Num cenário de ficção científica, uma civilização extraterrestre avalia a Terra à distância. Sondas vasculham o planeta a cada século. Detetam conversões de energia, como a chuva, uma erupção vulcânica ou o crescimento da sapiência humana. Ao longo de centenas de milhões de anos, após a formação da Terra, as sondas captam monótonas amostras de terramotos e tempestades atmosféricas. Há 3,5 mil milhões de anos, os primeiros micróbios unicelulares fotossintéticos manifestam-se em mares rasos. Decorrerão milhares de milhões de anos até à observação de organismos aquáticos mais complexos. Num passado com perto de 600 milhões de anos, é detetada a existência dos primeiros organismos compostos por células diferenciadas. Nos milhões de anos seguintes, dá-se a emergência, difusão e extinção de espécies. Há quatro milhões de anos, uma criatura simiesca desce das árvores para o solo. Volverão centenas de milhares de anos para que caminhe ereta e passe a dominar o fogo. As sondas detetam o primeiro uso extrassomático (externo ao corpo) de energia. Nas centenas de milhares de anos que se seguem, as sondas continuarão a visitar a Terra..A resenha de parte do primeiro capítulo do mais recente livro do autor checo-canadiano Vaclav Smil, poder-nos-ia induzir no caminho de mais uma leitura orientada para o dealbar da vida na Terra e a reconfiguração desta sob as mãos do Homo sapiens. Não é esse o propósito do Professor na Faculdade de Meio Ambiente da Universidade de Manitoba, em Winnipeg, Canadá, em Como o Mundo Realmente Funciona (edição Crítica), que se detém numa análise à história da energia global nas suas relações com a alimentação e produção de materiais e comércio. "Não sou nem otimista nem pessimista; sou um cientista que pretende explicar como o mundo realmente funciona", enfatiza Smil neste seu livro..De regresso à narrativa de ficção científica, desta feita nas palavras do próprio Vaclav Smil: "Ao longo dos últimos dois séculos, as sondas alienígenas terão testemunhado a rápida substituição global das fontes de energia primária, acompanhada pela expansão e pela diversificação da energia fóssil e pela igualmente célere introdução, adoção e crescimento da capacidade das novas fontes de energia inanimadas - primeiro, os motores a vapor alimentados a carvão, depois, os motores de combustão interna (de pistões e turbinas). A visita mais recente [da sonda] terá visto uma sociedade realmente global, criada e definida pela conversão massiva, estacionária e móvel, de fósseis carbónicos, usada em todo o mundo, salvo algumas das regiões desabitadas do planeta", escreve Vaclav Smil, nascido em 1943, no capítulo "Compreender a energia"..Após a publicação, em 2021, em Portugal de Os Números Não Mentem, Smil regressa ao tema que, há décadas, ilustra o trabalho de um autor com mais de 40 livros publicados, muitos detendo-se no tema energia, desde levantamentos abrangentes sobre energética e energia geral ao longo da História, até tratados sobre categorias individuais de combustíveis, como o petróleo, o gás natural e a biomassa. "Ao longo da vida, a minha grande área de interesse sempre foi o estudo das energias, pois o domínio satisfatório desse vasto campo obriga-nos a combinar conhecimentos sobre física, química, geologia e engenharia com atenção à história e a fatores sociais, económicos e políticos", sublinha Smil no seu novo livro. E acrescenta: "Abrir o buraco mais fundo possível e ser um mestre absoluto da nesga minúscula de céu visível lá do fundo nunca foi coisa que me atraísse. Sempre preferi explorar tão longe e tão amplamente quanto as minhas capacidades limitadas me permitiram"..Antes de convidar o leitor às mais de 300 páginas do seu livro, em temas como a energia, produção de alimentos, globalização, ambiente e futuro, Vaclav Smil traça o objetivo do título que nos entrega: "reduzir o défice de compreensão, explicar algumas das mais fundamentais realidades que regem a nossa sobrevivência e a nossa prosperidade". Smil convida-nos à "pergunta mais profunda da nossa época: "estamos irrevogavelmente condenados ou haverá uma utopia mais brilhante pela frente?"" O autor, que encontra falhas em ambas as frentes, propõe um desafio: "que nos afastemos de posições extremistas", como o fim do mundo em 2030 ou a paixão pelos poderes transformadores da inteligência artificial.."O conhecimento humano vai das generalizações grandiosas acerca de sistemas complexos a uma escala universal (galáxias, estrelas) e planetária (atmosfera, hidrosfera, biosfera) ao nível dos átomos e dos genes: as linhas gravadas na superfície do microprocessador mais poderoso de sempre têm apenas duas vezes o diâmetro do ADN humano". Uma conquista humana que sustenta a civilização contemporânea, "com a enormidade do conhecimento acumulado, muito além da compreensão de uma mente isolada", recorda o autor, para quem "a fragmentação do conhecimento não veio facilitar a tomada de decisões públicas". Sobre esta questão, Vaclav Smil dá-nos um exemplo: "a pandemia de SARS-CoV-2 tornou claro que a discórdia entre os peritos pode chegar a decisões aparentemente tão simples como o uso de uma máscara de