“Em homenagem ao falecido Thag Simmons.” Quando um cartoon ajudou a paleontologia
Ano de 1803, os Estados Unidos e a República Francesa fecham por 15 milhões de dólares o negócio da aquisição do Louisiana por parte da nação norte-americana. Um território com mais de dois milhões de quilómetros quadrados, o equivalente a quatro vezes a área de França, mudava de mãos. Os Estados Unidos garantiam o controlo do rio Mississippi e do porto de Nova Orleães. A aquisição deu fôlego à expansão americana rumo a oeste.
Ano de 1904, mês de abril, a cidade de Saint Louis acolhe a Exposição Universal, certame que celebra o centenário da compra do Louisiana. Ao longo de oito meses, 62 nações celebram a história, a arte, a arquitetura e a antropologia. Em paralelo, decorrem os Jogos Olímpicos de Verão. Entre as inovações em mostra, como a torre de telégrafo sem fios ou o algodão-doce, despertava a curiosidade de ilustres visitantes como Thomas Edisson ou T. S. Eliot a réplica à escala real de uma criatura ancestral, com perto de 150 milhões de anos. O século XX oferecia a estreia pública, em papel machê, de uma criatura que, nas décadas anteriores, motivava burburinho no debate paleontológico. Um dinossauro herbívoro, quadrúpede na sua locomoção, dorso arredondado, robustos membros posteriores, pescoço atarracado e modesta cabeça confundia desde a década de 1870 os esforços de catalogar o espécime. Aos achados de ossos acrescia um punhado de placas ósseas que motivariam o apadrinhamento do animal. Os espécimes do género estegossauro, ou “lagarto-telhado”, assim vertido do grego, apresentavam um conjunto de 17 a 22 placas no dorso, ligadas à pele. Impunha-se a pergunta aos primeiros paleontólogos e amadores desta ciência: como se dispunham estas placas no dorso do animal descoberto nos desertos do Colorado?
Acrescentava-se ao puzzle paleontológico uma singularidade no género stegosaurus. A culminar a cauda, eriçados, apontavam ao ar quatro espigões (pontas dérmicas), com 60 a 90 cm de comprimento. Uma excentricidade natural que só na década de 80 ganhou nome: “tagomizador” (numa adaptação do inglês thagomizer) para referir os espigões. Pouco provável seria a expressão nascer do mundo da banda desenhada assinada pelo norte-americano Gary Larson. Em 1982, o cartunista incluiu uma tira ambientada na Pré-História na sua série de cartoons humorísticos The Far Side, publicada ao longo de 15 anos em mais de 1900 jornais. Na tira, um grupo de trogloditas apresenta-se numa palestra. Frente a uma tela, o palestrante aponta à cauda de um estegossauro e lança as palavras: “Agora, esta ponta é chamada ‘tagomizador’... em homenagem ao falecido Thag Simmons” (no original “Now this end is called the thagomizer... after the late Thag Simmons”). Independentemente dos trocadilhos engendrados pelo criativo Larson, o termo serviu como luva nas mãos da comunidade paleontóloga, vendo ali a possibilidade de nomear uma nova estrutura. Sublinha o artigo da revista New Scientist, datado de 2006, que “os paleontólogos não têm muitas oportunidades de nomear novos ossos. A evolução usa os mesmos ossos repetidamente, alterando a sua forma e propósito mas preservando a sua natureza básica (...) Um úmero é um úmero, seja numa asa de frango, numa barbatana de morsa, na enorme perna dianteira de um braquiossauro ou nosso próprio braço”.
O termo foi primeiramente acolhido pelo paleontólogo Kenneth Carpenter, que em 1993 recorreu à palavra para descrever os espigões fossilizados de um estegossauro. Em breve a instituição Smithsonian recorria à palavra “tagomizador” nas suas publicações. Se no batismo a palavra gerou considerável consenso, já a utilização pretérita dos espigões acirrava discussões há décadas. Em 1914, o paleontólogo Charles Gilmore argumentava que os espigões serviam de arma defensiva, teoria depois sustentada pelo também paleontólogo Robert Bakker. Ali estava uma arma, de movimentos convulsos, dada a flexibilidade da causa, livre de tendões ossificados. Em 2010, a análise de um modelo digitalizado de kentrosaurus demonstrou que a cauda poderia agitar os “tagomizadores” num movimento amplo, ao longo dos flancos da besta pré-histórica.
Sobre o dorso do estegossauro repousou durante décadas a dúvida acerca da disposição das suas escamas de núcleo ósseo. Desde a descoberta dos primeiros ossos, ainda em 1877, por Othniel Charles Marsh, e a primeira tentativa de reconstituição de um esqueleto do animal, em 1891, multiplicavam-se as teorias sobre os arranjos das placas dorsais: planas sobre o dorso, semelhantes a um telhado, uma fileira isolada de placas ou emparelhadas em fila dupla ao longo das costas. Em 2010, o paleontólogo britânico Peter Malcolm Galton sugeriu que o arranjo das placas poderia ser vário, dependendo das espécies, e um modelo de reconhecimento entre indivíduos.
Gary Larson, senhor de um humor surreal, mórbido e apto a situações sociais desconfortáveis, diria em entrevista que pecara por ter juntado num mesmo desenho dinossauros e hominídeos. O “tagomizador” reservou a Gary um lugar na ciência. Não é caso singular, o desenhador também inspirou o nome de um piolho, o Strigiphilus garylarsoni.