Farid mora em Portugal desde 2012, fala português e representa o país nas competições desportivas.
Farid mora em Portugal desde 2012, fala português e representa o país nas competições desportivas.Rita Chantre / Global Imagens

Farid Walizadeh: “Os refugiados e imigrantes estão aqui para uma segunda chance na vida”

Num evento realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o pugilista refugiado afegão que compete por Portugal fala ao DN sobre a sua trajetória, o pré-olímpico e a integração na sociedade portuguesa.
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Refugiado do Afeganistão, Farid Walizadeh passou por Paquistão, Irão e Turquia até chegar a Portugal em 2012. Aprendeu o idioma de cada país por onde passou e em Portugal, onde encontrou a paixão pelo boxe, não foi diferente. Representante de Portugal em diversos torneios da modalidade, Farid quase conseguiu realizar o sonho de se classificar para os Jogos Olímpicos de Paris 2024. 

Em ótimo português, Farid falou ao DN após a participação num evento do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR, em Cascais, no âmbito do Dia Internacional do Refugiado no último dia 20. Contou sobre sua trajetória, a integração na sociedade portuguesa e a realidade dos refugiados e imigrantes em Portugal: “Estamos aqui para uma segunda chance na vida.” 

Como veio parar em Portugal?
Foi uma jornada de sobrevivência. Quando saí do Afeganistão, passei pelo Paquistão, Irão e depois Turquia. Tentei várias vezes atravessar para a Grécia, muitas pessoas que estavam comigo não conseguiram sobreviver. Tenho pesadelos com essa travessia até hoje. Depois estive na Turquia alguns anos, até que chegou uma carta do Centro de Acolhimento para Refugiados - CPR. Naquela altura, os refugiados que eram menores de idade, estavam a ser realocados em diferentes países do mundo e em dezembro de 2012, me falaram:“ Você tem duas opções, Utah, nos Estado Unidos ou Portugal. Já tinha convivido com muitos americanos durante a guerra, os Estados Unidos até hoje me remetem a essa memória de guerra. De Portugal, não conhecia nada. Escolhi vir para cá. 

Tinha 15 anos quando veio para Portugal. Já lutava na Turquia? Como começou sua trajetória no desporto?
Comecei lá, no taekwondo, quando tinha 10 ou 11 anos. Eu na verdade gostava muito dos filmes do Jackie Chan, aquilo me chamava muita atenção, a adrenalina da luta e das fugas nos filmes e comecei a me motivar. Nessa época eu não pensava em competir ou em virar um atleta profissional. A luta para mim era mais uma maneira de conseguir lidar com a raiva, a frustração e com todos os traumas do meu passado.

Uma espécie de terapia?
Exatamente, era uma terapia. E segue sendo até hoje, foi por isso que eu entrei no desporto. Apesar de todo meu passado, eu não vou ao psicólogo, mas encontrei na luta um espaço para trabalhar a minha cabeça. Me ajuda muito.

Quando mudou do taekwondo para o boxe?
Em Portugal, fala-se muito pouco do taekwondo, não consegui encontrar nenhum lugar para treinar, nenhuma pessoa que treinasse. Mas depois, quando estava no centro de acolhimento de refugiados, me indicaram o boxe caso eu quisesse fazer alguma luta. Foi no ginásio de Arroios que entrei pela primeira vez no ringue. 

Como foram seus primeiros passos em Portugal? Na época que começou o boxe, estava também a estudar? 
Imigrar para mim, não foi uma escolha e sim uma necessidade para sobreviver. Graças a Deus, pude chegar a Portugal, onde fui muito bem acolhido e, hoje, sinto-me em parte português. Quando saio do país para competir, sinto saudades de Lisboa, do meu cafézinho. Quando cheguei aqui, fui para o ensino básico na Escola de Olaias, quando conheci o boxe, e depois fui fazer o secundário na António Arroio. Gosto de dizer isso, estudei Design de Produto lá para poder depois seguir na arquitetura, um sonho meu de criança. E lembro com carinho dessa altura. É um espetáculo de escola, gostaria muito de voltar para esse tempo: o que aprendes lá, não aprendes na faculdade.

Foi logo depois para a faculdade?
Fiquei ainda alguns anos a juntar dinheiro. Não tinha como pagar os estudos na universidade. Trabalhei dia e noite, em vários serviços diferentes, para poder finalmente me inscrever na faculdade de arquitetura. Estou agora no terceiro ano, mas tive que parar por causa dos Jogos Olímpicos.

Por falar em Jogos Olímpicos, como foi a preparação? Vai conseguir disputar a competição por Portugal?
Eu fui para a qualificação na Tailândia, tinham três vagas. Diferentemente de outros desportos, como atletismo ou natação, no boxe a qualificação é continental e não por país. Antes dessa qualificação, quatro pessoas tinham sido selecionadas em toda Europa, não é como a natação que cada país manda três atletas. Não consegui entrar porque estava na equipe dos refugiados, fui aos Jogos Europeus sem treinador, sem ninguém. Agora na Tailândia, venci a primeira disputa contra o Canadá, mas perdi contra a Alemanha. Para piorar, voltei com o ombro lesionado e tenho que fazer uma cirurgia. O sonho fica para Los Angeles em 2028.

Você está em Portugal desde 2012 e disse que veio para cá justamente por ficar distante de um cenário bélico. Neste ano já houveram discussões parlamentares sobre temas como o regresso do Serviço Militar Obrigatório (SMO). O discurso sobre a imigração também está cada vez mais inflamado. Como vê o atual momento político do país? 
Não sabia (sobre a volta do SMO), mas sobre a imigração, eu acho triste. Não tenho outra coisa que posso dizer, porque eu não sou político, mas nenhum refugiado ou imigrante vem cá para ocupar o país, em primeiro lugar porque nem conseguiria fazer isso. Nós estamos aqui para encontrar uma segunda chance de vida. E hoje em dia sinto-me português, eu represento Portugal nos campeonatos. Fechar as portas para imigrantes seria muito complicado, imagina todas as pessoas que trabalham no campo… o que está na barriga das pessoas não vêm do ar, vêm da agricultura. E quem trabalha na agricultura são refugiados e imigrantes em busca de uma segunda oportunidade. Esse discurso não fica bem para o povo português, que tem uma história de globalização, foram colonizar outros países. Então fechar as portas é triste, não fica bem, não é simpático e não faz sentido. Mas não sou político, é só a minha opinião.

nuno.tibirica@dn.pt

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