proteção"..Ao porquê de a "maioria das pessoas contar com conhecimentos superficiais sobre a forma como o mundo realmente funciona", o investigador e professor responde que os indivíduos "lidam constantemente com caixas negras" e oferece-nos o exemplo com um artefacto de uso quotidiano, o telemóvel, cujo funcionamento somos incapazes de explicar; ou a vacinação, cuja "única parte compreensível do procedimento é o arregaçar da manga"..Face ao exposto, para o autor há um "défice de compreensão" e aponta dois motivos: "a urbanização e a mecanização". Nos países ricos, mais de 80% da população vive em cidades e ligada aos serviços. Os citadinos estão desligados "não só do modo como produzimos os alimentos, como, também, da forma como construímos máquinas e aparelhos, com a crescente mecanização da atividade produtiva a levar a que apenas uma fração da população global se dedique, agora, à produção de energia e dos materiais civilizacionais que compõem o nosso mundo contemporâneo". Smil exemplifica com os Estados Unidos, onde apenas três milhões de indivíduos se dedica à produção de alimentos. Ou seja, 1% da população norte-americana. "Quanto tempo é preciso para que um porco se torne uma costeleta do lombo: semanas ou anos?", questiona o autor. Uma pergunta cuja pertinência não escolhe geografias, seja na América do Norte, na Europa ou na Ásia..Vaclav Smil revela-se crítico a uma compreensão dos processos fundamentais na criação de energia (ex. alimentos) e de materiais duradouros (ex. metais), que passou a ser vista como antiquada quando comparada com o mundo da informação, dos dados e das imagens. "São fantasias, alimentadas por uma sociedade em que as notícias falsas se tornaram comuns e na qual a realidade e a ficção se misturaram de tal forma que as mentes mais frágeis, suscetíveis às visões de culto, acreditam naquilo que os observadores do passado condenariam como sendo ilusões puras e duras"..O autor antevê nos leitores do seu livro humanos que não se irão mudar para Marte, que continuarão a consumir cereais cultivados no solo de extensas áreas agrícolas e não viverão num mundo desmaterializado. Humanos que também não saberão, pressupõe Vaclav Smil que, em dois anos, a China consumiu quase tanto cimento quanto os Estados Unidos consumiram no século XX; que a quantidade de frete aéreo aumentou 12 vezes desde a década de 1970; que duas espetadas de camarão selvagem correspondem a meio litro de diesel "queimado" na sua captura; que o Canadá, com uma área florestal maior do que qualquer nação rica, importa palitos da China..Como o Mundo Realmente Funciona parte de uma premissa, a de que a produção das já referidas necessidades existenciais será uma tarefa cada vez mais árdua, "pois uma grande fatia da Humanidade vive em condições que a maioria abastada deixou para trás há gerações". Smil junta à equação a crescente procura de energia e de matérias-primas, que força a biosfera a produzir a um ritmo não compatível com a criação de reservas a longo prazo..Face às "sociedades esfomeadas por energia (...) a completa descarbonização da economia global até 2050 só será exequível à custa de um retrocesso económico global impensável, ou como resultado de transformações extraordinariamente céleres que se baseiem em desenvolvimentos técnicos próximos dos milagrosos". Descarbonizar o fornecimento global de energia num abrir e fechar de olhos é, para o autor, uma "afirmação banalizada", quando a civilização contemporânea assenta em quatro pilares: "amoníaco, aço, betão e plásticos".."Embora estejamos a orientar fatias cada vez maiores da produção de eletricidade para novas fontes renováveis e estejamos a pôr cada vez mais carros elétricos nas estradas, a descarbonização da camionagem, da aviação e da marinha mercante será um desafio de dimensões bastante mais hercúleas, tal como o será a produção de materiais essenciais sem o recurso a combustíveis fósseis". Sobre esta última questão, o autor salienta a dificuldade em "operar toda a maquinaria agrícola sem combustíveis fósseis líquidos e produzir a quantidade imensa de fertilizantes e outros produtos químicos agrícolas necessários sem gás natural e sem petróleo"..Questões que, inevitavelmente encaminham o autor para o tema das alterações climáticas: "Há mais de um século que temos noção do verdadeiro nível de aquecimento associado à duplicação do CO₂ atmosférico, e há mais de meio século que fomos alertados para a natureza sem precedentes (e irrepetível) dessa experiência planetária (a medição ininterrupta e precisa do CO₂ teve início em 1958). Mas escolhemos ignorar tais explicações, alertas e factos registados", enfatiza Vaclav Smil. E acrescenta: "Em vez disso, aumentámos a dependência de combustíveis fósseis"..Como o Mundo Realmente Funciona olha para o futuro e para a "recente propensão para abraçar o catastrofismo e o tecno-otimismo". Questão à qual Vaclav Smil dedica um capítulo do seu livro. "Não prevejo uma quebra iminente com a história em qualquer direção; não vejo resultados predeterminados, mas uma limitação complicada no rumo das nossas opções - que estão longe de estarem decididas"..dnot@dn.pt