Estudantes de Medicina querem governo a assumir compromisso com formação e cuidados
Francisco Pêgo está no 6.º ano do curso de Medicina, prestes a completar a sua formação pré-graduada. O seu objetivo é ingressar de seguida no ano de formação geral, o dito "ano comum", da formação pós-graduada e obter uma especialidade. Qual? Diz, de forma transparente, que ainda não sabe. "Tenho um ano e meio para explorar várias hipóteses". Mas, como representante dos estudantes de Medicina a nível nacional, Francisco diz saber bem o que quer e os seus colegas também. "Se há algo que um estudante de Medicina não abdica é de uma formação com qualidade", argumenta. E é neste sentido que afirma ao DN que a situação vivida no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que vai desde a falta de médicos à falta de condições de trabalho e remuneração precária, "não é uma surpresa, mas preocupa-nos muito", defendendo: "Quem governa Portugal, quem governa o Ensino Superior e a Saúde tem de assumir um compromisso com a formação, pré e pós-graduada, e com a entrega dos cuidados de saúde. Não é possível continuar a gerir-se tipo navegação à vista. É preciso planeamento a curto, médio e longo prazo".
O presidente da Associação Nacional dos Estudantes de Medicina, que representa todas as associações das faculdades médicas, refere mesmo que "enquanto estudantes [começam] muito cedo a ter noção de como são geridos os serviços de saúde em Portugal". "Temos a noção de que os cuidados, muitas vezes, não estão bem organizados, nem bem planeados, no tempo, geograficamente ou por especialidade". Aliás, destaca, "a prova mais óbvia é a situação a que estamos a assistir agora", mas não só.
Francisco Pêgo avança com mais um argumento: "Desde 2015 que está previsto na legislação portuguesa a realização de um diagnóstico sobre a forma como funcionam os serviços e sobre os profissionais de Saúde. Este diagnóstico, ou inventário, seria uma ótima ferramenta para tomar decisões em relação aos problemas, mas se tal está previsto porque é que ainda não foi concretizado? Para nós significa que os nossos governantes não estão muito interessados em fazer uma gestão planeada da entrega dos cuidados de saúde aos portugueses".
Os estudantes consideram não ser "sustentável que se continue a gerir os cuidados de saúde do serviço público com base na última manchete ou notícia divulgada pela comunicação social".
É preciso que "nos sentemos todos, intervenientes na Saúde, à mesa para fazer o diagnóstico sobre como está a ser feita a formação médica e como estão a funcionar os serviços, para que, a partir daqui, seja possível definir as melhores políticas para a resolução dos problemas", argumenta o presidente da ANEM, salientando que a falta de médicos no SNS não atinge só os utentes, mas também os estudantes, os novos especialistas e, no fundo, as gerações futuras que vão estar a prestar cuidados, já que a saída de especialistas pode comprometer a formação pós graduada. Esta possibilidade tem de fazer com que os governantes percebam que "não se pode continuar a deixar entrar estudantes nos cursos de Medicina acreditando que para eles, o terminarem o curso, é a melhor contribuição para a sua formação como médicos, porque isto não basta".
Em nome dos estudantes, Francisco Pêgo defende, mais uma vez, que quem governa "tem de assumir que há um compromisso com os estudantes de Medicina que passa pela melhoria das condições nos serviços de saúde para que façam a sua formação com qualidade e com a garantia de que todos terão acesso à formação pós-graduada, porque esta é a única forma que cada estudante tem em se converter num profissional que vai prestar cuidados à comunidade com competências".
Até porque, assinala, tanto "a formação básica como a graduada dependem quase exclusivamente do SNS". No último ano, "das cerca de 1900 vagas abertas para os internatos médicos, só uma ínfima parte pertenciam ao setor privado. Mas isto não quer dizer que estamos a fazer a apologia de um ou de outro setor, simplesmente o setor público tem características diferentes - maior diversidade de doentes, recebe mais patologias e tem uma casuística diferente no número e tipo de consultas ou de cirurgias - que faz com que um estudante consiga uma formação com idoneidade". Por isso, "é-nos principalmente relevante que o SNS não seja desprezado pelos nossos governantes".
Os tempos mudam e a formação e a Medicina também. E se antes a única opção para um médico era uma carreira como clínico no setor público, hoje já não é assim. Francisco Pêgo exemplifica: "Há uns meses fizemos um inquérito aos estudantes, em conjunto com a Ordem, sobre o que valorizam para a sua carreira no futuro. E o elemento que mais valorizam para tomarem decisões é a remuneração-base; depois o trabalhar num sítio com maior diversidade de doentes, que é algo que privilegia o SNS, e em terceiro o poder conciliar a prática clínica com a investigação, o que não é conseguido tanto num setor como noutro". Trabalhar com novas tecnologias foi também referido, é é uma componente importante, pois tem levado muitos médicos a optarem por ir para fora de Portugal.
O presidente da ANEM considera que se a situação no SNS se mantiver como está, será razão para desmotivar cada vez mais as novas gerações levando-as a emigrar. "É normal que o façam, porque se há algo que os estudantes de Medicina também nunca deixarão de valorizar é a forma como podem exercer cuidados em Portugal. E se continuarmos assim, será um motivo para emigrarem".
É preciso não esquecer que "os atuais estudantes de Medicina fazem parte de uma sociedade mais globalizada em termos de informação e com mais oportunidades de carreira, dentro e fora do país. É uma geração que tem muito mais capacidade de mobilidade e que está muito mais aberta a outras soluções que não só o SNS. E para quem também não é só o espírito de missão que importa. Em vez de estarem a tentar gerir um discurso que é muito político, sobre se devemos ou não aumentar o número de estudantes de Medicina, os nossos governantes deveriam olhar para esta realidade inegável".
De acordo com dados da OCDE, Portugal já é dos países que tem mais médicos por mil habitantes, 5,3, quando a média é de 3,6, e com mais médicos formados - 15,8 por 100 mil habitantes quando a média é de 13,5.