Os casos relatados ao DN sobre excesso de horas de trabalho, realizadas por internos da especialidade de Medicina Interna e até por alunos do sexto ano que estão a estagiar nos respetivos serviços da especialidade no Hospital de Santa Maria, apanhou de surpresa o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Os relatos que chegaram ao DN, por parte de quem ali trabalha, referiam o aproveitamento dos internos para “tapar buracos” nas escalas médicas, o que os sobrecarregava sobretudo com trabalho nas urgências, e dos próprios alunos do sexto para apoiarem o trabalho nas enfermarias. “Os alunos são escravizados”, disseram-nos. “Muitas vezes trabalham das 8.00 às 19.00 [horas]” e “sem tempo para comer”, o que “está a comprometer”. .O Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde Santa Maria respondeu ao DN “não ter conhecimento da situação” e que “não há queixas nem exposições formais”. O diretor da FMUL, João Eurico da Fonseca, garantiu o mesmo ontem. “Assim que tive conhecimento da notícia, contactei todas as entidades que poderiam ter algum feedback sobre a situação - Associação de Estudantes, Comissão de Alunos do sexto ano, Conselho Pedagógico - para saber se havia algum tipo de manifestação, e não encontrei qualquer evidência de que o hospital estivesse a colocar os alunos na situação de terem de estar nos serviços das 08.00 às 19.00.” .O professor assume: “A informação surpreendeu-me muito, mas não digo que não seja uma preocupação. Porque se está a acontecer é inaceitável e a faculdade tem a responsabilidade de a resolver imediatamente.” Até porque, explica João Eurico da Fonseca, “não é assim que vamos resolver os problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não é assim que vamos proteger os doentes e não é assim que vamos ensinar melhor os alunos.”.O diretor da FMUL destaca ao DN que “há alunos nos serviços de Medicina Interna de Santa Maria e de outros hospitais, e que a pressão que hoje é sentida na especialidade é uma preocupação”, mas “há regras para os estágios dos alunos, que pressupõem que só estejam nos serviços durante a manhã, e por vários motivos. Em primeiro lugar, porque não ganham muito mais ficando mais tempo em trabalho nas enfermarias; depois porque estão numa fase de formação que, para além da parte prática, precisam de ter outras componentes de ensino mais organizadas, bem como tempo para o estudo que têm de fazer para a seriação nacional.” Ou seja, “a definição destes estágios não é, de maneira nenhuma, para ser a tempo completo. Portanto, para mim, foi muito surpreendente esta notícia.”.Ao DN, o delegado da Federação Nacional dos Médicos (Fnam) confirmou o excesso de trabalho dos internos e dos próprios formadores, e diz que esta situação não é exclusiva de Santa Maria. “É um problema sistémico do SNS.” Outras fontes hospitalares confirmam a situação dos alunos, argumentando: “Nunca imaginámos que a falta de médicos estivesse a ter esta repercussão”, nomeadamente “na formação dos alunos.” O bastonário dos médicos assumiu que a preocupação sobre a crise na especialidade de Medicina Interna levou à criação de um grupo de trabalho para fazer um levantamento das dificuldades e serem encontradas soluções.” .A pressão na Medicina Interna não é uma surpresa para o diretor da FMUL. “É um problema transversal no SNS, porque é uma especialidade fundamental e esta questão tem de ser abordada pelo SNS, para o bem de todos nós.”. Mas à pergunta sobre se é normal os alunos, e até mesmo os internos, não apresentarem queixas formais sob pena de poderem sofrer consequências, João Eurico da Fonseca diz que “não é”. No que toca aos alunos, “o ambiente que se vive na faculdade é extremamente aberto e muito próximo das comissões de curso e da associação de estudantes. Seria absolutamente normal que uma queixa chegasse à faculdade. E a existir os alunos devem reportar.” .Falta de internistas pode levar daqui a uns anos ao fecho de urgências gerais.O presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI), Luís Duarte Costa, não quer comentar especificamente o caso de Santa Maria, mas diz: “A notícia não me surpreende. Na SPMI temos tido várias queixas, mas temos de ter a certeza absoluta do que se está a falar.”. No que toca à Medicina Interna (MI), a verdade é que, nos últimos dez anos, “a sua área de influência nos hospitais aumentou” e o “número de internistas diminuiu”. E explica: “Há áreas de maior especificidade, como medicina cardíaca, medicina domiciliária ou paliativa, em que os internistas têm vindo a assumir, até para garantir melhores cuidados aos doentes, e o que deveria ter acontecido era o número de médicos ter aumentado - precisamos mais hoje de internistas do que há dez anos -, mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. Sobretudo, nos últimos dois anos, em que temos vindo a perder muitos internistas”..Luís Duarte Costa explica ainda que a sobrecarga de trabalho com a covid-19 levou também a que menos internos escolhessem a especialidade. E há várias razões, sobretudo “as condições de trabalho e a sobrecarga de horas nas urgências”, uma sobrecarga que para o médico tem a ver com á duas situações..Por um lado, “porque metade dos doentes que acorrem à urgência não o deveriam fazer, a outra porque a certa altura muitas outras especialidades deixaram de fazer urgência, só fazem urgência referenciada”. Isto criou um ambiente que classifica como “a tempestade perfeita”. “Os internistas têm mais trabalho a nível hospitalar, mais áreas a que responder, porque achamos ser importante, e mais carga de trabalho nas urgências, o que piora um pouco todos os anos na altura das férias”, acrescentando: “Por isso temos menos internos”..O representante da especialidade refere que a realidade de hoje tem levado ao pedido de audiências com quem tutela a Saúde, mas até agora sem resultados. “Temos vindo a pedir audiências a todos os ministros nos últimos cinco anos para explicar que é fundamental mudar-se o modelo de gestão hospitalar, embora seja preciso coragem politica para o fazer”, porque o problema não está na urgência, mas “no antes e no depois da urgência”..Luís Duarte Costa defende ainda que “a falta de internistas não se resolve com a criação de uma nova especialidade” e que a SPMI tem soluções para apresentar para a resolução deste problema..Agora, com esta ministra, “há uma nota positiva”. “A senhora ministra leu o documento que a sociedade elaborou e quer falar connosco, aguardamos uma reunião para setembro”, afirma, deixando um alerta: “Os médicos internistas não conseguem aguentar hoje a sobrecarga de trabalho que tem na urgência. Se nada for feito hoje, daqui a uns anos em vez de estarmos a falar das urgências de obstetrícia estaremos a falar do encerramento de urgências gerais”..Temos perdido muitos internistas. E depois da Covid-19, há menos internos.” A razão está nas condições de trabalho e na sobrecarga de trabalho nas urgências e “se nada for feito hoje, daqui a uns anos, estamos a fechar urgências gerais.” O presidente da SPMI aguarda uma reunião com a ministra da Saúde para expor o problema e apresentar soluções. .anamafaldainacio@dn.pt