Frio, fome e condições insalubres: imigrantes tentam sobreviver em Beja

Falta de habitação, valor alto das rendas e condições laborais precárias impedem muitos trabalhadores estrangeiros de terem uma moradia no Baixo Alentejo.
Publicado a
Atualizado a

No Centro de Beja, quatro homens tentam aquecer-se ao sol de inverno sentados num banco. Um deles tem consigo todos os seus pertences: uma fina manta cor de laranja, uma pequena mochila e um saco de pão seco que recebeu como doação. O grupo, composto por marroquinos, faz parte dos muitos imigrantes que atravessaram fronteiras para chegar a Portugal, terra que acreditavam ser a melhor para trabalhar, construir a vida e enviar dinheiro à família enquanto estão longe.

Ao DN, confirmam que o objetivo não era ter de dormir na rua ou em prédios inacabados, sem nenhuma proteção e segurança, com fome e frio, situação em que se encontram neste momento. "Ninguém ajuda, nada, nada", repetem. Dormem numa construção de três andares perto da estação de comboios, que se tornou moradia improvisada de pelo menos 60 pessoas, entre homens e mulheres de diversas nacionalidades.

O grupo levou o DN até ao local, com o aviso de que "o cheiro era forte" e havia pouca luz. Do lado de fora, avistam-se pelas janelas roupas a secar. Com a porta principal encerrada, a entrada dá-se pela lateral. Sente-se realmente o odor forte antes mesmo de entrar nos corredores escuros.

Cada grupo se acomoda numa das áreas, a maior parte desprotegida do frio invernal e da forte humidade. "Vivemos assim e ninguém nos ajuda", diz um deles, ao chamar outros colegas, também de Marrocos. Muitos chegaram há poucos dias, todos com o objetivo de trabalhar.

Cada um improvisa como pode: cama feita de cartão, alguns cobertores, fogueiras. Uma das zonas com um pouco mais de sol é utilizada para tomar um banho improvisado e para fazer as necessidades fisiológicas. "É muito frio", lamentam. É necessário subir ladeiras a pé durante alguns minutos para ir buscar água à torneira de um jardim público, atividade que realizam diariamente.

A água também é utilizada para beber e cozinhar. A maior parte reúne-se por nacionalidades. No andar térreo ficam os marroquinos, chegados em períodos diferentes, mas todos com objetivos e histórias semelhantes. Ouvem que Portugal é um "bom país para trabalhar" e em que é possível "ter documentos".

Taomi Miloud, que possui o cobertor laranja, tem 47 anos e nasceu em Casablanca. Veio a pé de Espanha, depois de iniciar o percurso de bicicleta, que avariou no caminho. Não fala português, nem inglês e garante que quer um emprego. Depois de quatro noites no prédio, seguiu para o norte, na tentativa de encontrar uma região com mais apoio.

Jamal A., de 32 anos, chegou há menos de um mês e já viu que a jornada será muito mais longa do que imaginava. "Não há casas, é tudo caro, os documentos são caros, não há trabalho agora", resume o marroquino, que já trabalhou em Itália, onde tinha um emprego e casa, mas não conseguiu obter um título de residência, uma vez que as regras do país são diferentes das de Portugal.

Logo que chegou a Beja, a primeira medida foi ir atrás da documentação, mas diz que não conseguiu ajuda e teve informações desencontradas. Decidiu então recorrer a um indiano, encontrado no Facebook, que cobrou 450 euros para tirar o NIF, NISS e outros papéis necessários para dar entrada na Manifestação de Interesse.

Os documentos são todos gratuitos, mas, diante da dificuldade nos órgãos públicos, recorrem aos solicitadores clandestinos, que cobram valores exorbitantes. Muitos deles são golpistas e desaparecem após receber o pagamento, deixando os imigrantes ainda mais vulneráveis, sem dinheiro, sem esperança e sem os necessários documentos.

"Queremos ser cidadãos legais, foi por isso que viemos para cá. Só queremos trabalhar, sem problemas, dentro das leis", explica Jamal. O imigrante possui um curso técnico de construção e pintura, profissão que deseja seguir em Portugal. "Mas não dão oportunidade sem os documentos, tenho de ser paciente", lamenta. Até que consiga emprego na área em que estudou e tem experiência, aceita qualquer tipo de trabalho, principalmente na agricultura, a área que mais emprega estrangeiros na Região do Alentejo.

No prédio, há quem trabalhe e mesmo assim não consiga arrendar uma casa ou uma cama. Mohamed El Assari, de 31 anos, vive em Portugal há três anos. O trabalho na apanha de frutas ou azeitonas é sazonal, com contratos temporários. Parte do ano fica sem atividade e diz ganhar pouco, o que o impede de poupar dinheiro. E, nesta época, não consegue outro emprego. "Trabalho com tudo, obra, pintura, mas não tem nada agora", explica.

Além disso, ressalta que os migrantes têm mais dificuldade em arrendar um imóvel por desconfiança dos senhorios. O arrendamento de quartos ou beliches também traz desafios, principalmente pela sobrelotação e preços. O marroquino já morou em quartos com mais quatro pessoas por 400 euros, com condições mínimas, como apenas uma casa de banho e uma cozinha para todos.

