Em 1908, o mundo recebeu via verde para o SOS
Ao longo de penosos dez meses, o irlandês James Kavanagh e a sua equipa permaneceram num penedo ao largo da costa sudoeste da República da Irlanda. Para oeste do rochedo de xisto argiloso de 30 metros de altura, os olhos daqueles homens assistiam, semana após semana, ao humor truculento do Atlântico Norte. O mesmo mar feroz que nas centenas de anos anteriores àquele 1897 reclamara para as suas águas vidas e embarcações. Ainda em 1847, 90 almas haviam sucumbido ao naufrágio do paquete americano Stephen Whitney. Dentro de poucos anos, em 1994, sobre Fastnet Rock, o ponto mais meridional da Irlanda, distante 8 Km da costa, brilharia um olho de luz a encimar um farol de granito. Antes, um rústico farol em ferro fundido mostrara-se incapaz face aos humores do mar e da meteorologia. O pedreiro Kavanagh e os seus homens arrastaram para as alturas do penedo, 2.074 blocos de pedra, mais de 4.300 toneladas de uma fortaleza salva-vidas dotada de uma lanterna e aparelho de iluminação. O negrume da costa ganhava um novo brilho, um feixe de luz perscrutador do mar a partir da “Lágrima da Irlanda”. Assim era conhecido o penedo por ter no seu fado ser o último elo com a terra natal das vagas de emigrantes que deixavam o país no século XIX.
A não grande distância da tábua de salvação do farol de Fastnet Rock, o ano de 1903 assistiu à aflição a bordo do transatlântico dos Estados Unidos, o SS Kroonland. A nave de 170 metros de comprimento e com dois motores a vapor que tivera a sua viagem inaugural entre os portos de Nova Iorque e Antuérpia no ano de 1902, via-se, naquela tarde de dezembro, sem uma das duas hélices que a empurrava rumo à Europa. A bordo, Ludwig Arnson, operador do telégrafo sem fio (radiotelégrafo), chamou a si a responsabilidade de salvar o SS Kroonland. Arnson socorreu-se do código internacional CQD, um sinal informativo de telecomunicações utilizado para solicitar auxílio em situações de socorro. O SS Kroonland recebeu o auxílio de um cruzador britânico a navegar na zona. Ludwig Arnson receberia muitos anos depois, em 1944, a Marconi Memorial Medal of Achievement. O SS Kroonland navegaria até 1927. No decorrer da I Guerra Mundial serviria de transporte às tropas do exército dos Estados Unidos. Nos quatro anos de conflito, entregaria em ambas as margens do Atlântico mais de 38.000 militares. Na época em que o mundo desabava empurrado pelo primeiro conflito mundial, o sinal CQD, adotado pela britânica Marconi International Marine Communication Company, sucumbira ao sinal informativo SOS. Este, em 1906 alcançaria o estatuto de sinal universalmente utilizado nas comunicações mar-terra, à boleia do código morse. Três pontos, seguidos de três traços e de outros três pontos, comunicavam uma situação crítica.
Até ao ano de 1906, vários países e organizações decidiam quais os códigos a usar nas suas transmissões. O mais amplamente adotado era o CQD, assumido como sinal de socorro no seio das comunicações da Marconi em fevereiro de 1904, através da sua Circular 57: “a chamada a ser feita por navios em perigo ou de qualquer forma que necessitem de assistência deve ser ‘CQD’”. Antes, os telégrafos terrestres e submarinos adotaram a convenção de usar CQ (sécu, do francês sécurité) como forma de identificarem palavras de alerta para todas as estações ao longo de uma linha telegráfica. Com o aparecimento da radiotelegrafia, que utiliza sinais de rádio para transmitir mensagens, o CQ viu-se adotado nas comunicações marítimas como uma “chamada geral”. A companhia Marconi adicionou-lhe o D, de socorro, em alusão à palavra distress (“perda”, “aflição”).
No mesmo período SOS surgia regularmente nas comunicações de rádio na Alemanha. O sinal Notzeichen, como era designado, assentava num padrão gráfico simples (...---…). Determinava a convenção do Código Morse que três pontos correspondiam à letra S, três traços à letra O. SOS passou a constituir uma mnemónica associada a expressões como “Save Our Souls” (“Salvem as Nossas Almas”) ou “Save Our Ship” (“Salvem o Nosso Navio”). Um sinal informativo que ganharia protagonismo global a 3 de novembro de 1906. Reunida em Berlim, capital alemã, a primeira Convenção Radiotelegráfica Internacional, abordou temas como as comunicações via rádio e o estabelecimento de padrões internacionais para as comunicações de mar com terra. Vinte e sete países marcaram presença nos trabalhos, entre eles uma delegação portuguesa. Os delegados acordaram que a 1 de julho de 1908, o sinal SOS passaria a ser adotado internacionalmente em substituição de outros sinais de auxílio, como o CQD.
Oficialmente, o primeiro navio a transmitir um sinal de SOS após a Convenção de Berlim foi o transatlântico britânico RMS Slavonia, num episódio a 10 de junho de 1909 que envolveu águas em território nacional. Face aos pedidos dos passageiros de primeira classe, o comandante Arthur George Dunning, cedeu em alterar a rota do navio a caminho de Trieste, no mar Adriático, para um périplo turístico em torno da ilha açoriana do Corvo. Decisão de má sorte. O navio cederia ao nevoeiro castigador e às armadilhas rochosas da costa da ilha das Flores. Encalhado, batido pelo mar, com fogo a bordo, não restou à tripulação do Slavonia senão emitir um apelo em forma de três pontos, três traços e três pontos. Um pedido captado pelo paquete alemão Prinzess Irene e pelo navio Batavia. Também o navio Funchal partiu em socorro e apoio da nave em apuros. Salva a tripulação e passageiros - não obstante as reiteradas tentativas de suicídio do comandante Dunning, devastado pela perda - restou ao Slavonia sucumbir aos temporais dos meses de outono.
Em janeiro de 1998, o sinal SOS foi oficialmente descontinuado e substituído por modernos sistemas de comunicação via satélite e mensagens de voz. Poucas horas antes, na noite de 31 de dezembro de 1997, soava um alerta “...---... ...---... Aqui é o Oak. Posição 53 16 norte e 24 59 oeste. Motor parado. Necessitamos de assistência”. O MV Oak, uma embarcação de transporte de madeira em trânsito entre o Canadá e Inglaterra, enfrentava uma situação difícil em pleno Atlântico Norte. O navio perdia potência, a carga “dançava” perigosamente a bordo, a tripulação descia para os salva-vidas. A noite de fim de ano não acabou em tragédia. A tripulação seria mais tarde resgatada pela guarda costeira britânica. O navio foi salvo. O velhinho SOS dava mostras da sua vitalidade num derradeiro suspiro oficial.