Existem 931 mil animais na rua. 40 mil são recolhidos por ano
“Infelizmente, ainda se nota um grande número de abandono”, avalia Sofia Baptista, veterinária e chefe de divisão da Casa dos Animais de Lisboa, o Centro de Recolha Oficial de Animais (CRO), da capital portuguesa. “Muitos dos casos de tentativa de abandono, ou mesmo de abandono, são por dificuldades económicas. Acontece quando os tutores ficam em situação de vulnerabilidade económica, despejos e nos casos de internamentos compulsivos”, afiança esta responsável.
A crise parece, mesmo, estar a atirar cada vez mais animais para a rua. “De há cinco anos para cá temos tido picos de abandono, que decorrem da crise económica e da crise imobiliária. Tem sido uma coisa brutal”, avalia, por sua vez, Margarida Saldanha, responsável pelo abrigo da União Zoófila, também na capital.
Além destas questões, há outras, que se prendem com a personalidade de alguns tutores. É esta a opinião de Margarida Saldanha. “Quem abandona também são pessoas que têm uma crise de valores tremenda. Que não têm qualquer tipo de afeto pelo ser vivo, que deu jeito ter, eventualmente, para suprir uma carência afetiva. Ou porque era engraçado, ou porque era um bebé, ou porque foi uma vontade espontânea de adotar mas sem ter sido ponderada”, avalia esta responsável da União Zoófila.
No abrigo desta instituição podem ser encontrados cerca de 400 cães e 160 gatos. “No caso dos gatos, há pessoas que os vão deixar em colónias, mas isso é atirá-los para a morte. As pessoas pensam que os felinos, por o serem, se safam sozinhos. Não safam. Um animal que está habituado a estar em casa, quando é largado fica à mercê de tudo. Da maldade humana, porque está habituado ao ser humano e vai aproximar-se de outros humanos, cuja maldade pode ser infinita; está sujeito a ser atropelado; está sujeito a ser atacado por outros animais. Nas colónias, por exemplo, os gatos que lá estão são muito territoriais, o que é natural, e vão atacar. Deixar ali um gato doméstico vai fazer descambar a dinâmica da colónia mas, como a facilidade de colocar lá outros animais é grande, isso faz-se ao desbarato”.
Os números mostram a dimensão do problema. O Censo Nacional de Animais Errantes 2023 , elaborado pela Universidade de Aveiro e pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) conclui que há mais de 930 000 animais pelas ruas do país. Já o Relatório Anual de Atividade dos Centros de Recolha Oficial 2022, elaborado pelo ICNF, reporta que foram recolhidos 41 994 animais, em todo o país. Houve um decréscimo face a 2021, quando foram retirados das ruas 43 603 cães e gatos. No entanto, os número têm vindo a crescer desde 2018 e o relatório do ICNF dá conta de um aumento de recolhas de animais de 17,52%, entre estas datas. “Embora essa tendência possa sugerir que o número de animais abandonados continua a crescer, deve-se considerar que este aumento pode ser consequência do aumento da capacidade de resposta dos municípios, nomeadamente devido ao aumento no número de CRO ou do número de lugares nesses centros, o que naturalmente resulta no aumento da captura de animais errantes”, explica o relatório.
Abandonar animais é crime, punido com pena de prisão até seis meses. Para Sofia Baptista, da Casa dos Animais de Lisboa, “há sempre soluções, só não há solução para a morte”. A veterinária avisa: “Quando se adota um animal é preciso ter a noção da responsabilidade, de que é para a vida. O tutor tem de ter ideia das suas responsabilidades, que não passam só por dar comida ao animal, mas também dar-lhe bem-estar, passeá-lo e ir ao médico sempre que o animal precisar”.
Mesmo perante uma situação de crise, há ajudas. “Muitas vezes temos sentido que há pessoas que ficam em situação de vulnerabilidade económica e que não têm condições de continuar com os seus animais, mas que gostariam de fazê-lo. Para prevenir o abandono, e sobretudo permitir que os animais continuem a ter um lar mais feliz, temos dois programas: um deles é através do protocolo com a Ordem dos Médicos Veterinários, que é o cheque-veterinário”.
Para obter este cheque, o tutor, com carência económica, deve fazer o pedido num CRO. No caso de Lisboa, acrescenta Sofia Baptista, “basta dirigir um email à Casa dos Animais de Lisboa. É pedido o comprovativo dessa carência económica e emitido o cheque veterinário. Depois, o tutor escolhe a clínica - dentro das que são aderentes ao programa - e pode levar o seu animal para tratamentos, vacinações, desparasitações, cirurgias e esterilizações, sem qualquer custo”.
Além disto, o CRO de Lisboa tem um programa conjunto com a associação Animalife. “A Animalife vai ao domicílio, ou a um local específico, como a junta de freguesia, e faz o atendimento ao tutor. Percebe o que é que o agregado familiar precisa e pode dispensar alimentação e produtos de higiene. Além disso, também faz consultas e esterilizações”, avança Sofia Baptista. “É importante que os animais sejam esterilizados exatamente para que consigamos ter um controlo populacional adequado e evitarmos o abandono”, enfatiza.
O balanço destes dois programas do CRO de Lisboa é positivo. “Temos ajudado pessoas que ficam mais fortes, que conseguem manter os seus animais, nunca os abandonando”. Ainda assim, só nos primeiro semestre deste ano, deram entrada na Casa dos Animais de Lisboa 155 cães e 166 gatos. “Os números não variam muito, de ano para ano”, diz Sofia Baptista.
Mas enquanto há quem abandone, há outros tutores que chegam a “humanizar demasiado os animais”, avalia Pedro Serra, dono da creche canina Tails by Petmais, em Lisboa. Aqui convivem cães, de todas as raças, em ambiente de diversão e algum treino, todos os dias. “Há cães que vêm todos os dias, outros vêm uma ou duas vezes por semana. Depende do que o tutor quiser. Um cão que venha cinco vezes por semana paga 320 euros por mês”, avança Pedro Serra.
“Quem põe o cão na creche é aquela pessoa que gosta mesmo muito de animais. E são, sobretudo, tutores que trabalham e têm consciência que o seu animal precisa de estar ativo e ter companhia”.
Por aqui não faltam brincadeiras. “Usamos coisas do dia a dia. Por exemplo, reciclamos garrafas de plástico, que enchemos de pequenos biscoitos. Fazemos um buraco na garrafa e atiramos. Eles vão atrás das garrafas e vão comendo as guloseimas”, exemplifica Pedro Serra.
Nem sequer faltam festas de aniversário caninas. “Esta semana temos uma. O tutor vem à festa e, quando há tempo, cantamos os parabéns. Só que a maior parte das vezes não há tempo porque eles assim que vêem o ‘bolo’ de aniversário, querem é comer. O bolo é feito de carne, vegetais, é apropriado para eles”.