Sem alternativa, sem apoios ou qualquer tipo de ajuda, resta a companhia dos compatriotas e as condições insalubres do espaço - que consideram melhor do que dormir na rua. Na mesma situação está o casal Nortin Dari (nascido em Marrocos) e Svetlana Nikacchina (natural da Ucrânia), que chegou ao país com estatuto de refugiados. Moravam inicialmente em Lisboa, mas com o fim da proteção legal, ficaram sem nada e decidiram ir para o Alentejo, com a informação de que seria mais fácil arranjar trabalho.

Nortin conseguiu trabalho na apanha de azeitonas, por 6 euros à hora, mas a atividade é temporária. "Paga muito pouco, não dá para morar e comer", frisa. Chegaram a arrendar uma cama de solteiro por 350 euros num quarto com seis pessoas. A casa estava sobrelotada e despreparada para tantos moradores - todos imigrantes. "Não tinha como cozinhar a refeição para levar para o trabalho. E a casa de banho sempre ocupada", diz Svetlana.

O casal, que está junto há três anos, encontrou o prédio onde moram os demais migrantes e decidiu instalar-se ali. Eles são rostos atrás de estudos, como o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), realizado neste ano sobre a integração dos migrantes. "Custos com habitação pesam na despesa dos imigrantes nas sociedades de acolhimento e fragilizam a sua capacidade de poupança, colocan- do-os em situação de desvantagem económica."

A divisão onde residem fica no 2.º andar da construção e não tem janelas, apenas um buraco que traz o mau cheiro do espaço ao lado, usado por outros moradores para atirar lixo. "É muito ruim", desabafam. Mesmo sem as condições necessárias, eles tentam manter tudo o mais arranjado e aconchegante possível. As refeições são feitas com recurso a uma fogueira, que acaba por deixar o quarto repleto de fumo. Usam garrafões para recolher água. Já nem se lembram como é um banho quente, mas continuam com esperança para após o Natal e passagem de ano.

"Eu saio todos os dias em busca de trabalho para nós, mas só dizem que não há", pontua a imigrante. Svetlana tem experiência em colheitas, limpezas, serviços em bares e restaurantes, mas não consegue uma oportunidade. "Só queremos trabalhar", concordam.

A esperança em dias melhores é geral entre os imigrantes que conversaram com o DN. No entanto, 2024 deve começar com a desocupação do prédio onde moram, que será limpo e entaipado.

Uma das principais associações de Beja é a ESTAR, uma entidade privada e sem fins lucrativos criada para dar uma resposta rápida e sem burocracia a quem precisa de ajuda. No último ano e meio, o principal público tem sido os imigrantes "que não param de chegar", explicam Madalena Palma e Inês Féria, assistentes sociais que criaram a ESTAR.

"O nosso trabalho é para suprir as diversas falhas do sistema, repleto de burocracias. Atuamos no terreno. Trabalhar com pessoas sem-abrigo e outras necessidades não é algo que se faz das 09.00 às 17.00 horas, de segunda a sexta", começa por dizer Madalena, que conhece o prédio onde moram os migrantes e que o DN visitou.

"É realmente uma situação insalubre e de Saúde Pública, temos vários dos nossos assistidos que moram lá e trabalham, mas não conseguem pagar um quarto", explica.

A dupla citou o caso de dois jovens argelinos que trabalham o dia todo numa quinta e, no fim da tarde, passam na associação para buscar comida - que está sempre disponível no local. A alimentação é uma das respostas que a ESTAR proporciona todos dias, inclusive aos fins de semana e feriados. "As pessoas precisam comer todos os dias, não só a sopa de Natal", enfatiza Madalena.
Mas nem todas as respostas podem ser dadas, por não depender exclusivamente da associação. É o caso do banho, que os trabalhadores argelinos sempre solicitam. "Chegam exaustos e sujos no fim da tarde após uma longa jornada laboral, mas a Cáritas é a única resposta nesse sentido e é preciso marcar horário para tomar banho", revela Inês. "Ficamos com o coração apertado, é desolador. Eles agradecem e dizem que não há problema, mas é uma situação muito triste", lamenta Madalena.

A privação do banho quente é um dos muitos problemas enfrentados pelos imigrantes sem-abrigo em Beja. No entanto, este cenário pode mudar no futuro. A dupla submeteu o pedido de um fundo para construção de um balneário público em Beja, onde as pessoas poderão tomar banho todos os dias, sempre que quiserem, sem hora marcada. A experiência no terreno e o diálogo com quem precisa de ajuda baseiam as ações, que se adaptam conforme a necessidade.

No mesmo projeto submetido está a construção de cacifos para que os moradores deixem seus pertences - essencialmente os documentos. "Às vezes é tudo o que eles têm e, sem terem onde deixar, queremos criar cacifos seguros, com chave, para que guardem os itens com segurança, em vez de os levarem para o trabalho correndo o risco de os perder", argumenta Madalena.

