"Estamos a falar de pessoas vulneráveis e que viveram situações muito traumáticas"

O coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados defende que uma "situação extrema" não pode pôr em causa os programas de acolhimento em Portugal.

Qual é a forma mais comum dos refugiados chegarem a Portugal?
Há dois tipos de chegadas, os chamados refugiados espontâneos - usam os próprios meios - e os que vêm ao abrigo de programas internacionais - recolocação (UE) e reinstalação [ACNUR] -, que são os que recebemos mais. Além dos que vêm em programas extraordinários como aconteceu com os afegãos e os ucranianos.

O afegão que cometeu os crimes [matou duas pessoas e feriu uma terceira] no Centro Ismaili terá vindo da Grécia através do programa de recolocação. Quantos afegãos a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) recebeu?
Trezentos afegãos, neste momento estão connosco 200.

O que é que faz a Plataforma ?
Recebemos as pessoas através do Alto Comissariado para as Migrações, que é quem coordena os programas de acolhimento a nível nacional. A plataforma é uma rede da sociedade civil e os refugiados são integrados em estruturas de acolhimento que desenvolvemos em parceria com outras instituições. Fazemos o diagnóstico da pessoa, nas várias dimensões e, posteriormente, é feito o encaminhamento e acompanhamento. É um acolhimento de emergência e, passado algum tempo, delineamos com as famílias um plano de autonomia, autonomia profissional e de enquadramento numa comunidade.

Este cidadão afegão já estaria na fase de autonomia?
No caso em concreto não acompanhámos, mas a situação normal é que e pessoa se torne autónoma logo que tenha condições.

Qual é a leitura que faz deste caso?
Não temos uma leitura final, mas percebemos que se trata de um ato espontâneo, de desespero, provavelmente há uma situação de conflitualidade. Pode ter sido uma situação de caráter psicológico, um acesso de pico e de raiva dirigida à instituição.

Além de se procurar satisfazer as necessidades básicas dos refugiados, parece que os programas de acolhimento esquecem a especificidade do indivíduo, da família.
Não concordo. Há um plano geral, mas depois atendemos à situação das pessoas, nomeadamente do ponto de vista psicológico.

Casos como este não vos obrigam a fazer uma reflexão sobre o processo de acolhimento em Portugal?
Claro que sim, estamos sempre a rever a intervenção que fazemos. O caso em concreto surpreende pela forma como se precipitou, mas não é novidade que as pessoas refugiadas têm uma maior propensão para o desespero. Por um lado, vêm com muitas expectativas em relação ao processo de acolhimento que não se realizam, nem se podem realizar. Por outro lado, estas pessoas passaram por situações muito traumáticas. No processo de acolhimento, passam por várias fases, pensam que poderão ter acesso a tudo sem grande esforço, mas quando caem na realidade, verificam que não é assim, que têm de trabalhar as suas competências, aprender a língua, ter um trabalho para se sustentar. Alguns refugiados manifestam uma certa frustração e ansiedade, mas claro que estamos preparados para estas situações. Há 20 anos que trabalhamos com refugiados.

O que fazem?
Temos um programa muito importante de apoio à saúde mental, é um programa integrado em que todos os técnicos estão alinhados nas medidas a tomar. Os técnicos estão preparados para o tipo de pessoas que vão encontrar. Não estou com isto a dizer que o Centro Ismaili não tenha feito esse trabalho, o que ali aconteceu podia ter acontecido com outra instituição. Estamos a falar de pessoas vulneráveis, que viveram situações muito traumáticas, podem existir situações extremas. Não é desejável, nem normal, mas pode acontecer.

Teme que este caso possa influenciar negativamente a população portuguesa no que diz respeito ao acolhimento de refugiados?
Teoricamente, é sempre possível que possa haver um retrocesso nesse acolhimento. Espero que não, tenho a expectativa que haja sensibilidade na tomada de decisão. Pode haver aproveitamento político, um certo cavalgar numa onda contra os refugiados. O que as pessoas têm de perceber é que estas situações podem acontecer em momentos de elevada tensão. Agora, por causa de uma situação pontual, seria uma infantilidade haver um recuar na disponibilidade para o acolhimento destas situações. O assunto é grave mas não pode pôr em causa a responsabilidade de Portugal perante a UE na proteção de pessoas vulneráveis.

Não é uma questão de nacionalidade.
Claro que não, Não há uma correspondência entre a nacionalidade da e o ato de desespero que levou a esta situação trágica. Há razões ainda para explicar, mas sabe-se que não há outra motivação a não ser pessoal. As motivações são muito próximas do que acontece em outros crimes, como a violência doméstica, etc.

Tiveram reações negativas?
Não, a população tem tido uma reação muito ponderado, os responsáveis políticos são no mesmo sentido. À exceção de um partido que fez um aproveitamento político e, na minha opinião, sem sucesso.
ceuneves@dn.pt

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