Frente a frente: Duas reflexões sobre o final da vida
1. Como avalia a atual situação da oferta de cuidados paliativos?
João Semedo (JS) - Não há ninguém satisfeito com a resposta. O número de camas é mínimo. Mais de metade dos doentes oncológicos enviados para os cuidados paliativos morrem antes de terem vaga. Há pouco mais de 30 equipas hospitalares, precisávamos de pouco mais de cem. Para cuidados no domicílio há cerca de vinte equipas, seriam necessárias mais ou menos 130.
Isabel Galriça Neto - Apesar de se terem vindo a aumentar recursos de cuidados paliativos (CP), a resposta atual é insuficiente. O Observatório Português de CP mostra que continuam a existir regiões - como Açores, Aveiro, Leiria - que não têm qualquer resposta. É no apoio domiciliário e nas unidades de internamento nos hospitais de agudos que existem as maiores lacunas.
2. Por que razão ainda não tiveram a prioridade que todos consideram merecer?
JS - Se todos considerassem que era prioritário não estávamos neste ponto. Enquanto deputado bati-me muito pelo seu crescimento. Sucessivos ministros da saúde ignoraram este tipo de cuidados. O Estado entregou a rede ao setor privado e particular. Transformou-se num bom negócio.
IGN - Temos uma boa lei de bases para implementar. Esta prioridade, para além de investimento político, implica uma mudança de mentalidades - nos profissionais e na sociedade - e a formação adequada. Muitos desconhecem o que são CP e os profissionais continuam maioritariamente a ser preparados para a cura. A sociedade continua a ter dificuldade em encarar a incurabilidade, em como se vive até morrer. Isso não favorece a tão necessária mudança.
3. A aposta nesta rede e num melhor controlo da dor evitaria ou dispensaria uma legislação em torno da eutanásia/suicídio assistido? E evitaria os pedidos de doentes nesse sentido?
JS - Uma boa resposta em cuidados paliativos pode diminuir o número de pessoas a recorrer à morte assistida. Mas não dispensa a despenalização porque, além das limitações próprias dos cuidados paliativos, há muita gente que não quer terminar a vida num estado vegetativo, completamente inconsciente pela intensa sedação que lhe é aplicada.
IGN - Insisto que os CP são mais que controlar a dor: são uma intervenção global no sofrimento, nas diferentes vertentes (físicas e outras), incluem o apoio à família. São um direito de todos. Não existe direito a morrer ou a ser morto, muito menos por um profissional de saúde e a eutanásia não é um tratamento médico.
4. Um eficaz controlo da dor é suficiente para dar resposta a todos os doentes ou há de facto franjas em que não é possível eliminar ou controlar convenientemente?
JS - Só por ignorância, má-fé ou interesse comercial pode afirmar-se que os cuidados paliativos são 100% eficazes. Não são, isso é publicidade enganosa, grave por ser feita por médicos. Por um lado, há situações clínicas nas quais os cuidados paliativos nem sequer são aplicáveis e, por outro, nem todos os quadros são de dor, há outras formas de sofrimento e dependência para as quais não trazem qualquer alívio.
IGN - Se se fizerem CP de qualidade, por profissionais preparados, não haverá casos de sofrimento dito intolerável - e devem ouvir quem trabalha com estes doentes. Porquê considerar mais a resposta de profissionais sem preparação para tratar, que desconhecem o muito que há para lhes oferecer? Com CP de qualidade o sofrimento não atinge níveis disruptivos. Se o argumento é de pedir eutanásia porque se tem uma doença terminal e se está em sofrimento intolerável, então existe resposta adequada. Se se pretende alargar perigosamente as razões para eutanásia e se o argumento é de exercício absoluto da autonomia, de optar por ser morto por um profissional noutras circunstâncias, independentemente de se ser doente terminal, então não faz sentido invocar a intervenção dos CP. Que se pretende afinal legislar?
5. A petição em defesa da despenalização da morte assistida tem tido uma elevada adesão. Isto dá um sinal de que de facto as pessoas querem debater este assunto?
JS - Julgo que não querem apenas debater, querem resolver os problemas, querem evitar sofrer inutilmente. Todos passámos por experiências terríveis, a morte dos avós, pais, irmãos, quantas vezes dos filhos e dos amigos. Todos já vimos o que é a dor, o sofrimento, a dependência dos momentos finais. É natural que procuremos, para nós próprios e para todos os outros que o pretendam, aguardar pela morte noutras condições.
IGN - Essa discussão tem de ser feita com serenidade, ser esclarecedora, sem eufemismos (como morte assistida, morte digna) que baralham a população. O debate não é confessional, é sobre os valores que queremos. Ninguém quer doentes em fim de vida em sofrimento intolerável, nem a terem a sua vida prolongada à custa de maior sofrimento.
6. É favorável a um referendo nesta área ou à aprovação de legislação nesta área?
JS - A grande aceitação do manifesto ou da petição e os ecos do movimento na sociedade fazem-me pensar que o referendo seria favorável à despenalização da eutanásia. Mas, por princípio, direitos individuais não se referendam e eu não troco este bom princípio por qualquer ganho. O referendo permite que uns quantos imponham a sua vontade contra todos os outros. Isto é a cultura da imposição, da intolerância, do autoritarismo. É na lei que devem estar garantidos os direitos individuais, como é o caso do direito à morte assistida.
IGN - Sou favorável a um debate ponderado, esclarecedor, que não seja precipitado por agendas políticas que não foram abertamente colocadas nas eleições. Isso exige não ter pressas e pode passar por um referendo.
7. Antes de se avançar com um debate ou referendo faz sentido criar em primeiro lugar uma rede eficaz em cuidados paliativos?
JS - Dizem isso os que não querem a despenalização da morte assistida e querem inventar um expediente para nunca mais ser oportuno. Na realidade, como são contra, preferem adiar tudo sine die, o sofrimento que continue a atormentar os nossos últimos dias de vida. Esperar por uma rede ideal - como se define isto? - era a mesma coisa que ter esperado pela alfabetização do último analfabeto para abrir a primeira universidade. Ou ter adiado a legalização do aborto até haver educação sexual em todas as escolas, como se fossem coisas antagónicas e não complementares.
IGN - É imprescindível garantir acesso alargado aos CP, o que não acontece agora. Ninguém estará interessado em precipitar mortes evitáveis. No atual contexto, implementar a eutanásia vai empurrar muitos doentes para uma pretensa solução, irreversível, que não muda a história do sofrimento, antes acaba com a vida.
8. Que leitura fazem da aplicação da legislação noutros países como a Holanda ou a Bélgica?
JS - Valorizo muito a legislação desses países que legalizaram a eutanásia e/ou o suicídio assistido porque deram forma de lei a um direito fundamental. Trata-se de um grande avanço no domínio dos direitos humanos. São uma fonte inspiradora para legislarmos bem em Portugal, corrigindo o que a experiência desses países mostrou ser necessário corrigir, para que todas as garantias estejam acauteladas e nada seja feito à revelia da vontade de cada um.
IGN - Inicialmente havia promessas e a ideia idílica de que estas leis seriam para casos raros. Os resultados em países como a Holanda e a Bélgica são claros: pessoas que são mortas sem terem pedido, muito antes de estarem no fim da vida, ou mortas por problemas graves de saúde mental. As pretensas salvaguardas e recusas de pedidos não impedem que, como na Holanda, haja uma pessoa a ser morta por eutanásia a cada duas horas (5036 casos em 2014). Casos pontuais? Realidades demasiado graves para serem ignoradas quando se tem de decidir entre tratar ou matar.