Domingos Machado tem 72 anos. Foi médico mais de 40 e, no final da sua atividade, decidiu doar um rim.
Domingos Machado tem 72 anos. Foi médico mais de 40 e, no final da sua atividade, decidiu doar um rim.Reinaldo Rodrigues Global Imagens

Dois mil estão à espera de um rim. Tempo médio chega aos cinco anos

No final de 2023, havia 1881 doentes à espera de um transplante de rim. Mesmo assim, Portugal tem a quinta melhor taxa de transplantação da Europa nesta área. Mas quem já doou diz que faltam campanhas de informação à população e faz um apelo: “Pense em doar.”
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Escolheu ser médico, talvez porque já vinha de uma família de médicos, embora diga que foram muitas as razões. Depois escolheu a especialidade de Nefrologia e dedicou o grosso da sua atividade, mais de 40 anos, no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, à preparação de doentes e de dadores para transplantes e ao seu acompanhamento. Até que, um dia, tomou a decisão que há muito vinha a maturar: doar um órgão, no seu caso um rim. Domingos Machado tem hoje 72 anos, está na reforma, e há mais de dois que entregou  um órgão seu a um desconhecido. E quando lhe perguntamos porquê, a resposta é simples: “Sentia-me um privilegiado. Tinha saúde, não tomava medicamentos para a tensão arterial, nem para a diabetes, e comecei a pensar que poderia ceder um pouco a alguém que não tivesse.”


Esta decisão era inédita em Portugal , o acontecimento também. E só foi divulgado muito depois de tudo se ter passado e apenas com o objetivo de servir como exemplo, para alertar a população que, no país, “existem condições para se fazer transplantação em segurança”, recordou ao DN. Porque, ainda hoje, data em que se assinala o Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação, Domingos Machado alerta para o facto de, em Portugal, existir “um grande défice de informação por parte da população para a situação”.


Na sua opinião, “há um défice de campanhas: houve algumas, mas sabemos que estas só dão frutos muito mais tarde, e é preciso mantê-las”. Mesmo em relação ao seu caso diz que “quando foi divulgada parece ter tido um certo impacto. Pelo menos, o então ministro da Saúde, Manuel Pizarro, fez um discurso no sentido de ter havido um aumento da transplantação com dadores vivos, mas os exemplos não se perpetuam. É preciso que se volte a falar da doação e da transplantação”.


Por isto mesmo, diz, se há mensagem que quer deixar neste dia é: “Pensem em doar. Vão a um hospital com esta atividade e informem-se”, porque para quem doa “há sempre uma compensação moral enorme e, para quem recebe, é a dádiva da sobrevivência ou do aumento da duração da vida ou da melhoria, e em muito, da qualidade de vida”.


Este ano já foram transplantados 463 órgãos de 227 dadores


Os dados disponibilizados ao DN pelo Instituto Português do Sangue e da Transplantação (INST) revelam que nos primeiros seis meses deste ano já foram transplantados 463 órgãos, vindos de 227 doadores, a esmagadora maioria em morte cerebral. No ano passado no mesmo período tinham sido transplantados 450 órgãos. O mais transplantado é o rim, mas a 31 de dezembro de 2023 ainda havia em lista de espera 1881 doentes.
No entanto, este pode não ser o número mais correto porque, como explica o INST, “as listas de doentes a aguardar um órgão compatível para transplante são muito dinâmicas”, pelo que a sua contabilização é feita no final de cada ano civil. Em julho de 2023, por exemplo, e segundo o INST havia 1800 doentes em lista de espera. Mas, apesar desta lista, e segundo os dados oficiais mais atualizados, de 2022, Portugal tem a quinta maior taxa de transplantes renais na Europa, com 49,01 transplantes por milhão de habitantes.


Ao DN, o INST confirma, de facto, que “os órgãos mais transplantados são os rins”, mas também que são o órgão que “apresenta maiores problemas de compatibilidade imunológica”. Por outro lado, “o coração é talvez o órgão mais escasso e para o qual é necessária a compatibilidade imunológica, a compatibilidade morfométrica e a funcionalidade a 100% do órgão”.


Os dados da Sociedade Portuguesa de Nefrologia, que tem vindo a defender - em particular no que toca ao transplante de rim de dador morto - o alargamento das equipas de promoção de colheita na generalidade dos hospitais e a expansão dos programas de doação em paragem cardiorrespiratória, indicam que, só aos rins, foram realizados 547 transplantes em 2023, dos quais 71 de dadores vivos.


Mas o dia 20 de julho é o da doação e da transplantação para todos os órgãos e foi decretado, em 2019, precisamente para ser um alerta para “a dádiva”, que pode “salvar vidas”, marcando assim a data em que se realizou no país o primeiro transplante, no caso, um rim de dador vivo, em 1969, nos Hospitais da Universidade de Coimbra. Na década de 1980 foram feitos os primeiros transplantes com rim de dador morto, sucedendo-se depois transplantes de fígado, coração, pâncreas, pulmão, tecidos e células. 


Domingos Machado recorda ao DN que foi sob a sua direção, na Unidade de Transplantação do Hospital Santa Cruz, que “se começou a transplantação com dadores vivos”, por isso mesmo reforça que a motivação para partilhar a sua saúde com alguém não era assim tão recente. “Na altura, já achava que não era impossível uma pessoa querer tornar-se doadora, tal como há quem aceite doar sangue. Terá sido aqui que comecei a pensar que eu próprio podia tornar-me um dador”, conta.


Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação e ainda consultor junto da Assembleia da República para a alteração da lei que depois veio a ser aprovada, o que também reforçou a ideia que tinha.
“Na altura, já se discutia a possibilidade de as pessoas doarem em vida, mas havia quem achasse que a lei não se deveria preocupar com isso, porque nunca tinha havido ninguém que o tivesse feito. Mas havia outros, como eu, que diziam que a lei deveria preocupar-se com essa questão, até porque já havia casos no estrangeiro e lá a questão foi assumida na legislação”. Isto porque, explica, “há questões morais e éticas associadas à doação. Há até uma responsabilidade moral, de partilha com os outros e com a sua condição de saúde”.


Como médico, reconhece que tinha mais informação e conhecimento sobre a situação do que a população em geral. Primeiro, ainda pensou doar o rim a um doente que acompanhava há muitos anos, mas houve um problema na compatibilidade, então decidiu entrar no processo de doação normal, escolheu o hospital que o iria observar e aquele em que seria feita a recolha do órgão, opções que são permitidas por lei. E depois de ter aceitado divulgar o seu caso, diz que “ainda há muito poucas pessoas que têm a noção de que, para alguém que faz diálise, o transplante do rim melhorava muito a sua qualidade de vida e a sua sobrevivência”.

963 transplantes no ano de 2023

O ano de 2023 terminou com 963 transplantes, segundo os dados do Instituto Nacional do Sangue e da Transplantação. Ao todo, foram 1066 órgãos, mais 128 do que em 2022, de 448 dadores. Destes, 332 por morte cerebral, 43 por paragem cardiocirculatória e 73 dadores vivos. Os dados do INST revelam também que o órgão mais transplantado foi o rim (547 transplantes), depois o fígado (249), os pulmões (87), o coração (52) e o pâncreas (28). Este ano já vamos com 463 órgãos transplantados.

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