A ESTAR atua em parceria com outras respostas, mas, atualmente, é mais buscada por outras entidades do que o contrário. "Se hoje acontecer uma operação policial que deixe 300 migrantes sem comida e com os patrões presos, como já aconteceu, nós temos [resposta]. Aqui não falta nada", comentam. Foi a associação que levou alimentos aos timorenses despejados dos locais indignos em que viviam, em agosto de 2022. "Eles estavam sem comer há muitos dias, alguns já subnutridos. Antes de comer, ajoelharam-se diante de nós, em lágrimas, para agradecer", recordam.

O segredo da resposta rápida está no trabalho, na insistência e criatividade. Por exemplo, recebem 12 mil euros mensais em alimentos de uma grande rede de supermercados, mas também já foram ao programa Preço Certo, da RTP, onde ganharam a cobiçada montra final.

Os alimentos também são recolhidos diariamente, às 22.30, num supermercado. Antes, tudo o que sobrava ou passava do prazo de validade ia para o lixo. O trabalho é realizado por uma equipa de voluntários com a carrinha que a associação ganhou. "É assim que conseguimos fazer o que fazemos. Por nos mantermos como uma entidade privada, não ficamos presas na burocracia e a coisas que não permitem dar uma resposta imediata a quem necessita. Estas pessoas não têm condição de lidar com papéis e fichas", argumenta Madalena.

Madalena e Inês dizem que, por muitos, são vistas como "as chatas", que "tocam nas feridas" e que dizem aos demais para saírem dos escritórios e irem para a rua ver a realidade. Por outros, são vistas como mães ou anjos da guarda. É o caso do jovem marroquino, Ayuub Shuhaki, de 27 anos, que estava sem-abrigo e buscou a associação. Foi há mais de um ano que bateu à porta da ESTAR, com frio e fome. A situação hoje é bem diferente, graças à ajuda que recebeu.

Na altura, foi encaminhado para o abrigo temporário da Cáritas, que tem capacidade para 30 camas e está sempre cheio. Ao conseguir um emprego, dois meses depois, teve de deixar o local, como determinam as regras. A ESTAR acolheu-o no apartamento de emergência até que conseguisse o primeiro salário para arrendar uma cama, já que é obrigatório sair do alojamento antes de receber o ordenado.

Hoje, o jovem está a aprender português e já consegue pagar um quarto individual. Todos os meses, manda dinheiro para a família em Marrocos. Depois de obter o título de residência, ao qual já deu entrada há mais de seis meses, pretende trazer a esposa para o país - o que também depende da abertura de vagas para reagrupamento familiar. O jovem tem pressa, porque a companheira precisa fazer um tratamento de saúde para poder engravidar. Ter filhos e criá-los em Portugal é um dos grandes sonhos do imigrante.

Madalena e Inês veem em Ayuub um caso de sucesso. "É mais fácil também quando a pessoa quer ser ajudada - há muitos assim. Muita gente quer fazer a vida em Portugal, mas precisam de ajuda para começar e, depois, organizam-se", comenta Inês.

Apesar de animadas e orgulhosas com a ajuda que proporcionam às pessoas, a dupla sabe que está a "enxugar gelo" no momento. "O problema é muito maior. Mesmo que Beja tivesse um enorme local com camas ainda não seria suficiente, porque as pessoas chegam todos os dias", ressalta Madalena.

Inês avalia que é preciso um trabalho a nível do Governo, porque há "muitos estrangeiros a chegar e não há resposta para todos, nem a nível de trabalho e habitação".

As assistentes sociais ouvem com frequência dos assistidos que pagam até 10 mil euros para chegar ao país e são enganadas com falsos contratos. "É nas máfias e em quem contrata as pessoas em condições precárias que está o verdadeiro problema", avaliam. No mês passado, a Polícia Judiciária (PJ) realizou uma operação no Alentejo com este foco. O mesmo havia ocorrido na mesma altura de 2022.

Depois das ações policiais, muitos imigrantes ficam sem apoio e engrossam o número de sem-abrigo na região. A Agência para a Integração, Migrações e Asilo afirmou ao DN que a responsabilidade é do Instituto da Segurança Social que, por sua vez, não respondeu às questões colocadas pelo DN.

O DN teve dificuldades em conseguir mais respostas sobre a situação dos sem-abrigo em Beja. A Cáritas recusou qualquer entrevista, declaração ou comentário. A Câmara Municipal de Beja também não quis colaborar nesta reportagem.

Vítor Picado, vereador municipal da CDU, afirma ao DN que também existe a mesma dificuldade na Assembleia Municipal em ter informações do Executivo. "A situação é dramática, estamos diante de um drama humano e não vemos nada a ser feito", critica. O político alega que a situação dos sem-abrigo é denunciada há mais de um ano. "Além de um drama humano, aquilo é uma situação de Saúde Pública", complementa.

Assim como as dirigentes da ESTAR, Vítor preocupa-se com a situação laboral e, consequentemente, de vida dos migrantes que não param de chegar. "É preciso um trabalho com estas pessoas, também um trabalho com a sociedade para que sejam integrados, mas sem respostas não é possível", avalia. Sem as respostas, os imigrantes sem-abrigo de Beja vão começar o ano de 2024 com ainda mais incerteza.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt