Maria de Fátima Outeirinho é docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foto: Amin Chaar / Global Imagens
Maria de Fátima Outeirinho é docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foto: Amin Chaar / Global Imagens

Fátima Outeirinho: “É estimulante quando a literatura desassossega, pois faz-nos estar despertos ao rumor do mundo”

Até 14 de maio, a Academia das Ciências de Lisboa debate a Diversidade Cultural, Desenvolvimento e Direitos Humanos. Hoje, às 18.00 horas, via Zoom, o tema é Direitos Humanos, Ontem e Hoje: Um Percurso Pela Literatura, com Maria de Fátima Outeirinho, docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
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Decorridos 75 anos após a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Academia das Ciências de Lisboa (ACL), através do Instituto de Altos Estudos, promove um ciclo de conferências de acesso livre, online, via plataforma Zoom, com vista a “promover uma reflexão ampla e abrangente sobre o tema dos Direitos Humanos”, sublinha a instituição.

Até maio deste ano, às quartas-feiras (18.00-19.00), “são interpeladas várias áreas do conhecimento como História, Filosofia, Direito, Literatura e Medicina, de modo a propiciar um diálogo enriquecedor e estimulante. Abordar-se-ão as origens históricas dos Direitos Humanos, seus fundamentos filosóficos, bases legais, expressões literárias, bem como questões emergentes de saúde e de cidadania que passam pela qualidade da Educação e da formação”, adianta a ACL.

Dando seguimento aos trabalhos, Maria de Fátima Outeirinho, docente de Estudos Franceses, da Didática e da Literatura Comparada, na Universidade do Porto, traz este fim de tarde à reflexão o tema Direitos Humanos, Ontem e Hoje: Um Percurso Pela Literatura. Sobre o título para a sua intervenção, a também Coordenadora Científica do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, adianta tratar-se de uma escolha “claramente ambiciosa”.

“A dimensão excessiva do intitulado oferece a liberdade de dar conta de um percurso que se pretende reflexivo, procurando atentar na literatura enquanto escuta do mundo e voz no mundo, apresentando-se como prática social e criativa cujo papel é concorrer para o exercício de uma cidadania comprometida com os direitos fundamentais de todos”, refere. Ponto de partida para uma breve conversa.

Recuemos até a um tempo antes da literatura. O universo fabulado é intrínseco ao ser humano. As histórias acompanham-nos desde a aurora da Humanidade, num primeiro momento na compreensão do mundo e dos seus mistérios, também na coesão das comunidades. Atualmente, que papel cabe às histórias num mundo tão exaustivamente explorado?

Vivemos com histórias, somos feitos de histórias. Ordenamos o mundo com histórias e com histórias construímos mundos alternativos. As histórias são formas de conexão com o mundo que nos rodeia, com os outros e connosco e, nesse sentido, a dimensão relacional que as histórias potenciam e de que são também o resultado, permitem-nos tomar consciência de que há sempre novos horizontes de exploração do vivente. O papel das histórias hoje é ainda o de sempre, religare.

E à literatura, que papel lhe compete no presente enquanto portadora das narrativas?

Não sei se poderemos dizer que à literatura compete um papel particular. O que posso, no entanto, afirmar é que a literatura, pela sua capacidade constante de metamorfose, é voz e, por vezes, dá voz, ou pode dar voz, a uma diversidade imensa de vozes plurais, vozes silenciadas, vozes ignoradas, vozes minoritárias ou individuais. A literatura pode ser portadora de narrativas de improváveis outros. No presente, essa valência ou, se quisermos, esse poder da literatura é um valor inestimável.

O sociólogo e crítico literário brasileiro Antonio Candido escreve na obra Direito à Literatura que “talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”. Faz ainda a comparação entre esta expressão e o equilíbrio psíquico que advém do sonho durante o sono. Nesse sentido, a literatura pode ser entendida como um escape a tensões sociais acumuladas? Ou seja, há nela uma função catártica?

