a data do encontro de 17 de março de 1709. Em 1993, o linguista Jerôme Lentin descobre na Biblioteca Apostólica do Vaticano, o documento registado como MS. Sbath 254, a autobiografia de Hanna Diyab. De Paris a Alepo (no original D"Alep à Paris. Les pérégrinations d"un jeune Syrien au temps de Louis XIV), contou com publicação em 2015. Na obra, escreve Diyab, citado no trabalho A Viagem das Mil e Uma Noites, seleção e tradução de Mamede Mustafa Jarouche, professor de literatura árabe da Universidade de São Paulo: "Naqueles dias [no inverno de 1709] éramos visitados muitas vezes por um homem velho encarregado da biblioteca de livros árabes. Lia bem o árabe e passava livros em árabe para o francês (...). Traduzia o livro de histórias das Mil e Uma Noites. Faltavam no livro algumas noites. Contei-lhe umas histórias que conhecia e ele terminou o livro com essas histórias. Ficou satisfeito comigo, e prometeu-me que atenderia de bom coração a qualquer pedido meu".
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