Eurico Castro Alves. “Se eu pudesse, a hora extra teria imposto mais baixo para incentivar os médicos”
O Governo apresentou o Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS) na semana passada e deste constam 54 medidas, algumas para tentar incentivar os profissionais a fazer mais trabalho extraordinário, além das 150 horas previstas na lei, mas mais bem pago. Quer seja através de medidas que permitam fazer trabalho de prestação serviço nos hospitais em que estão no quadro quer através de outros incentivos.
Nesta conversa com o DN, Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde, médico especialista em cirurgia geral, da Unidade Local de Saúde de Santo António e coordenador da equipa do PETS, diz acreditar que algo vai ser possível mudar e que “há muita vontade de ir ao encontro do que querem os profissionais”, mas que tem de haver um sentido de responsabilidade e de equilíbrios.
Por agora, esclarece que apesar de já terem sido lançadas algumas medidas, como a da Linha SOS Grávida - que irá referenciar as mulheres que precisam de ser atendidas para um local junto da sua área, sem terem de ir à página do SNS, na internet, ver qual é o serviço que está aberto -, o verão são os meses de julho, agosto e setembro e o plano com as soluções para os constrangimentos que existirem neste período ainda está a ser feito em conjunto com as ULS. “Não haverá milagres, nem falsas expectativas, queremos encontrar soluções justas”, frisa.
Foi anunciado o reforço da linha SNS24 e a criação do SOS Grávida para o verão, mas não há outras medidas?
Há medidas que já foram anunciadas, há um conjunto de outras que estão pensadas e mais duas ou três que ainda não estão aprovadas, mas que pensamos que podem ultrapassar as dificuldades que já são conhecidas durante o verão, como a falta de recursos humanos. É isso que estamos a ver se é possível. Queremos facilitar as condições de trabalho aos médicos, e uma das medidas é ver se os que têm vinculação podem trabalhar mais nos próprios hospitais.
É a medida que permitirá aos médicos trabalhar como prestadores de serviço nas suas unidades?
Essa é a nossa vontade. Estamos a ver se conseguimos encontrar um enquadramento legal que nos permita fazer isso a tempo de se ultrapassar as necessidades de recursos no período de verão. Outra das medidas anunciadas foi o aumento do valor hora para os médicos na prestação de serviços, mas queremos dar atenção aos do quadro e, assim, estamos a ver se encontramos um equilíbrio nas medidas e se conseguimos contar com todos.
Mas o facto de poderem trabalhar como prestadores de serviço significa “mais trabalho”, o que têm vindo a dizer que não querem...
De uma coisa podem ter a certeza, é que estamos a tentar encontrar soluções que vão ao encontro do conforto de todas as pessoas, profissionais de saúde e utentes. Queremos encontrar soluções justas que se apliquem a todos, quer sejam médicos ou enfermeiros - será para todas as equipas, dentro do sentido de responsabilidade que temos de ter e de um principio que é fundamental, o princípio da comportabilidade. Se pudéssemos dávamos o máximo a todos, mas temos de pensar se temos orçamento que aguente tomar-se esta ou aquela medida. Como disse, há uma grande vontade de ir ao encontro do que querem os profissionais, mas temos a responsabilidade de manter equilíbrios. Agora, há algumas injustiças que têm de ser rapidamente resolvidas.
Que injustiças?
Alguns pagamentos que têm de ser revistos. Se eu pudesse, e esta é uma opinião pessoal que assumo publicamente, a hora extraordinária seria sujeita a um imposto menor do que aquele que é. Seria uma das formas para incentivar os médicos a fazerem mais horas extras do que as 150 que estão previstas na lei. O trabalho extraordinário é custoso e é penoso para o profissional e o Estado deveria ter algum respeito por esse esforço.
Mas a medida está em cima da mesa ou a ser estudada?
Está a ser estudado, não sabemos se é possível. Há muitos condicionamentos legais. Além de que seria uma medida que teria de passar por sede do Orçamento do Estado. Que fique claro, é uma opinião minha e não uma promessa. E só a posso dar porque sou coordenador do Plano de Emergência.
Além do que já foi anunciado este ano haverá o anúncio de um plano individualizado e estratégico para o verão, que mostre que regiões vão ser reforçadas e como?
Temos um plano estratégico para o verão que está ainda a ser preparado com as Unidades Locais de Saúde (ULS). Neste momento, estamos ainda a fazer um levantamento com as ULS para identificarmos um conjunto de situações que possam causar constrangimentos aos utentes. Quando estes estiverem identificados avançaremos com um conjunto de medidas que irão tentar minorar, ou mesmo anular, esses constrangimentos. É este plano que está em curso e, devo dizer-lhe, que não carece de ser apresentado, tem é de ser implementado. Sabemos que vamos ter um conjunto de dificuldades e estamos a preparar-nos para as resolver, tentando até envolver os profissionais de saúde que são o factor mais importante de todo este processo. Portanto, o importante para nós é quando surgirem as dificuldades termos a solução.
Neste momento, já sabem quais são os constrangimentos, pelo menos alguns. Já há serviços de urgência a ter de encerrar por falta de médicos....
Sabemos que a falta de profissionais, em algumas áreas, é crítica quando chegamos a esta altura e é para aí que estamos a focar a nossa atenção. Sabemos que o Algarve é um problema difícil, mas estamos a olhar para todos os constrangimentos e a tentar antecipar soluções.
