"É errado pensar que urgências estão cheias porque centros de saúde não dão resposta"

Nuno Jacinto defende ao DN que é preciso não esquecer que "quando os hospitais enchem é porque os cuidados primários também já registaram um aumento de afluência", mas que se olha sempre só para a outra ponta, para o lado do hospital, considerando que não ser um alargamento dos horários, possibilidade colocada pelo ministro, que vai resolver a situação do SNS.
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O ministro da Saúde tem vindo a anunciar algumas hipóteses de funcionamento dos cuidados primários para se fazer face à falta de recursos humanos e à pressão nas urgências hospitalares. Esta quarta-feira, à saída da Convenção Nacional da Saúde, Manuel Pizarro, questionado sobre a elevada afluência às urgências registada nalgumas unidades, sobretudo da Grande Lisboa e do Grande Porto, considerou que não estamos perante uma situação de "caos", mas avançou com a possibilidade de se poder alargar o horário de atendimento nos cuidados primários para a resolver.

Mas o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), considera de imediato que esta "solução não é viável nas unidades em que não há recursos", e que que se os utentes continuam "a procurar os serviços de urgência é porque temos um sistema montado que, em muitos casos, não lhe permite outras alternativas".

Nuno Jacinto diz mesmo que a mesma solução já foi usada e que não se manifestou muito eficaz. "Já tivemos alargamento de horários em períodos de pico da gripe. O encerramento das unidades passou para as 22.00, e havia unidades que registavam apenas um doente nesse período". Portanto, diz, "não é com o alargamento de horários que se vai resolver a falta de médicos ou de um acesso mais facilitado dos doentes crónicos ao seu médico nos hospitais".

Ou seja, "nas unidades sem recursos humanos suficientes, onde os utentes não têm resposta adequada tendo que acabar por ir à urgência, não é viável um alargamento de horário, porque não há ninguém para o fazer. Nas unidades onde os recursos estão preenchidos ou totalmente preenchidos, a resposta ao utente sem marcação já é dada no horário normal de funcionamento, das 08:00 às 20:00", afirma, justificando: "Quando se fala de um aumento de afluência às urgências hospitalares, esquece-se que os centros de saúde também já sentem esse aumento e que já tiveram de desmarcar consultas e outra atividade assistencial para dar resposta, obrigando os profissionais, muitas vezes, a um esforço enorme, mas continua-se a olhar só para o lado do hospital".

Para o presidente da APMGF, a questão da resposta aos utentes não pode ser medida só pela resposta dos cuidados primários. "É um erro pensar que as urgências hospitalares estão cheias porque os cuidados primários não dão resposta. É um raciocínio falso, porque se há locais onde os cuidados primários não dão resposta é porque não têm médicos, enfermeiros ou outros técnicos, mas há muitos outros locais onde esta resposta é enorme".

E dá um exemplo: "Só para ter uma ideia, há uns tempos se falava que se batiam recordes de urgências no Hospital São João, numa altura em que nãos e esperava, cerca de 900 atendimentos diários, os centros de saúde daquela zona já estavam a ver cerca de três mil doentes a mais, que não tinham consulta programada, por cada ida a mais à urgência, os centros de saúde tiveram três atendimentos a mais em 12 horas".

Isto prova que "a maioria da resposta da doença aguda continua a ser nos centros de saúde por muito que se queira mostrar o contrário". Embora reconheça, "há muitas situações que vão à urgência hospitalar que não se justificam. Isto é uma verdade, mas essas situações se calhar também não têm de ser atendidas no imediato nos centros de saúde".


Questionado pelo DN, se mais uma vez é o comportamento dos utentes que está errado, Nuno Jacinto considera: "É difícil colocar as culpas no utente quando eles são empurrados para ter determinados comportamentos. O sistema está montado de forma a que tenham estes comportamentos. Temos um SNS 24 que tem dificuldade em triar os sintomas que envia a esmagadora maioria dos casos para observação médica na urgência e nos centros de saúde, acabando por não resolver nada". Por outro lado, "se temos doentes que têm de ser observados e que necessitam de faltar ao trabalho, estes precisam de ir a um sítio que lhes passe um papel para justificarem a ausência e, muitas vezes, a única porta aberta é a da urgência. Isto é uma pescadinha de rabo na boca".

O exemplo de um utente da região de Lisboa e Vale do Tejo, sem médico de família, que está doente e não consegue consulta nos centros de saúde, faz o presidente da APMGF reconhecer que o problema "é ainda maior. Não tendo médico de família, não tendo acesso rápido aos cuidados não tem outra hipótese senão ir a um serviço de urgência", mas o problema base "é a falta de médicos e daí o facto de insistirmos tanto que é preciso não deixar que os profissionais saiam do SNS, como tem acontecido ao longo das últimas décadas". Nuno Jacinto sublinha: "Não sabemos se acontecerá e como vai ser este alargamento de horário, mas não se pense que a situação será resolvida com medidas destas".

Nesta semana, o ministro referiu também aos deputados, no Parlamento, que uma das soluções que está a ser equacionada para resolver a falta de médicos de família é a criação de Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo C. Um modelo que está na legislação desde 2007, mas que não regulamentado nem usado até agora e que permite a entrega da gestão da entidades que não o Estado. O próprio Manuel Pizarro deu como exemplo uma USF gerida por uma cooperativa de médicos reformados, mas o presidente da APMGF aceita que este "pode ter vantagens para contextos mais complexos", mas que se continua "a tentar inventar a roda quando esta já está inventada. Temos as USF modelo B onde se tem conseguido fixar médicos, onde estes se sentem satisfeitos e que têm dado bons resultados, mas que tem tido um travão por questões económicas".

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