Nas décadas de 40 a 60, o jornalista norte-americano Bosley Crowther entregou às páginas do jornal The New York Times as suas críticas cinematográficas. Crowther promoveu a carreira de inúmeros realizadores e atores e afirmou-se um defensor do cinema europeu em terras americanas. A realizadores como Roberto Rossellini, Ingmar Bergman e Federico Fellini abriram-se-lhes as portas dos Estados Unidos pela mão do jornalista americano. Bosley Crowther era, contudo, um crítico destrutivo quando filmes, realizadores e elenco não lhe conquistavam os afetos. Zoltan Korda, realizador húngaro emigrado para os Estados Unidos, foi um destes casos..Em 1942, Korda adaptou à Sétima Arte uma obra literária nascida nos idos do século XIX da inventiva de um escritor britânico. O Livro da Selva (The Jungle Book no original), de 1894, antes publicado em fascículos, acolhia nas suas páginas sete contos maioritariamente ambientados na Índia e em parte inspirados no folclore daquele país asiático. Rudyard Kipling, o autor nascido em Bombaim em 1865, urdiu as suas narrativas em torno de personagens como Mogli, Baguera e Baloo, num livro que era metáfora para temas como o abandono e a liberdade. Korda encontrou nas páginas d’O Livro da Selva matéria para uma película abundante de exotismo e espetáculo. Bosley Crowther abominou o filme: “Usou [Zoltan Korda] um zoológico inteiro para obter alguns efeitos notáveis e inúmeras criaturas selvagens ágeis como nunca exibido em película. Contudo, não montou um filme sólido. É principalmente um espetáculo. Face à prestação dos animais, os atores humanos apresentaram-se bastante mal”, escreveu nas páginas do The New York Times. Em direção oposta à crítica de Bosley apontaram as bilheteiras nos Estados Unidos e na Europa. O filme foi um sucesso financeiro e de audiências. França, Canadá e União Soviética renderam-se à prestação de atores como a estrela indiana Sabu e a norte-americana Rosemary De Camp. Longe do grande ecrã, um punhado de personagens de uma das obras maiores de Kipling habitam desde o século XIX no aconchego das páginas do livro. Kotick, uma rara foca branca, é um destes exemplos de discreta existência na literatura britânica. O quarto conto d’O Livro da Selva convida o leitor a deixar solo indiano e a viajar até paisagens setentrionais. Em The White Seal (A Foca Branca), Rudyard Kipling situa-nos no mar de Bering, entre o Alasca e a Sibéria, para nos narrar a epopeia de Kotick e do seu clã na demanda de uma nova casa. A caça à foca por parte dos europeus alastrava-se inexorável, e Kipling teceu um conto atento a este facto..Nas suas deambulações, Kotick acercou-se de um animal já então mítico, vítima da caça desenfreada a norte. No final do século XVIII fora capturado o último espécime daquela que popularmente é conhecida como a vaca-marinha-de-steller. Para a ciência, este animal, da família do dugongo e do manatim, é classificado como Hydrodamalis gigas, um corpulento mamífero marinho do mar de Bering, de corpo maciço, alongando-se oito metros, 11 toneladas de peso e com um imenso coração de 16 kg. A lentidão deste herbívoro, a suculência da sua carne, o leite apto ao consumo humano e a gordura como fonte de energia talharam-lhe o destino. No início do século XIX, da vaca-marinha-de-steller não restavam senão ossos na paisagem. O primeiro esqueleto completo seria encontrado em 1855. Também ficara a história do homem que primeiro descreveu esta espécie para a ciência, o zoólogo, naturalista e explorador alemão Georg Steller. É longo o rol de espécies atualmente batizadas com o nome deste homem da ciência, nascido em 1709. Ao êider-de-steller (uma ave) e ao leão-marinho-de-steller, entre outros exemplares, junta-se o símia marina. Por décadas esta espécie viu-se identificada em diferentes compêndios de ciência. Em 1741, Georg Steller abandonou brevemente as suas observações e descrições rigorosas para se entregar a uma fantasia. A 10 de agosto do referido ano, ao pôr do sol, asseverou ter observado as brincadeiras de um macaco-marinho. Mais tarde, descrevê-lo-ia com pormenor no seu diário vertido no livro Journal of a Voyage with the Bering, 1741-1743 (Diário de Uma Viagem com Bering, 1741-1743), obra publicada postumamente pelo zoólogo prussiano Peter Simon Pallas. O naturalista participava na viagem épica do dinamarquês Vitus Bering, ao serviço do Império Russo. Aquele que ficaria conhecido como o “Colombo dos czares” lançou-se a bordo do navio São Pedro numa empresa de 10 anos, que, entre outros marcos, cartografou pela primeira vez a costa do Alasca e muitas das ilhas do arquipélago das Aleutas. A mesma viagem que transformou em memória futura a existência da vaca-marinha entregou às fábulas do mar o macaco-marinho-de-steller, avistado, nas palavras do naturalista, ao largo das ilhas Shumagin, no Alasca. A criatura, assim descrita por Steller, contava com 1,5 metros de comprimento, cenho de cão, desprovida de membros e dona de barbatanas caudais semelhantes às de um tubarão. Um espécime que desafiava o que a ciência entendia como anatómica e fisiologicamente plausível..Em décadas posteriores, o macaco-do-mar-de-steller foi alvo de várias tentativas de identificação da espécie. Em 1792, o naturalista alemão Johann Julius Walbaum acompanhou a descrição do Siren cynocephala de uma ilustração. Por sua vez, o livro Historia Animalium (a obra incluía a descrição de um unicórnio), de Conrad Gressner, detalhava o símia marina, assim classificado pelo naturalista suíço. No dealbar do século XIX, em 1800, o zoólogo inglês George Shaw apresentava à comunidade científica o Trichechus hydropithecus. Oitenta e oito anos volvidos, em 1882, Joel Asaph Allen, zoologista dos Estados Unidos, olhou para a produção científica em torno do macaco-marinho-de-steller e viu-a como um “conglomerado inútil” de espécies listadas sem justificação. O avistamento por parte do naturalista, falecido em 1746, não passaria de um lobo-marinho-do-norte, espécie comum nas latitudes do mar de Bering. Em 1936, o zoólogo norueguês Leonhard Stejneger notou que o lobo-marinho apresenta um comportamento brincalhão e desloca-se com a nadadeira dianteira dobrada para dentro. O macaco-marinho juntava-se ao bestiário que arrola há milénios criaturas inusitadas sob as águas oceânicas..A existência do símia marina hibernou até à década de 60. Em 1965, o casal Miles e Beryl Smeeton, canadianos, marinheiros e exploradores oceânicos, empreenderam um périplo que os levou do Japão à Irlanda. No livro que resume a viagem, Misty Island, a dupla relata um encontro fortuito, de 10 a 15 segundos, nas águas ao largo do Alasca. A criatura, com perto de 1,5 metros de comprimento e pelo amarelo-avermelhado, movia-se com ligeireza. A dupla afirmava um novo encontro com o “extinto” macaco-marinho-de-steller..Entre as mitificações marinhas sobre a existência de um espécime nunca encontrado e as evidências de um animal levado à extinção, a vaca-marinha, há em comum um mesmo homem: Georg Steller. Sobre o desaparecimento da vaca-marinha deteve-se o escritor alemão W. G. Sebald no livro de 1995 Nach der Natur (Do Natural). Nele “vive” o explorador Georg Steller e Vitus Bering e uma maré crescente e decrescente de nascimento e devastação.