Especialistas dizem que é urgente mudar a legislação e reforçar a fiscalização da qualidade do ar
A pandemia da covid-19 mostrou aos governos e às sociedades que a qualidade do ar interior importa, nomeadamente ao ter-se revelado como uma das medidas não farmacológicas - embora a par de outras, como o uso de máscara e o distanciamento físico - com elevado impacto na contenção da transmissão da doença. Por isso mesmo, em todas as propostas de desconfinamento realizadas pela equipa de peritos liderada pela pneumologista Raquel Duarte, era destacada como medida fundamental para se voltar a uma vida normal. E a mesma equipa volta agora ao "ataque" para alertar que o inverno está à porta e que, apesar de a conjuntura epidemiológica ter permitido já o levantamento da obrigatoriedade de todas as medidas não farmacológicas, "é importante que se faça investimento numa estratégia de prevenção de risco ambiental, como a promoção da Qualidade do Ar Interior (QAI)."
Num documento agora publicado na revista da Ordem dos Médicos, os peritos relembram que o outono e o inverno são críticos em relação "à proliferação de doenças respiratórias em ambientes fechados, pelo aumento do tempo passado em espaços interiores pouco ventilados" e que, neste aspeto, ainda há muito a fazer em Portugal.
A equipa, que integra especialistas ambientais, sustenta mesmo ser "urgente atualizar o quadro legislativo, a fim de integrar as evidências técnico-científicas geradas em contexto pandémico, e reforçar a fiscalização no que toca aos Sistema de Certificação Energética de Edifícios (SCE), atendendo às alterações que foram solicitadas a propósito da covid-19".
E se há momento oportuno para "a melhoria e para a correta implementação de uma estratégia nacional de controlo da QAI", esse, é agora. O argumento é o facto de estarmos numa altura em que a "ventilação adequada é um dos fatores principais de redução do risco de transmissão dos agentes infeciosos, como o SARS-CoV-2".
Neste sentido, sublinham, existem pontos-chave na legislação portuguesa que têm de ser revistos, como o regresso das auditorias à QAI. E exemplificam: "Em 2013, o legislador considerou importante privilegiar a ventilação natural à ventilação mecânica. Todavia, definiu a eliminação da obrigatoriedade das auditorias da QAI", o que pode ter contribuído para a desmotivação do cumprimento de algumas das regras definidas.
Segundo este grupo, é certo que as evidências científicas reveladas pela pandemia vieram reintroduzir modelos de avaliação da QAI - como o Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 102/2021, de 19 de novembro, nos quais ficou determinada a necessidade de uma adequada qualidade do ar interior em todos os edifícios novos ou renovados e em edifícios de comércio e serviços, bem como uma avaliação simplificada anual (ASA) da QAI - mas é preciso saber se está mesmo tudo a ser cumprido.
É por isso, dizem, que se "impõe a criação de uma cultura de manutenção da QAI, de uma estratégia de controlo e fiscalização adequada e atualizada, e a melhoria da literacia populacional", destacando que uma "atuação ao nível da QAI será fundamental na preparação do próximo inverno, garantindo, por um lado, a promoção de atos inspetivos e de fiscalização (e implementação de medidas corretivas quando necessário) e a publicação dos resultados e, por outro, o correto funcionamento dos sistemas de ventilação, assim como uma crescente cultura de autoavaliação e controlo da QAI".
No texto agora divulgado, os peritos sublinham que a existência d e uma cultura de manutenção e de controlo da qualidade do ar interior traz "ganhos no controlo de infeções respiratórias e de outras doenças", no imediato e no futuro. Explicando, no entanto, que, "ao contrário do distanciamento e das regras de higiene, a resposta aos requisitos de ventilação e respetivas medidas corretivas constitui um ato de engenharia que exige processos de avaliação-adaptação específicos. As necessidades de ventilação de ambientes interiores dependem de múltiplos fatores: taxa de ocupação do espaço, atividades realizadas, características do espaço e estado do tempo". O que faz com que, consequentemente, "as avaliações periódicas à QAI sejam essenciais para assegurar que os limiares de proteção estabelecidos são cumpridos", identificando ainda situações de risco e corrigindo-as, com a recomendação de medidas a aplicar.
Ou seja, para este grupo de peritos, "as avaliações devem incluir a medição, em condições representativas, dos níveis dos principais poluentes tóxicos, como o material particulado em suspensão (PM2.5 e PM10), compostos orgânicos voláteis, formaldeído, monóxido de carbono, e CO2 (indicador de condições de ventilação em espaços fechados ocupados), como demonstrado em estudos recentes".
A consciencialização do que se deve fazer e como fazer nesta área, impõe, igualmente, "a criação de uma plataforma de registo padronizado, centralizado e partilhado do resultado das avaliações da QAI nos edifícios em território nacional. A implementação de uma estratégia de comunicação de risco e de envolvimento comunitário que promova a gestão da QAI nos diferentes contextos da vida quotidiana permitirá desenvolver uma cultura comunitária de preservação da QAI".
No final, a equipa de Raquel Duarte reconhece existirem problemas que não permitem avançar com modelos de garantia da QAI com efeitos a curto prazo - nomeadamente a baixa adesão à avaliação da QAI nos contextos de risco/estratégicos e o défice de recursos humanos (técnicos de saúde ambiental) que façam as avaliações-, mas tal não deve ser impeditivo de se iniciar um processo de promoção de uma cultura de manutenção e de estratégia de controlo da qualidade do ar.