Mas o verão é já amanhã...
Para nós o verão é o período em que a maior parte das pessoas entra de férias e em que não há possibilidade de substituir médicos nem enfermeiros. O que temos no verão é um excesso de procura e, ao mesmo tempo, um défice de oferta de recursos humanos nos serviços. O que estamos a fazer, neste momento, é o levantamento dos recursos humanos pedindo aos hospitais que nos digam qual a cobertura que podem garantir nos meses de julho, agosto e setembro. Onde houver coberturas deficitárias arranjaremos soluções. E já estamos a fazer isto para o inverno, para antecipar o problema da falta de camas de internamento. No inverno já temos recursos, mas o problema é que a procura aumenta muito mais e já estamos a intervir para resolver o problema antes de as pessoas irem à urgência. Para já, vamos tentar retirar os casos sociais dos hospitais para quando chegarmos ao inverno, termos uma resposta mais adequada em número de camas. E vamos também avançar com um programa de vacinação para o vírus sincicial com uma dose dupla para os maiores de 85 anos, que são as grandes vítimas da gripe e maioritariamente os doentes nos internamentos hospitalares - com esta vacinação estima-se que haja menos 77% de internamentos e de idas à urgência.
E em relação aos serviços de urgência que começam a encerrar?
Em primeiro lugar devo dizer que não há encerramentos, há turnos que passam uns para os outros. E queremos otimizar os recursos para evitar isso, mas não vai haver milagres nem queremos que haja falsas expectativas. Sabemos que há escassez de recursos e que temos de os gerir com a maior sabedoria possível e com o maior respeito pelos profissionais. Vamos tentar evitar a rotação nos turnos, mas o mais importante é que nunca falte a assistência médica, em qualquer área, a quem precisar. Portanto, se o utente for atendido cinco quilómetros à esquerda ou à direita, não é isso que é importante - o que importa é que a pessoa saiba que irá ser atendida num local com a qualidade e a segurança a que tem direito.
Por falar no utente e em este ser atendido com qualidade segurança, o Plano de Emergência apresentado inclui a substituição do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) por um novo sistema Sistema Nacional de Acesso a Consulta e Cirurgia (SINACC), Mas o que vai mudar concretamente?
O SIGIC serviu longos anos, o que deu para perceber muitas das suas fragilidades e até injustiças, que têm de ser mudadas. Desde logo, há que mudar a forma como são atribuídos os valores remuneratórios aos profissionais por cada operação. O trabalho cirúrgico é diferenciado, e há cirurgias que são muito mal remuneradas quando comparadas com outras. É uma área que precisa de muito trabalho, o qual tem de ser consensualizado. E há que trabalhar também a garantia do acesso ao cidadão. O SIGIC foi elaborado com a melhor das intenções, mas a prática veio a revelar descoordenação, fazendo com que haja casos de doentes do Algarve que são chamados para serem operados em Lamego ou Mirandela. É preciso atualizar o sistema de informação para que seja mais eficiente e para se gerir a lista de espera de forma mais eficiente e com rigor. Hoje, a maior parte das listas de espera são uma autêntica anarquia, têm doentes que já faleceram, que já foram operados e até os que desistiram da cirurgia e assumiram essa desistência. E o que o novo sistema vai tentar é ir ao encontro das necessidades do doente e de forma muito transparente no funcionamento.
Com o SIGIC 80% dos vouchers eram recusados, os doentes não queriam ser operados fora da sua área e do hospital. Vão conseguir que sejam operados na sua área e em tempo útil?
Penso que sim. Por isso é que se vai mudar. Queremos dar às pessoas a garantia que o sistema vai ser mais útil e que vão poder ser operadas no tempo adequado e na sua área. Com o SIGIC o doente entra em lista de espera e vai para o fim da lista, mas hoje já é possível, quando se está a inscrever um doente em lista de espera, e com um sistema mais atualizado, saber que naquele hospital o doente não consegue ser operado em tempo útil mas que pode ser operado noutro hospital público da sua região. A prioridade vai ser a resposta do serviço público, queremos que as pessoas sejam operadas aqui, mas também não queremos que ninguém fique por tratar porque o setor público já não pode mais. Então vamos ao setor privado e encontraremos uma maneira de este doente ser operado em tempo útil.
A aposta no serviço público é com mais produção adicional?
Vamos apostar muito na produção adicional dos médicos, dos enfermeiros e dos auxiliares de ação médica. Vamos querer puxar todos os profissionais para o SNS. Prefiro que os médicos tenham um rendimento extra a trabalhar no SNS do que o vão procurar no setor social ou privado. Temos uma bela oferta no serviço público e vamos trabalhá-la ao máximo para bem dos cidadãos do nosso país.
Tem noção que os sindicatos médicos vão continuar a bater-se pela valorização de base...
Sim. Os sindicatos fazem o seu papel, é sua obrigação lutar pelos interesses da classe, é para isso que existem, mas há outros que têm o papel de defender o sistema e os doentes em primeiro lugar. Cada um tem o seu papel e o seu espaço, só temos de encontrar uma posição em que todos possam sentir que, de alguma forma, o seu trabalho foi bem feito. Temos é de encontrar caminhos que se aproximem de uma solução em que todos estão confortáveis, sendo que para nós, repito, a prioridade é ter os doentes tratados e operados em tempo útil.