Doente oncológica passa três dias em maca no corredor da urgência de Santa Maria
Aos 80 anos, Mariana Mata viveu um episódio no Serviço de Urgência do Hospital Santa Maria que o filho diz tê-la "traumatizado", trazendo-lhe "o desânimo de viver" e a "recusa de voltar aos tratamentos de quimioterapia". Paulo Cordeiro sentiu-se revoltado: "Só descrevo a história para que mais ninguém tenha de passar pelo mesmo". O DN contactou o hospital, que diz: "Não comentamos casos individuais e não damos detalhes clínicos dos doentes."
No dia 13 de julho, Mariana Mata, de 80 anos, estava a fazer o segundo tratamento de quimioterapia de uma série de quatro, para combater um tumor nos intestinos, no Serviço de Oncologia do Hospital Santa Maria, quando se sentiu mal. "Ficou sem mexer os membros e sem estar a raciocinar bem. Eu não estava lá, mas foi o que os médicos me disseram", conta ao DN o filho, Paulo Cordeiro. "Os médicos suspeitaram que poderia tratar-se de um AVC e foi acompanhada pelo seu médico até às urgências para entrar pela Via Verde. A suspeita foi despistada e, felizmente, não se confirmou, mas a minha mãe teve de ficar em observação nas urgências para repor o potássio, que se encontrava muito reduzido", descreve ainda. E é aqui que começa o que considera ser "um filme de terror", "desumano" e "inaceitável" em "qualquer hospital, quanto mais num hospital central".
Relacionados
Segundo conta, a mãe, Mariana Mata, entrou na urgência a meio da tarde e teve de ficar deitada numa maca, tendo sido "sempre ali observada e mediante a fraca disponibilidade dos sucessivos médicos de serviço". Paulo Cordeiro estranhou a situação, mas atribuiu-a "à excessiva afluência de doentes às urgências", mas a sua indignação começa "no 2.º e 3.º dia" e respetivas noites. "Não é aceitável que uma doente oncológica de 80 anos tivesse de estar três dias e três noites deitada numa maca, no hall de entrada das urgências, onde se ouvia constantemente a chamada de doentes, onde entravam e saíam doentes do exterior", e onde diz que, "durante estes três dias e noites, a minha mãe não teve uma refeição e as suas necessidades fisiológicas e a sua higiene tinham de ser feitas nas casas de banho públicas da urgência, também utilizadas pelos acompanhantes dos doentes e inclusive por pessoas que vêm da rua", sublinha Paulo Cordeiro, assumindo que isto mesmo descreveu a várias entidades, como ao Gabinete do Cidadão do próprio hospital, que "me disseram que estavam a avaliar a situação", aos partidos políticos e até ao Presidente da República. E só o fez "para que mais ninguém tenha de passar pelo mesmo".
O DN contactou o Hospital Santa Maria para saber o que aconteceu neste caso, mas foi-nos dito: "Não comentamos casos individuais nem damos detalhes clínicos dos doentes". No entanto, foi-nos confirmado que "a doente, tal como todos os outros doentes, foi sempre alimentada e hidratada". O DN soube ainda que o momento em que o episódio relatado por Paulo Cordeiro ocorreu coincidiu com a semana da vaga de calor na região de Lisboa, onde a fluência às urgências dispararam, tendo aquele hospital registado mais de 600 episódios diários.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
De acordo com o filho de Mariana Mata, a doente esteve na urgência de 13 a 16 julho, e, durante este período, Paulo Cordeiro refere solicitou "aos sucessivos médicos de serviço se não era possível interná-la, para que tivesse uma refeição normal, dado a sua situação oncológica, higiene pessoal adequada e principalmente alguma tranquilidade para conseguir recuperar a sua saúde", o que não considerava "ser possível, numa maca no hall das urgências, mas todos me disseram o mesmo: "Não tinham lugar para a internar". Pedi para falar com a chefe de serviço, o que me foi concedido, e me disse o mesmo: "Não tenho vaga para internar a sua mãe."
Paulo acompanhou a mãe durante estes dias. "Estava com ela até por volta das duas da manhã, quando estava mais estável saía e regressava na manhã seguinte. Ao terceiro dia, já via a minha mãe a desistir, a entregar as pontas e a dizer-me para ir à minha vida que já não saía dali. Hoje, está a recuperar em casa, mas ainda não está bem. Sente-se desanimada e recusa agora continuar com os tratamentos de quimioterapia. Na sexta-feira voltamos ao serviço de oncologia para consulta com o médico dela e tenho a certeza que é isto que vai dizer. Já me disse várias vezes: "Não quero, não quero. Se tiver de morrer, morro. Daí a minha revolta", argumenta, continuando: "Sou daquelas pessoas que acredita no serviço de saúde público, que este funciona e que até está melhor, mas também fiquei traumatizado com a situação" e "gostaria que alguém me explicassem, se for humanamente possível, qual a razão para que uma situação destas ocorra num hospital central da capital do país".
O filho de Mariana Mata esclarece ainda que "a questão que coloca não tem a ver com o tratamento dado pelos médicos, enfermeiros ou auxiliares, apesar de uns terem sido melhores do que outros. Tem a ver com o estado dos serviços e com a sua organização. No serviço de oncologia, não tenho razões de queixa, mas esta situação fez -me sentir vergonha do meu país". Paulo Cordeiro termina a exposição que enviou às várias entidades a pedir que alguém lhe explique "como pode isto acontecer".
A situação de Mariana Mata ocorre num momento em que hospitais de todo o país lidam com a falta de médicos nas urgências, tendo algumas, sobretudo da área de obstetrícia, que encerrar por não haver forma de assegurar as escalas. Numa altura em que há hospitais a desviar médicos das áreas programadas para as urgências para dar resposta aos utentes. O Ministério da Saúde está a negociar com os sindicatos médicos para que seja possível no futuro fixar mais médicos no SNS. Há mesmo quem defenda não haver mais tempo para se iniciarem mudanças nas unidades do serviço público. Um novo estatuto para o SNS foi aprovado recentemente pelo Governo.