Antonio Candido em Direito à Literatura  lembra que a literatura é “necessidade universal e imperiosa” e “fruí-la é um direito das pessoas de qualquer sociedade”. A literatura é, para Candido, um “bem humanizador”. Sem querer fazer juízos de valor, diria que há muitas práticas de receção da literatura, uma delas poderá ser a de “escape”. A literatura pode produzir um efeito de catarse ou, tão só, um prazer estético. De novo, e sem esgotar cenários ao nível da fruição da leitura, o que percebemos é que a literatura se apresenta como uma prática artística de múltiplos rostos e múltiplas formas de atuar sobre o leitor. E encontramos também muitos modos de apropriação da literatura pelos leitores, modos de que, à partida, nem suspeitaríamos.

A literatura forma crenças, constrói relações sociais e firma padrões. Ao longo da história também retratou temas como a pobreza e a opressão. No momento presente, a literatura está a desempenhar um papel importante, por exemplo, em questões como a inclusão e a representatividade?

Não se apostando já nas grandes narrativas, alguma literatura dos nossos dias parece, de facto, atentar na necessidade de tornar visível, de fazer lembrados grupos, comunidades injustiçadas, discriminadas, menorizadas. Também nesta dimensão, a literatura mostra-se como presença atuante no mundo, presença não-negligenciável.

“A literatura desconcerta, incomoda, confunde, desorienta mais do que os discursos filosófico, sociológico ou psicológico, porque apela às emoções e empatia.” A frase é de Antoine Compagnon, professor, romancista e crítico literário. Desconcertar, incomodar e confundir apelam a um certo desconforto. A literatura tem, sempre, de incomodar?

A literatura não tem sempre de incomodar. Preferiria usar antes o termo desassossegar. Contudo, quando a literatura nos desassossega, ela age, de algum modo, em nós; ela faz caminho para modos outros de pensar a própria literatura, modos de pensar o mundo. Por isso, sim, do meu ponto de vista, é estimulante quando a literatura desassossega, pois faz-nos estar despertos ao rumor do mundo.

Ainda decorrente da citação anterior: que mecanismo explica que, ao lermos uma obra ficcionada, possamos aumentar a empatia pelo próximo?

Ao lermos uma obra, a experiência de leitura é muito mais do que o nosso contacto com uma manifestação do sistema formal da língua. Ler é conhecer universos outros, figuras humanas outras, é experimentar emoções que, eventualmente, pensaríamos arredadas de nós. Experimentar múltiplas declinações do humano pode gerar empatia.

De que forma a força humanizadora da literatura pode dar resposta aos desafios de um mundo perigoso e feito de clivagens?

Não sei se a literatura dá resposta ou tem de dar resposta aos desafios de um mundo perigoso e feito de clivagens. Utopias e distopias atravessam a história da literatura mundial. Não se constituem em si como respostas. A literatura é forma, tantas vezes singular de conhecimento do mundo, e, nesse sentido poderá funcionar como alerta ou estímulo promotor de mudança.

Presentemente, falamos em literatura empenhada ou, se quisermos, literatura comprometida, por oposição a uma literatura tida como de entretenimento. A literatura é expressão do escritor/a. Nesse sentido é seu papel promover a mudança social ou provocar a reflexão crítica sobre problemas sociais?

Presentemente falamos de novas formas de empenhamento, já não num quadro ideológico, mas numa atenção ao outro. Diria que uma preocupação ética atravessa alguma literatura contemporânea. Neste quadro, a literatura pode promover um pensamento crítico e, de forma, dificilmente mensurável, promover igualmente mudanças sociais.

Num mundo dominado pela tecnologia e pelos meios digitais, não faltam vozes temerosas face à perda de influência da literatura como meio de conhecimento do que nos rodeia. Concorda com esta aproximação ao tema face, uma vez mais, à expressão que usa para dar significado à sua conferência: “Literatura enquanto escuta do mundo e voz no mundo”?

Quando atentamos na literatura no fio do tempo, percebemos que a literatura é, uma e outra vez, fénix sempre renascida. Os desenvolvimentos tecnológicos, a viragem digital que conhecemos tem sido ocasião, e creio que continuará a ser, para novas propostas criativas que convivem com uma prática, digamos por facilidade, mais analógica que não esmoreceu. Não sou propensa a um discurso declinista.

ID Reunião: 93023760525

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