Em Palmela "há muitos anos que o fogo não se atrevia a tanto. Ou há muitos anos que andamos com sorte"
Uma grande parte dos incêndios que surgiram na última semana aconteceram entre as 12h00 e as 16h00 e durante a noite. E os grandes fogos dos últimos dias como os de Palmela, Ourém, Caminha e Leiria estavam ao início da noite desta quinta-feira dominados. Os dados transmitidos pela Proteção Civil mostravam que depois de alguns dias de grande pressão sobre os agentes de combate aos fogos e às populações a situação no país indiciava que os piores momentos já poderiam ter sido ultrapassados.
Isto apesar de a situação de contingência ter sido renovada até domingo - as temperaturas elevadas vão manter-se -, dia em que será reavaliada a necessidade de manter o país neste ponto de alerta.
Esta quinta-feira, pelas 20h00 ainda estavam ativos 20 fogos, sendo nove deles considerados "significativos". Leiria foi o distrito com mais área ardida e operacionais mobilizados. Nos concelhos de Ansião e Pombal mais de 1400 operacionais esta quinta-feira a combater reacendimentos e novos incêndios de grandes proporções. Após o incêndio que, na tarde de quarta-feira, colocou vidas em risco nos arredores e centro de Palmela, 193 operacionais mantinham reacendimentos controlados.
A situação vivida nos últimos dias levaram Xavier Viegas, especialista em incêndios rurais da Universidade de Coimbra, a reafirmar que, "além das alterações climáticas, estamos em falta com o que já deveríamos ter feito desde 2017". Lembra que "tivemos cinco anos amenos para trabalhar junto das populações, nas atitudes preventivas e na gestão da floresta, com a criação de zonas descontinuadas que travariam a rápida combustão e dariam espaço aos bombeiros durante o combate a incêndios". O que não foi feito.
Depois de uma tarde e noite de risco extremo, Palmela amanheceu calma com a terra negra e muitos olhos fixos no horizonte, desde a Serra dos Gaiteiros, passando pelo Vale dos Barris até a Serra do Louro. Ainda assim Elísio Oliveira, comandante do Comando Distrital de Operações de Socorro de Setúbal, não afastava "o grave risco de reacendimentos num combustível florestal demasiado seco por todo o país, transformado num barril de pólvora".
No Miradouro do Castelo as marcas de um dos maiores incêndios registados no país a 13 de julho foram contabilizadas pelos palmelenses Adérito Morais, de 73 anos, e Manuel Gonçalves, de 63 anos. Feridos, civis e bombeiros, casas danificadas, negócios e o pânico quando o fogo se aproximou dos carros estacionados na rodoviária. Em oito horas arderam 400 hectares de floresta e culturas, como olivais e vinha.
"Há muitos anos que o fogo não se atrevia a tanto, ou melhor há muitos anos que andamos com sorte, porque por mais que alguns limpem os terrenos há quem nada faça no Parque Natural da Arrábida, incluindo o Estado que tem muito por limpar", critica Adérito recordando o último incêndio a que assistiu no mesmo local, há cerca de vinte anos.
Manuel Gonçalves não nega a sorte porque "podia ter sido tudo muito pior, da mesma forma que muito se poderia ter evitado se os aviões tivessem chegado mais cedo e não apenas às 17h00". Uma queixa transversal em todos os lugares devastados pelos incêndios nos últimos dias. Desde as 12h00, hora a que o incêndio deflagrou em Palmela, "valeram aos bombeiros os civis que andaram ao lado deles a apagar as chamas e dar a água dos seus tanques".
A partir do miradouro os dois moradores de Palmela apontam para a linha negra que marca o ponto onde o fogo parou no vale, antes de chegar a Setúbal. "Se aqui seria uma catástrofe, imaginem se o fogo chegasse a Setúbal com tudo plano pela frente." Alexandre Manuel já não teve tempo para "medir o que faltou", só conseguia tomar conta da Quinta de S. Pedro que ficou salva no meio das chamas que chegaram pelas 14h00, graças a dois carros com bombeiros que já estavam no local para as combater.
"Salvamos a vida e a casa, perdidas ficaram dezenas de ovelhas e cabras, que ninguém encontra, nem carbonizadas, e têm um valor que nem atrevemos calcular para não endoidecer", conta o agricultor de 70 anos. À volta da quinta, o chão ainda a fumega, Alexandre não quer saber, precisa ver o gado que ainda tem e saber se está ferido. De ajuda só pede "palha para o gado" que ficou sem nada. "Não é dinheiro, é só palha porque me ardeu o curral todo." Caso contrário morrem de fome as poucas cabeças que restaram do rebanho que traz à família "o sustento que uma reforma de pouco mais de 200 euros não dá".
Lamentando 12 feridos (de entre os quais nove bombeiros, dois civis e um militar da GNR), danos numa casa de habitação e num alojamento local, os prejuízos num stand de venda de automóveis, barracões para alfaias agrícolas e gado destruídos, assim como dois moinhos, o presidente da Câmara Municipal de Palmela recorda o momento em que os meios aéreos eram imprescindíveis, mas não apareciam.
"Cerca das 14h00, já as chamas tinham alastrado da Serra dos Gaiteiros e subido a encosta do Castelo, até entrar na vila, falei com a senhora secretária de Estado da Administração Interna [Patrícia Gaspar], que me disse não haver meios aéreos disponíveis", conta Álvaro Amaro.
Informação também confirmada pelo ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, pelas 14h40, quando Álvaro Amaro conseguiu estabelecer contacto direto com o governante. Nesse momento o autarca exigiu soluções,
E "vendo o que se estava a passar em todo o país, com falta de meios pesados no terreno, incluindo os aéreos, disse para acionarem tudo o que fosse possível antes que a situação no Parque Natural da Arrábida ganhasse proporções catastróficas". Ainda assim, com as chamas a devastarem a Zona Centro do país, os Canadair só conseguiram chegar a meio da tarde, dois pelas 17h00 e outros dois cerca das 18h00.
Durante a noite de combate às chamas e na manhã de rescaldo "Palmela contou com 520 operacionais e 142 veículos", segundo dados disponibilizados por Marcelo Lima, 2.º comandante do Comando Distrital de Operações de Socorro de Setúbal. Marcelo Lima confirmou ao Diário de Notícias que "o Parque Natural da Arrábida tem um plano próprio de combate aos incêndios rurais", mas não esclareceu a alegada falta de limpeza de terrenos que a população tem referido.