O horário de trabalho já acabou, já está em casa, mas o telemóvel continua a tocar. É o chefe que está a ligar fora do horário de expediente. Porém, esta é uma situação proibida em Portugal desde o início de 2022 e passível de multa, que pode chegar a 9690 euros, no caso de grandes empresas. “O empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior”, lê-se na legislação. Mas quantas pessoas efetivamente utilizam a lei para fazer valer seus direitos?Em 2023, foram dois trabalhadores, de acordo com informações que o DN obteve junto ao Ministério do Trabalho. Segundo fonte oficial, estes são os únicos números disponíveis sobre a questão, vigente há pouco mais de três anos. Com um pouco mais de pormenor, sabe-se que estas duas queixas formais apresentadas são do setor de “Atividades imobiliárias e Atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares”. Foram instaurados dois autos de contraordenação laboral, sobre os quais o ministério não revelou ao DN o desfecho. Na avaliação de Margarida Baptista, advogada e autora do livro Direito à Desconexão ou Dever de Não Contactar - Reflexos nas Relações de Trabalho, duas queixas é um número “baixo”. Mas porquê? “Haverá muito mais, mas não são reportadas, o trabalhador habitua-se a responder às questões mesmo fora do horário de trabalho”, diz a especialista ao DN.De acordo com Margarida Baptista, no mundo conectado de hoje, com os telemóveis sempre à mão praticamente o tempo todo, a situação torna-se mais complexa. “Estamos sempre ligados, independente de estarmos a trabalhar, temos o WhatsApp ligado, temos o Telegram, o Facebook, o Messenger, etc. Há uma tendência de quando cai uma mensagem ir ver, mesmo que não esteja no horário de trabalho, para não ficar preocupado”, explica. Outro ponto destacado pela advogada é a competitividade dentro do ambiente de trabalho.“A pessoa pode ficar em ansiedade e dizer ‘mas eu vou responder agora ou não?’ Muitas vezes os trabalhadores pensam que se eu não responder agora, o meu empregador pode pensar que eu sou uma pessoa um pouco desinteressada, que não sou muito trabalhadora”, argumenta.Uma pesquisa publicada pelo Journal of Applied Psychology indica que a culpa é um dos motivos que impede os trabalhadores de se desligarem. “Descobrimos que o distanciamento noturno leva a uma maior vergonha na manhã”, lê-se no estudo. A investigação foi realizada com 200 pessoas no Reino Unido.Ana Mendes Godinho, ex-ministra do Trabalho e que ocupava o cargo na altura em que a lei entrou em vigor, ressalta ao DN que o objetivo da lei não é só haver queixas. “Esta legislação tem um objetivo que não é só de haver queixas. O objetivo, idealmente até, é que ela seja cumprida e que não seja necessário haver queixas”, argumenta.Para a antiga governante, “muitas vezes a inexistência de queixas não quer dizer que não tenha havido mudanças de facto nos procedimentos das empresas, porque elas próprias tiveram de, no fundo, adotar procedimentos para garantir que as pessoas não são contactadas fora do horário de trabalho”.A ex-ministra ainda avalia que a queixa é um último recurso. “As pessoas só recorrem a uma situação de queixa quando consideram que a situação chegou a uma gravidade tal que põe em causa a própria subsistência da relação laboral. Até lá, as pessoas também procuram encontrar formas de solucionar o seu problema sem ter que recorrer a queixas”, destaca.Ana Mendes Godinho recorda que, na altura, a mudança na legislação foi motivada pela novo panorama das relações de trabalho imposto pela pandemia de covid-19, além “de uma tendência internacional cada vez maior de haver cada vez mais riscos psicossociais associados ao mundo do trabalho”, explica.Para a advogada Margarida Baptista, a lei por si só não resolve a questão, que precisa de ser aliada com o “bom senso” de todos, trabalhadores e empregadores.amanda.lima@dn.pt.Ministra do Trabalho admite 40 mudanças em cargos dirigentes, sete foram por iniciativa da tutela.Só cerca de 30% dos médicos do SNS que se podiam reformar é que o fizeram. Enfermeiros batem recorde